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A universidade brasileira vive um entardecer estranho. Em vez de cultivar ciência e pensamento, treina pertencimento. Em vez de formar inteligências, certifica identidades. A decisão da Unicamp de criar cotas para pessoas trans é mais um ato – simbólico, barulhento e previsível – de instituições que já não distinguem inclusão de capitulação.
A lógica é a mesma: cria-se uma nova exceção em nome de uma velha promessa – justiça social, reparação histórica. Mas justiça, nesse novo vocabulário universitário, já não tem relação com equidade de condições nem com liberdade de pensamento. Por ser ideológica, converte-se em ajuste simbólico de feridas, operado por comissões de verificação e narrativas de sofrimento. Em vez de critérios objetivos – científicos –, exige-se o dom de saber contar a própria dor.
O cardeal Newman, no clássico The Idea of a University, defendia a universidade como o espaço onde o conhecimento é buscado por si mesmo, não por sua utilidade política ou valor afetivo. Ele não ignorava os dramas do mundo, mas sabia que o fim da universidade era outro: ordenar o pensamento, refinar os juízos, ensinar a pensar antes de ensinar a agir. A universidade é, no plano ideal, onde se aprende a ver.
A universidade ainda finge ser o que não é. Continua falando em excelência e ciência, enquanto se curva, em silêncio, ao jogo identitário
Mas a experiência universitária foi lentamente capturada por uma gramática emocional. A racionalidade cedeu lugar à representatividade. A pesquisa, que exigia método, paciência e confronto com a realidade, se curvou à pauta do momento, à sensibilidade dos militantes. A ciência já não é medida pelo rigor, mas pela adesão à causa. A neutralidade virou crime. A discordância, suspeita moral.
Jean-François Mattei, em A Barbárie Interior, alertava: a educação moderna passou a girar em torno do eu. O saber se fechou em sua interioridade narcisista. A universidade abandonou seu dever de mediação com a realidade. O conhecimento virou espelho. O estudante não quer conhecer o mundo – quer ver seu ressentimento transformado em ementa, bibliografia e política institucional. São radicais deformando a realidade.
É com esse espírito que a Unicamp aprovou, por unanimidade, as cotas trans. Não como parte de um diagnóstico sério sobre desigualdade educacional, mas como ritual de purificação institucional. Um gesto performático, guiado pela lógica da visibilidade e pelo imperativo moral da reparação. Quem discorda ofende. Quem pergunta agride. A unanimidade se tornou a nova forma de censura. E ninguém estranha o vocabulário padronizado: compromisso, acolhimento, diversidade. A semântica dos afetos ocupa o lugar da virtude.
O drama é que a universidade ainda finge ser o que não é. Continua falando em excelência e ciência, enquanto se curva, em silêncio, ao jogo identitário. Não enfrenta os problemas estruturais da educação básica. Não exige recursos para pesquisa. Não discute o declínio da leitura, da escrita e da argumentação. Mas aprova, com entusiasmo, toda política que alimente sua nova vocação: ser vitrine da justiça social.
Enquanto isso, a ciência definha. A dúvida se torna incômoda. O riso, arriscado. A aula, palanque. Os grandes livros, suspeitos. A pergunta já não é “o que esse estudante sabe?”, mas “quem ele representa?”.
Não se trata de negar desigualdades, nem de desconsiderar obstáculos reais. O problema é outro: a universidade já não nivela pelo saber. Prefere distribuir credenciais com base no sofrimento. O saber virou direito automático – não conquista. Ao fim, a pergunta inevitável: o que sobra de uma universidade que já não exige esforço, nem cultiva o pensamento, nem suporta o dissenso? Sobra a ideologia. Sobra a encenação. Sobra o ritual dos afetos.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos




