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Para não se comportar como avestruz
| Foto: Myléne/Pixabay

Ler posts, interagir nos comentários e participar ativamente de debates nas redes exigem muita disposição intelectual e moral. Às vezes, muita energia psíquica para a dissimulação. Por exemplo, a pessoa lê algo que aparece na timeline do seu Twitter. O texto contraria tudo em que ela acredita. A pessoa tem grandes ideias na cabeça, ideias maravilhosas para o mundo; e o mais importante, fixou suas crenças como um monge fixa sua rotina.

No impulso, que já se tornou um hábito de reação contra ideias contrárias a suas, ela diz: “não gostei, não concordo”. Recebe inúmeras respostas. Reage, retruca, xinga, manda os outros estudarem. E ressalta num apoteótico “bando de burro”. Até que perde as estribeiras e “lacra” a conversa: “vocês não vão mudar meu ponto de vista”. Assim como há nomes para padrões de psicopatia, há um nome exato para esse perfil psicológico: “pensador avestruz”. Enfia a cabeça no buraco ideológico e faz de tudo para não sair dele.

Charles S. Peirce batizou esse método de fixação de crenças de “tenacidade” – em virtude do apego, da obsessão, da obstinação da alguém pelas próprias crenças. Ele diz: “quando, à aproximação de um perigo, o avestruz enterra a cabeça na areia, está provavelmente escolhendo o caminho mais fácil. Dissimula o perigo e diz calmamente que o perigo não existe; e, se está perfeitamente seguro de que o perigo não existe, por que levantaria a cabeça para verificar? Um homem pode atravessar a vida afastando sistematicamente de seus olhos tudo o que fosse suscetível de conduzi-lo a alterar opiniões”.

O “pensador avestruz” enfia a cabeça no buraco ideológico e faz de tudo para não sair dele

Um pequeno detalhe: Peirce escreveu isso em novembro de 1877. Em 1985, sem muita sofisticação filosófica, lembro-me do meu avô dizendo: “é burro como uma porta”.

Mudando ligeiramente de assunto. Noutro dia, li o seguinte argumento a favor do aborto: como a morte do cérebro determina o fim da pessoa, só será, portanto, considerado uma pessoa quando se der a emergência do cérebro. Antes disso, ou seja, antes do sistema nervoso, o aborto deverá ser permitido, pois não se trata de uma pessoa, mas de um amontoado de células. A coisa parece simples.

Só que esse argumento não leva em consideração um fato culturalmente interessante acerca da experiência humana diante do mistério da morte: uma pessoa não perde sua dignidade pessoal depois de morta. Um cadáver que foi privado de sua existência biológica não deverá ser menos pessoa por ser cadáver. Sei que parece estranho e até religioso demais. Explico: não se trata de religião; trata-se, na verdade, de um limite para a observação científica. A experiência humana mais básica sempre está em busca de um significado profundo para sua condição diante da morte.

O sentido da morte – e, portanto, da vida – vai muito além da compreensão material, limitada ao aspecto biológico. Se não fosse assim, poderíamos destruir todos os cemitérios e no lugar deles construir incineradores para cuidar dos restos mortais dos seres humanos. Com exceção de nazistas, comunistas e psicopatas, nunca tratamos os cadáveres como um mero amontoado de matéria em putrefação.

Se a nossa experiência com os mortos fosse reduzida a mero tratamento com pedaços de matéria biológica, bastaria fazer como os nazistas quando incineravam pessoas. Nós construímos cemitérios e não incineradores para cuidar dos nossos mortos por uma razão além desse parâmetro da existência material.

Esse argumento impõe um limite para o método biológico, já que a categoria de “pessoa” não se apresenta para o quadro de referencial teórico da biologia. Nesse sentido, mutatis mutandis, como a morte do cérebro não determina o fim de uma pessoa, não é a emergência do sistema nervoso responsável por determinar que um embrião – mesmo sem o sistema nervoso ainda – seja alguém ou tenha dignidade.

Alguém poderia contra-argumentar da seguinte maneira: “em aborto espontâneo, não velamos os restos mortais de embriões; logo, eles são apenas entidades biológicas e não pessoas”. Eu gostaria de deixar essa questão em aberto para um próximo texto. Enquanto isso, gostaria de saber como vocês, caros leitores, responderiam a esse contra-argumento. Só não vamos dar razão ao meu avô.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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