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O palco sempre foi laboratório de limites, não o confessionário. A condenação penal de Léo Lins — oito anos de prisão e multas — eleva nosso debate sobre liberdade de expressão a um novo patamar. Não se trata de mero escândalo. Interpreto-o como inflexão cultural: a Justiça, ao condenar um comediante por piadas de palco, desloca o problema da linguagem cômica do plano do experimento estético para o do crime. O recado está dado: nossos juízes reconfiguram os limites do riso e da crítica ao equiparar a palavra ficcional à palavra real, o laboratório da linguagem ao exercício soberano do tribunal.
O caso é o sintoma de um tempo em que se perdeu a distinção entre a experimentação estética da linguagem e a agressão direta. A sentença, fundamentada no conceito de “racismo recreativo”, rejeita a defesa do personagem e recusa qualquer apelo ao pacto ficcional. Não importa se o artista assume um “eu lírico” cômico, nem se seu público compreende o teatro do exagero como uma experiência narrativa-limite: toda palavra dita, ainda que entre aspas da comédia, é tratada como ação direta, com consequências penais graves. A liberdade artística, no contexto dessa hermenêutica judicial, passa a ser direito condicionado e não mais o risco vital da criação. A justiça virou o teatro do absurdo, aqui, a vida imitou a arte.
Historicamente, o palco da comédia não se confunde com a praça pública. O artista é menos um mensageiro da verdade do que um operador de paradoxos, tensões e hipérboles. Desde Aristóteles, a função da narrativa, seja trágica ou cômica, está em tensionar os limites da sensibilidade coletiva, não em doutrinar ou promover ódio. A mimese aristotélica — a arte enquanto imitação — não é reprodução fiel da realidade, mas laboratório simbólico onde vícios e virtudes são expostos, testados, subvertidos até seus limites. Na comédia, o escândalo é método; o exagero, linguagem; a provocação, experiência-limite.
A sentença, fundamentada no conceito de “racismo recreativo”, rejeita a defesa do personagem e recusa qualquer apelo ao pacto ficcional
Eu já havia feito isso em outra ocasião: o humor radical de Léo Lins deve ser comparado à lógica dos filmes de horror extremo, como “Jogos Mortais”, que os críticos rotularam de “tortura pornô”: ambos avançam até o limite do suportável, não para celebrá-lo, obviamente, ou fazerem apologia da violência, mas para submetê-lo ao juízo estético e moral do público. No humor, o sujo, o desprezível, o abjeto tornam-se matéria-prima para o riso: insisto, não como apologia, mas como experimentação. Desculpa insistir no termo, mas falar em “humor pornô” é reconhecer que a piada extrema não é proposta ética. Trata-se de uma simulação narrativa. O público aceita, mesmo que a contragosto, esse pacto provisório com o desconforto. A forma de sublimar o desconforto é, justamente, o riso catártico.
O problema é que esse pacto está em crise. O tribunal ignora o contrato ficcional e iguala a encenação ao ato. O resultado é um modelo de censura que, embora disfarçado de justiça social, suprime a função heurística do riso. Ao privilegiar a dignidade da pessoa humana e a igualdade — princípios que são, sem dúvida, essenciais —, a nova jurisprudência coloca-os num antagonismo rígido com a liberdade artística, como se a última fosse sempre, por definição, instrumento de opressão. Entretanto, a narrativa artística, em sua natureza, é laboratório moral: nela, a sociedade testa seus próprios limites, aprende a suportar (ou não) o intolerável, negocia a fronteira entre o razoável e o ultrajante.
É nesse ponto que a maturidade cívica se revela: uma sociedade incapaz de suportar o escândalo da ironia ou o teste da linguagem brutal está, em última instância, confessando sua fragilidade. Quanto menos toleramos a piada extrema, mais expostos estamos à tentação de sufocar todo o contraditório, de punir como criminoso o narrador, o personagem, o ficcionista, e tratar o criminoso como experiência artística (acho que vocês sabem bem do que eu estou falando).
É claro que não se trata de santificar o humorista ou de negar o sofrimento de grupos atingidos por piadinhas infames. A crítica social ao riso que reforça preconceitos tem sua razão de ser. Porém, transformar a narrativa artística em crime equivale a negar sua função de experimento estético, que não deixa de ser um experimento moral. Em última instância, é a sociedade que perde o laboratório onde poderia confrontar, sem sangue, seus próprios demônios. É como se abolíssemos o teatro para evitar o escândalo das tragédias. O que está acontecendo é basicamente o seguinte: a tendência recente do Judiciário — e, em larga medida, do senso comum midiático — é negar qualquer valor à suspensão do real proporcionada pela arte. O humorista, assim como o ator que encena um racista ou um assassino, passa a ser julgado como se fosse o próprio personagem. Não há mais espaço para o jogo simbólico: toda palavra vira ato, toda ironia se torna ofensa, toda ficção é reduzida a literalidade.
No fundo, o caso Léo Lins é menos sobre ele e mais sobre nós. Ele é o espelho de uma sociedade que perdeu a confiança na força educadora da ironia e na potência do riso como forma de crítica e autoconhecimento. O risco é para toda arte que ousa afrontar o senso comum, sacudir as certezas e exibir o intolerável. A liberdade artística, se não for reconhecida como laboratório moral da sociedade, será reduzida a manual de boas maneiras. Na mesma medida em que a democracia se torna um ritual de silêncios domesticados.
Em outras palavras, só sociedades autoritárias destroem as funções mais complexas da linguagem — aquelas que permitem à palavra não apenas informar, mas criar mundos, ironizar, provocar, deslocar sentidos, testar limites. A arte se tornar mera cartilha ideológica, incapaz de exercitar a imaginação e, portanto, a própria experiência da liberdade.




