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Santo Agostinho, autor da “Cidade de Deus”, retratado nas Crônicas de Nuremberg, do século 15.
Santo Agostinho, autor da “Cidade de Deus”, retratado nas Crônicas de Nuremberg, do século 15.| Foto: Wikimedia Commons/Domínio público

Nas sociedades liberais modernas, Estado e religião foram definitivamente separados. Trata-se de um longo processo histórico cujo fundamento teológico remonta às origens do próprio cristianismo. Embora grande parte dos liberais progressistas negue, a separação entre Estado e religião é de origem cristã, pois a morte do Cristo na cruz significou, no âmbito político, o esvaziamento de todo o poder terreno como possibilidade de acesso direto ao divino. E, assim, mediante Cristo, instaura-se a soberania do Reino de Deus como um reino que não é deste mundo, mas que se anuncia neste mundo.

Para o liberalismo, deve haver entre indivíduos e Estado um vácuo moral. Os mais moderados assumem também a neutralidade moral do Estado; já os mais radicais defendem que o único conteúdo moral legítimo do Estado é aquele determinado por indivíduos esclarecidos, cujo critério de verdade só pode ser determinado pelo que entendem ser a ciência. Ou seja: o Estado deve ser moralizado por uma elite de especialistas herdeiros do Iluminismo radical moderno. Eles são os únicos capazes de oferecer aos indivíduos bem-estar e efetiva experiência de justiça. Só a verdade científica vos libertará! Eis a cidade dos homens.

O maior erro do individualismo moderno, liberal e subjetivista, é presumir que a fé cristã se fundamenta numa experiência de reflexão individual, de foro íntimo

Entretanto, essa visão de mundo político reduz a fé cristã a um delírio individual e que, por isso, deve ser domesticada no espaço da vida privada. No espaço público, os cristãos devem ser rechaçados. Afinal, rechaçar cristãos é defender os verdadeiros valores da liberdade, da igualdade, da racionalidade e da tolerância fraterna. Há nisso uma boa justificativa: cristãos são doentes, vivem num mundo de delírio; cristãos são intolerantes e responsáveis pelas maiores atrocidades históricas. Os fatos não mentem. Só gente ignorante e intolerante se recusa a enxergar o que a ciência comprova.

O caso é que o Estado moderno não pode ser confundido com a sociedade civil. Hegel, quem melhor entendeu a distinção entre Estado e sociedade civil, mostrou a importância das instituições mediadores entre o indivíduo e o Estado. Não há indivíduos, um pacto social entre eles e, de repente, brota um Estado legítimo. Há instituições mediadoras: família, escola, trabalho... e, depois, o Estado.

O maior erro do individualismo moderno, liberal e subjetivista, é presumir que a fé cristã se fundamenta numa experiência de reflexão individual, de foro íntimo. Em outras palavras, para o esclarecido liberal, o lugar da fé é, por excelência, na lata do lixo. Porque, para ele, fé deriva de um ato subjetivo do desejo mais abjeto de medo e controle. É, pois, um delírio individual, fruto da ignorância. E, quando indivíduos se juntam numa igreja, o delírio coletivo pretende assumir o poder do Estado e dominar toda a sociedade. Em resumo, para o liberal, o Estado laico serve para proteger a sociedade desse delírio.

Ora, mas vejamos. Não há instituição mediadora mais importante para as pessoas do que aquelas que fornecem sentido para seus dramas existenciais. Para um cristão, a Igreja é a instituição mediadora por excelência. Porém, ela não faz a mediação entre indivíduos e Estado, mas entre a comunidade de fé e o Reino de Deus. É, portanto, instituição pública e política a um só tempo. E talvez nada irrite mais os progressistas do que o fato de essa comunidade de fé querer vincular o cristão a um corpo político superior, em ordem e poder, ao Estado liberal – moralmente neutro.

A propósito, a legítima estrutura da fé para o cristão não se sustenta num pensamento individual, mas emerge do diálogo. A ênfase da fé não recaí no “eu”, subjetivo do individualismo, mas no “nós”, da comunidade moral. Trata-se sempre de uma experiência comunitária e historicamente dinâmica. Abraça uma tradição e aponta para a esperança num futuro celestial. Como diz Bento XVI: “torna-se evidente que a fé não resulta de alguma sutileza individualista e solitária em que ‘eu’ imagino alguma coisa, refletindo sozinho sobre a verdade, livre de todos os laços. É, antes, o resultado de um diálogo, expressão de audição, da recepção e da resposta que orienta o indivíduo para o plural da mesma fé, através da sintonia do ‘eu’ com o ‘tu’”. Portanto, de um “nós” que se reconhece cidadão da cidade de Deus.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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