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Francisco Razzo

Francisco Razzo

Francisco Razzo é professor de filosofia, autor dos livros "Contra o Aborto" e "A Imaginação Totalitária", ambos pela editora Record. Mestre em Filosofia pela PUC-SP e Graduado em Filosofia pela Faculdade de São Bento-SP.

Instintos livres

A ética da sexualidade e a visão zoológica da vida

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Sigmund Freud, o pai da psicanálise. (Foto: Max Halberstadt/Domínio público)

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Vi um post no X que me chamou atenção, não só pelo conteúdo, mas pela adesão e engajamento: mais de 30 mil curtidas em poucas horas. A autora, uma psicóloga clínica, escreveu o seguinte: “Reprimir desejos e impulsos sexuais não te torna mais moral ou superior a ninguém, você só se torna mais neurótico e recalcado”. Na sequência, ainda completava: “Reconhecer os próprios desejos e ter uma relação saudável com a própria sexualidade é um dos caminhos para uma melhor qualidade de vida”. Além da contradição, que já demonstro para vocês, esse tipo de prescrição revela muito sobre a mentalidade de nossa época, onde o vocabulário da psicanálise se converte em ortodoxia emocional e guia de conduta.

Em um primeiro momento, a intenção do texto é rejeitar a moral tradicional em nome de uma autenticidade psíquica de sexualidade engajada. De fato, o que se lê é a substituição de um critério normativo por outro, agora baseando a vida saudável na satisfação dos desejos. O diagnóstico de “neurótico” ou “recalcado” já se apresenta como condenação. E você não precisa recorrer à moral religiosa ou filosófica. Basta apontar que alguém reprime para que seja tratado como recalcado e neurótico.

A linguagem psicanalítica, convertida em senso comum, torna-se referência para julgamentos existenciais. Não se questiona o sentido dos desejos nem sua legitimidade. O foco se reduz à administração eficiente dos impulsos. O autocontrole é uma espécie de patologia, classificado como sintoma a ser tratado. O ideal de “vida boa” passa a ser questão de manejo dos afetos e coloca de lado qualquer ideia de finalidade, projeto de vida ou virtude.

Ao prescrever a integração dos impulsos como garantia de qualidade de vida, esse tipo de discurso liberalizante esvazia o conceito de liberdade

Esse deslocamento do debate ético para o vocabulário da saúde psíquica não cria neutralidade, como espera a autora. Apenas institui uma nova hierarquia. Em vez do “pecador”, o “recalcado”; em vez do virtuoso, o “autêntico”, com uma sexualidade resolvida. Esse tipo de discurso rejeita o autocontrole como critério de superioridade, mas imediatamente consagra a abertura sexual como novo valor de vida. Ou seja, ela rejeita a repressão dos desejos como critério moral superior, mas a substitui por outro padrão que se pretende “mais moral” e, claro, “superior”: só quem “reconhece” e integra seus impulsos vive melhor. No fim, critica a moralidade tradicional para instaurar a sua própria, mascarada de “qualidade de vida”. Em suma, faz exatamente aquilo que critica: erige seu próprio padrão de superioridade, embora recuse o dos outros. A contradição é óbvia.

Ora, ao prescrever a integração dos impulsos como garantia de qualidade de vida, esse tipo de discurso liberalizante esvazia o conceito de liberdade. Não há espaço para conflito, ambivalência ou sacrifício, dimensões próprias da experiência humana. A tensão entre desejo e norma é eliminada como sintoma de atraso. Resta a adaptação do indivíduo ao próprio desejo, numa espécie de conformidade terapêutica.

Essa visão – que um amigo denomina “visão zoológica da vida” – reduz a experiência ética ao ajuste entre desejo e bem-estar subjetivo. Toda tentativa de distanciamento crítico em relação aos próprios impulsos é descartada como resquício de uma cultura repressora. O exercício da liberdade, entendido como a capacidade de escolher contra o próprio desejo ou de submetê-lo a outros fins, é rejeitado. Fica o ideal de espontaneidade, promovido como caminho para uma vida saudável e exigido como requisito para a felicidade – como se felicidade fosse um valor intuitivo.

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O fenômeno desta postagem indica uma transformação cultural profunda, mas que já está bem batida desde pelo menos 1960. A ética da autenticidade subjetiva e sexualmente comprometida se converte em imperativo normativo. O indivíduo é chamado a “viver sua verdade”, mas essa verdade já está previamente definida pelos códigos da emoção. Não se discute se um desejo é legítimo ou orientado a algum bem maior; basta que seja assumido e vivido “saudavelmente”. O sofrimento diante de dilemas morais, renúncia ou tensão interna é tratado como falha de autogestão.

No fundo, tudo isso me soa como um novo tipo de conformismo. Não se trata mais de ajuste a normas externas ou ideais de virtude, mas de submissão à autoridade do próprio desejo, tomado como expressão autêntica do ser. O sujeito já não tenta transcender seus impulsos; adapta-se a eles, racionaliza cada inclinação como parte de uma “natureza” inquestionável.

Lembro dos Sussurradores, grupo da série The Walking Dead, liderado por Alfa. Vivem entre zumbis, imitam seus comportamentos e rejeitam toda forma de civilização, em nome de uma suposta fidelidade à nova ordem pós-apocalíptica. Justificam cada ato pelo instinto, recusam qualquer mediação cultural ou moral. O valor está no imediato, no impulso bruto, como se abdicar de todo filtro fosse a única fidelidade possível à condição humana.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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