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Francisco Razzo

Francisco Razzo

Francisco Razzo é professor de filosofia, autor dos livros "Contra o Aborto" e "A Imaginação Totalitária", ambos pela editora Record. Mestre em Filosofia pela PUC-SP e Graduado em Filosofia pela Faculdade de São Bento-SP.

A suprema utopia (ou distopia)

O cidadão exemplar da República de Aurélia

ditadura da toga
"Detinha-se diante das estátuas de juízes e erguia discretamente o chapéu, num gesto de reverência que misturava fé e gratidão." (Foto: Imagem criada utilizando Whisk/Gazeta do Povo)

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Na noite passada, Efraim fez o que sempre fazia: sentou-se diante da televisão para assistir ao pronunciamento do Supremo Conselho. Não era espetáculo raro. Em Aurélia, essas transmissões tinham a frequência de uma liturgia. O juiz, envolto em toga impecável, afirmava que a democracia da cidade estava sob ameaça e continuaria inviolável sob a guarda dos intérpretes da lei. Não havia nomes, não havia inimigos definidos. Bastava a palavra dita com gravidade.

Efraim ouviu em silêncio. Não sorriu, não reagiu com entusiasmo. Apenas pegou o celular e postou trechos das sentenças que julgava mais edificantes: “Aurélia permanece soberana contra as forças que a rondam”. Fechou o aplicativo e respirou aliviado; apagou uma preocupação íntima. Depois desligou a televisão e foi dormir em paz.

Era esse o hábito de Efraim: colecionar jurisprudências em suas redes sociais como outros colecionam fotografias. Enquanto seus vizinhos guardavam lembranças de viagens, ele guardava interpretações da Constituição. Chamava esse arquivo de “testemunho da liberdade”. No trabalho, repetia aos colegas as frases dos juízes com o mesmo zelo com que um catequista recita as Escrituras. Nunca discutia política, porque em Aurélia não se fazia política. Discutia a pureza da letra da lei. E, nesse exame minucioso, encontrava sentido para sua existência.

Aurélia é a cidade do amor e da paz. O poder não precisava de armas: vivia no ar. Bastava uma sentença e tudo se reorganizava

A cidade parecia perfeita. Em Aurélia, as ruas eram limpas, o comércio pulsava, os jardins sempre floridos. Não havia soldados nas esquinas, não se ouvia o ruído dos tanques, ninguém era arrastado por policiais. Não havia violência, crime organizado. Nada. Aurélia é a cidade do amor e da paz. O poder não precisava de armas: vivia no ar. Bastava uma sentença e tudo se reorganizava. As decisões surgiam como oráculos. Aurélia se orgulhava de ter superado a brutalidade da força com a elegância da interpretação.

Efraim caminhava pelas praças com essa convicção no peito. Detinha-se diante das estátuas de juízes e erguia discretamente o chapéu, num gesto de reverência que misturava fé e gratidão. Em casa, lia jornais que reproduziam as decisões mais recentes do Supremo Conselho em páginas densas, sem imagens, como se fossem salmos. Para ele, viver em Aurélia era viver na mais alta forma de civilização.

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Os anos ensinaram a Efraim a desconfiar de quem falava em liberdade sem adjetivos. “Liberdade plena” parecia-lhe perigosa, quase heresia. O certo era “liberdade regulada”, “liberdade responsável”, “liberdade constitucional”. A pureza da palavra o assustava, enquanto sua versão adjetivada lhe transmitia segurança. Afinal, nada valia mais do que a ordem; a soberania era seu espírito. E a ordem, em Aurélia, tinha rosto: o rosto sereno dos juízes.

Efraim lembrava vagamente de histórias antigas sobre ditadores de farda, lembranças distantes, quase folclóricas. O uniforme militar lhe parecia rústico, grosseiro. Em comparação, a toga era dignidade. Os antigos governavam pela força; os novos, pela lei. O contraste lhe parecia prova de evolução. O progresso de Aurélia estava em ter substituído o ruído dos tanques pela doçura das sentenças.

Naquela noite, depois de postar a frase do juiz, Efraim desligou o celular satisfeito. Dormiu profundamente. Ao amanhecer, repetiria o oráculo aos colegas de trabalho, certo de que a soberania da cidade estava intacta. Sentiria no olhar dos outros a mesma fé discreta, a mesma confiança silenciosa. Em Aurélia, todos aprendiam cedo que não há vida fora da tutela da lei.

O uniforme militar lhe parecia rústico, grosseiro. Em comparação, a toga era dignidade. Os antigos governavam pela força; os novos, pela lei

Mais do que medo de tiranos antigos, o que erige o novo senhor é a crença de que a democracia mora na caneta. A farda impõe-se ao corpo com barulho. A toga captura a alma em silêncio. A primeira exige resistência; a segunda exige consentimento, e ainda distribui medalhas de virtude para quem aprendeu a consentir e a sinalizar virtude cívica.

Entre nós, sussurro – sob risco de denúncia ao Supremo Conselho: o político da sentença é mais perigoso e brutal que o do tanque. O tanque convoca ao enfrentamento; a sentença convoca à adoração. E a adoração, em Aurélia, não enfrenta ninguém: apenas compartilha.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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