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"A Morte de Sócrates" (1787), obra do pintor francês Jacques Louis David
A Morte de Sócrates (1787), obra do pintor francês Jacques Louis David.| Foto: Wikimedia Commons

Historicamente, filosofia e democracia estão ligadas. Não à toa, os gregos inventaram não só a forma de organizar a sociedade como uma maneira peculiar de pensamento. Tudo isso, na verdade, está relacionado a um tipo de disposição para falar e ouvir. Justificar por argumentos, portanto.

Uma exigência fundamental deve ser feita a quem se dispõe ao diálogo filosófico e democrático: ser obrigado a acompanhar passo a passo cada etapa de desenvolvimento de um raciocínio.

Entretanto, há uma diferença entre o procedimento científico, adotado por filósofos e cientistas, e o procedimento adotado em disputas políticas. Justamente por isso, os gregos também distinguiram “silogismo”, enquanto método de demonstração científica, da “dialética”, como técnica de discussão pública, em que há claramente uma disputa de opiniões.

A virtude da cidade emerge como superação diante do declínio da virtude guerreira. No entanto, a democracia tem seus riscos e, portanto, está longe de ser perfeita

O silogismo filosófico depende de proposições verdadeiras, enquanto na mera dialética as proposições partem de lugares comuns previamente aceitas para iniciar qualquer debate. O animal político (zōon politikos) é o animal que fala (zōon logikon) e, na mesma proporção, põe-se à escuta. Não importa o grau de certeza que buscamos, discutir é sempre saber falar e saber ouvir.

Na Grécia antiga, a democracia não surgiu como um valor em si mesmo, mas como arte de governo; para ser mais preciso, como método de tomada de decisão coletiva em que a “maioria” detém o poder. Noutros termos, os cidadãos considerados livres detinham a possibilidade de resolver assuntos da cidade por meio do uso da palavra persuasiva e não mediante o uso arbitrário da autoridade do grito ou da espada.

A virtude da cidade emerge como superação diante do declínio da virtude guerreira. No entanto, a democracia tem seus riscos e, portanto, está longe de ser perfeita; e não devemos esquecer que a democracia foi duramente criticada por Platão na República.

O motivo é simples: a democracia foi responsável pela morte do filósofo Sócrates, mestre de Platão. Por isso, vale uma discussão acerca dos riscos inerentes à própria democracia, que hoje se tornou um valor domesticado por ideólogos. Afinal, se você não compartilha dos mesmos valores, só pode ser fascista. Obviamente, não se trata de democracia, mas de uma deformação desse valor.

Primeiro, a grande preocupação com a democracia foi exposta por Platão. Diante da multiplicidade das opiniões – o interior da caverna –, perde-se o critério do que é essencialmente a forma (eidos) da justiça, pois, enquanto governo de todos, só há na democracia a correspondência ao governo de ninguém, isto é, “o governo da desordem”, uma vez que o homem democrático é, em última instância, segundo Platão, “o homem da inconsequência e da imoralidade”. Em outras palavras, é o governo de homens sem parâmetros e, por isso, incapazes de conhecer o Bem, isto é, a essência do “objeto da ciência mais elevada”. Portanto, incapazes de reconhecer a “causa daquilo que existe de justo e belo”. Desde Platão, um dos riscos da democracia era justamente o de se despencar em relativismo.

Como bem definiu o filósofo canadense Charles Taylor, a partir de uma análise do livro The Closing of the American Mind, de Allan Bloom – coincidentemente, tradutor e especialista na República de Platão –, “o relativismo é em si uma ramificação de individualismo, cujo princípio é algo assim: todo mundo tem o direito de desenvolver a própria maneira de viver, fundamentada no próprio sentido do que é realmente importante ou de valor. As pessoas são convocadas a serem verdadeiras consigo mesmas e a buscar a própria autorrealização. Em que isso consiste, cada um deve, em última instância, determinar por si mesmo”. Platão certamente não discordaria dessa definição e nos alertaria para os riscos políticos desse tipo de relativismo moral.

Na ideia de “soberania coletiva” há justamente o risco de autodeterminação de um “todo orgânico” à custa da vida do “outro” que, ao se diferenciar do “todo”, torna-se o inimigo de um ideal de soberania cujo fundamento último é a vontade geral do povo

O segundo risco diz respeito à possibilidade de a democracia se tornar para si o seu próprio parâmetro. Aqui vale recorrer a um importante episódio da fundação da história do Ocidente. Sócrates foi certamente uma das primeiras figuras ilustres da história a ser julgado democraticamente; condenado à morte por um tribunal democrático cuja decisão era por meio da votação. Diz Platão que “o homem melhor e, além disso, o mais sábio e o mais justo dos homens” fora executado em nome dos interesses da cidade.

Na ideia de “soberania coletiva” há justamente o risco de autodeterminação de um “todo orgânico” à custa da vida do “outro” que, ao se diferenciar do “todo”, torna-se o inimigo de um ideal de soberania cujo fundamento último é a vontade geral do povo. Nesse sentido, o risco não é mais o do relativismo individualista, da desordem anárquica. Pelo contrário, agora o parâmetro aceitável e admissível só poderá ser o poder que emerge da autodeterminação “coletiva” do populismo.

Hoje ficamos assim, esmagados pelo individualismo relativista e pelo populismo autoritário. Como resolver? Trarei algumas ideias no próximo texto.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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