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Na última segunda-feira, dia 16, fui ao Teatro Renault, em São Paulo, para ouvir a escritora nigerina Chimamanda Ngozi Adichie. Não sou um leitor assíduo de sua obra, mas esperava uma palestra sobre literatura. Para minha surpresa, recebi um manifesto pela liberdade humana.
A literatura não serve a causas ideológicas. Serve à complexidade. “Não sou uma escritora feminista”, disse. “Sou uma escritora que também é feminista.” Essa nuance é ruptura. Uma coisa é escrever com uma visão de mundo. Outra é escrever para uma visão de mundo. A segunda opção transforma a arte em ferramenta. Submete a linguagem à ideologia e dilacera o sublime.
Chimamanda chamou isso de “usar uma faca enferrujada”. A metáfora é precisa. A literatura militante empobrece a linguagem. Reduz personagens a slogans. Dispensa a dúvida, a ambiguidade e, com elas, a verdade.
Chimamanda sabe que não há arte onde há vigilância moral
Para a escritora nigeriana, a imaginação é o último reduto da liberdade. E liberdade não é um enfeite político. É a condição fundamental da experiência criativa humana. Em um texto de 2023, ela já havia chamado atenção para isso: “Nenhuma empreitada humana requer tanta liberdade quanto a criatividade. Para criar, é necessário que a mente possa vagar a esmo, ir a nenhum lugar, a qualquer lugar, a todo lugar. É desse ondular que surge a arte”. Citou Günter Grass: “As barreiras caíram, a linguagem veio em ondas, a memória, a imaginação, o prazer da invenção”. E completou com uma lembrança pessoal – o “tremor interno” que sentia ao ler bons romances, o “choque glorioso” de se reconhecer em palavras escritas por um estranho. Isso é literatura: não um sermão, mas uma comunhão inesperada.
Depois da palestra, reli o ensaio publicado em 2023. Tema: Sobre a liberdade de expressão. Não fala de literatura diretamente, mas do clima que a cerca – e que a ameaça. Nesse texto, Chimamanda não fala em censura estatal. O problema agora é outro, é social. Sussurramos não por medo da prisão, mas do linchamento. O ambiente vigia e silencia. Ela escreve: “Essa nova censura social exige consenso ao mesmo tempo em que faz questão de não enxergar a própria tirania. Acho que ela é um prenúncio da morte da curiosidade, da morte do aprendizado e da morte da criatividade”. Sem liberdade, não há arte. Só panfleto.
No centro do texto, ela recupera o caso de Salman Rushdie. Em 2022, foi esfaqueado antes de uma palestra – ironicamente, sobre liberdade de expressão. Trinta anos antes, condenado à morte pelo regime iraniano por Os Versos Satânicos. Seu tradutor japonês foi assassinado. Editores, agredidos. Chimamanda é direta: “A violência física como reação à literatura não pode nunca, nunca ser justificada”. Fica dica para quem apoia o regime de Ali Khamenei, um regime que transforma ofensa em sentença de morte, que persegue mulheres, escritores, dissidentes. Enfim, deixarei a guerra para os especialistas.
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Meu interesse é a pergunta de Chimamanda: Os Versos Satânicos seria publicado hoje? Provavelmente não. Aqui, no Ocidente democrático, o veto mudou de forma. Vem do mercado, do medo, da autopreservação. A censura não é mais um ato do Estado. É uma atmosfera. Escritores se adiantam ao julgamento. Editam-se. Cortam-se. Silenciam-se. A literatura engajada nasce com a resposta pronta. Não investiga. Não pergunta. Serve à adesão, não à descoberta.
Um bom escritor não escreve para convencer. Escreve para chegar ao limite do que pode ser dito. O militante aponta o caminho. Hoje, esse modelo panfletário está a serviço da política identitária. A obra deixa de ser experiência humana. Vira testemunho. O autor vira porta-voz político da própria dor, da própria origem, da própria minoria. E quanto mais fiel à “identidade”, mais autorizado a falar. Rompe-se o pacto da literatura: a crença de que a linguagem pode tocar o que é comum, universal, partilhável.
Minha impressão com relação à palestra é que Chimamanda parece reagir a tudo isso. Não porque rejeite as experiências que narra – são mulheres nigerianas que habitam seus romances –, mas porque sabe que não há arte onde há vigilância moral. Confesso que saí da palestra com um certo alívio (embora incomodado com a qualidade das perguntas). Chimamanda ainda acredita que a literatura é fronteira final. Um lugar onde o humano – falho, incômodo, contraditório – ainda pode aparecer inteiro, compartilhar suas experiências. Nem todos sobrevivem a isso e tampouco desejam isso. E talvez seja por isso que a arte ainda assusta o ideólogo.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos




