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Francisco Razzo

Francisco Razzo

Francisco Razzo é professor de filosofia, autor dos livros "Contra o Aborto" e "A Imaginação Totalitária", ambos pela editora Record. Mestre em Filosofia pela PUC-SP e Graduado em Filosofia pela Faculdade de São Bento-SP.

Charlie Kirk

O triunfo ilusório do ódio inegociável

Charlie Kirk
Charlie Kirk, em evento evento no Texas em 2023. (Foto: Gage Skidmore/Wikimedia Commons)

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O jornalista Eduardo Bueno, o Peninha, foi um dos primeiros a ironizar e celebrar a morte de Charlie Kirk. No vídeo que circulou, sua fala não deixa margem: era satisfação diante do assassinato. O tom de escárnio, a risada fácil, o gesto de quem encontrou na morte do outro um motivo de alívio e júbilo: “o mundo se tornou o um lugar melhor”. Não foi o único. Redes sociais registraram em sequência o desfile de comentários desse nível. A celebração se espalhou com a rapidez de uma catarse coletiva.

Essa reação diz muito sobre a cultura política de nosso tempo. Quando alguém é assassinado – sobretudo quando se trata de uma figura incômoda aos padrões amorosos da esquerda –, há sempre quem veja no acontecimento a oportunidade de confirmar suas próprias convicções. É a lógica de converter o trágico fim biológico em vitória ideológica. Isto é: a morte do adversário passa a servir de reforço para o conforto da própria posição política. Um gesto que revela mais do que incoerência – revela perversidade.

A imprensa, misericordiosamente, também se apressou a enquadrar Kirk. Os obituários o apresentaram como “figura controversa”, “defensor do armamento civil”, “aliado de Trump”. Em alguns casos, a sugestão implícita era clara: morreu pelo veneno que defendia. A moldura narrativa foi imposta antes de qualquer reflexão e pesar de quem luta o bom combate. Em resumo, o assassinato de Kirk deixou de ser um atentado político contra a vida democrática para se tornar uma consequência aceitável. O assassino desaparece. O crime se dilui na caricatura do morto. A vítima é o algoz de si mesmo.

O assassinato de Charlie Kirk deixou de ser um atentado político contra a vida democrática para se tornar uma consequência aceitável

Convém lembrar quem era Charlie Kirk em sua prática política cotidiana. À frente do Turning Point USA, seu movimento consistia em instalar tendas em universidades, abrir mesas e chamar estudantes ao debate. Virou uma febre que atraía milhares de estudantes. Era, em essência, um militante do confronto verbal. Alguém que acreditava no poder de colocar posições em choque e enfrentar a divergência sem pedir licença. Pode-se discordar de suas teses, pode-se rejeitar suas convicções políticas, mas é difícil negar que seu método era público, visível, assentado na palavra.

Kirk encarnava justamente a prática de levar ideias impopulares ao coração das universidades, com disposição de encarar a hostilidade dos ambientes mais refratários.

Esse detalhe não é menor. A reação ao seu assassinato – tanto na celebração de figuras públicas quanto na pressa da imprensa em rotulá-lo como extremista de direita – mostra como o debate se degrada quando a política é reduzida a ódio inegociável. Taylor Robinson, o assassino, teria escrito em mensagem para o namorado que seu ódio era inegociável. Detalhe na palavra “inegociável”. Essa palavra condensa a falência: quando o ódio se cristaliza a ponto de não admitir negociação, o espaço da política se rompe. Explico.

O grande sociólogo Max Weber, em sua conferência A política como vocação, mostrou que toda ação política vive na tensão entre ética da convicção e ética da responsabilidade. A convicção exige fidelidade a princípios absolutos. A responsabilidade exige ponderar consequências, assumir a culpa pelas escolhas, carregar o peso do possível. Ou seja, a política só existe quando convicção e responsabilidade permanecem em tensão. Convicção sem responsabilidade degenera em fanatismo. Responsabilidade sem convicção degenera em cinismo.

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Antes de ser institucional, essa tensão entre convicção e responsabilidade deve ser interior. A política, no sentido profundo, é um exercício de vigilância constante contra o ódio que mora em cada um. A tentação é grande, porque o ódio simplifica. Ele transforma o adversário em inimigo, o debate em guerra, a divergência em ofensa pessoal. Resistir a essa tentação é a forma mais difícil de sobriedade. Aristóteles chamou sophrosyne (palavras muitas vezes traduzida por prudência) essa capacidade de manter medida, equilíbrio, vigilância. O contrário é a hybris, a arrogância desmedida que leva cidades e homens à ruína. A política, enquanto administração de ódios, é um esforço contínuo de sophrosyne.

O trágico é que vivemos numa época pouco preparada para esse exercício. Nossa geração foi treinada para reagir a tudo com a catástrofe fofa da hipersensibilidade. Sherry Turkle, em Alone Together, mostrou como a mediação das telas criou a ilusão de estarmos sempre juntos, quando na verdade permanecemos cada vez mais sozinhos. A vida digital permitiu editar sentimentos, encurtar silêncios, escapar do desconforto da presença. A experiência da alteridade foi domesticada pela falsa sensação de segurança. Quando tudo pode ser interrompido ou deletado por um clique, o outro efetivo deixa de ser alguém a enfrentar e passa a ser apenas uma interface descartável.

Jonathan Haidt levou essa análise ao campo da psicologia social. Em seu estudo sobre adolescentes intitulado Geração Ansiosa, ele demonstrou como a cultura das redes sociais ampliou a insegurança emocional, multiplicou quadros de ansiedade e depressão e reduziu a tolerância ao contraditório. Em suma, jovens foram educados para bloquear, silenciar, cancelar. Faltou-lhes justamente o exercício que sustenta a vida pública: suportar a presença do outro, inclusive quando essa presença traz o incômodo do antagonismo radical.

O contraditório é insuportável; então, o desaparecimento do adversário soa como vitória a ser celebrada

É nesse chão sujo que se compreende a reação à morte de Charlie Kirk. O contraditório é insuportável; então, o desaparecimento do adversário soa como vitória a ser celebrada. Nesse contexto, a política é o ritual de purificação, e a morte, ocasião de catarse.

O que se revela é a membrana frágil entre moral e política. A moral exige convicções. A política exige responsabilidade. Uma sociedade politicamente madura é aquela que consegue pôr na balança até suas convicções mais caras, sem por isso traí-las. Uma sociedade frágil é a que sucumbe ao ódio inegociável, que encontra prazer na eliminação do outro e disfarça o alívio como análise crítica.

Por isso, celebrar a morte de Charlie Kirk é sintoma dessa fraqueza desgraçada. É a incapacidade de sustentar o peso trágico da política. É sinal de uma geração que, hipersensível ao contraditório, busca no silêncio do outro a cura ilusória de sua própria miséria.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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