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Francisco Razzo

Francisco Razzo

Francisco Razzo é professor de filosofia, autor dos livros "Contra o Aborto" e "A Imaginação Totalitária", ambos pela editora Record. Mestre em Filosofia pela PUC-SP e Graduado em Filosofia pela Faculdade de São Bento-SP.

Religião e política

Católicos podem ser comunistas?

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Detalhe de retrato do papa Pio XI pintado por Philip de László. (Foto: Wikimedia Commons/Domínio público)

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O século 20 inventou novas religiões. Não de templos, mas de partidos e fardas. Não têm santos, mas líderes. Não têm sacramentos, mas marchas e palavras de ordem. Fascismo, nazismo e comunismo ofereceram salvação terrestre. Cada um prometia redenção: pela nação, pela raça, pela classe. As multidões acreditaram. O resultado foi o desastre. Perseguição e campos de morte.

Nesse cenário, Pio XI ergueu três encíclicas que ainda hoje funcionam como trincheiras espirituais contra a idolatria política. Não basta perguntar se um católico pode ser comunista. É preciso ir além: ele também não pode idolatrar a raça e o Estado.

Pio XI não fez concessões. Suas encíclicas não agradam diplomatas. Elas advertem os fiéis tentados a acreditar na política como esperança. De fato, Mussolini, Hitler e Stálin disputavam territórios. Pio XI entendeu melhor que qualquer outro que os regimes totalitários disputavam corações e consciências. Foi preciso declarar que a Igreja Católica não comunga dessas promessas, porque cada uma delas se apresenta como salvação e termina como idolatria.

Pio XI ergueu três encíclicas que ainda hoje funcionam como trincheiras espirituais contra a idolatria política

Em 1931, o alvo foi Mussolini. A encíclica Non abbiamo bisogno respondeu ao ataque contra a Ação Católica e à tentativa do regime de controlar a juventude italiana. O fascismo queria formar seus próprios fiéis. Pio XI reagiu acusando o regime de Mussolini de “estatolatria pagã”. O Estado transformado em deus. O Estado exigindo culto. O Estado domesticando consciências. O papa descreveu o fascismo como religião concorrente. E religião concorrente precisa de sacrifícios. O sacrifício era a liberdade interior.

Seis anos depois, Pio XI voltou-se contra Hitler. A encíclica Mit brennender Sorge foi escrita em alemão, distribuída em segredo e lida em todos os púlpitos no Domingo de Ramos de 1937. Uma afronta direta contra o mito da raça ariana. O texto denunciava a nova religião da raça e do sangue. Chamava-a de neopaganismo. Mostrava como o nazismo queria substituir a fé cristã por uma fé doentia na biologia. Em vez do Deus criador, a raça superior. Em vez do Cristo, o Führer. Em vez da Igreja, o partido.

Na ocasião, o papa nomeou a idolatria e reafirmou a dignidade humana contra a biologia de laboratório político. Lembrou que não há raça privilegiada, apenas homens e mulheres criados à imagem e semelhança de Deus. Foi uma das críticas mais diretas feitas ao nazismo antes da guerra.

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Na mesma semana, outra encíclica contundente: Divini Redemptoris. O inimigo agora era o comunismo ateu. Não, não se pode ser católico e comunista.

Pio XI classificou o marxismo como “intrinsecamente perverso”. O motivo era simples: ele nega Deus, reduz o homem à engrenagem da luta de classes, destrói toda transcendência. O comunismo prometia igualdade e, em troca, exigia a alma. E não devolvia nada além de perseguição e silêncio. Nada além de destruição.

O texto, contudo, não se limitou à denúncia. Pio XI advertiu os cristãos que a miséria social precisava de resposta. A Igreja deveria enfrentar a injustiça, porque o desespero dos pobres alimentava a propaganda comunista. A lucidez do papa estava na dupla advertência: o comunismo era perverso, mas a omissão social também.

Pio XI não pretendia derrotar Mussolini no parlamento, ou Hitler no campo de batalha. Sua meta era mais alta: preservar para a Igreja um espaço que sobrevivesse ao naufrágio dessas ideologias. E conseguiu

Essas três encíclicas formam um tríade indispensável para entender a relação da Igreja Católica contra os regimes totalitários. Contra o fascismo e sua idolatria do Estado. Contra o nazismo e sua idolatria da raça. Contra o comunismo e sua idolatria da classe. Três absolutizações de realidades parciais. Três falsas religiões. Três mentiras. Em todas as encíclicas, a mesma mensagem: a política não pode ocupar o lugar de Deus.

Para mim, a figura de Pio XI revela a diferença entre astúcia imediata e prudência histórica. Mussolini foi ágil. Usou a Igreja, arrancou reconhecimento nos Pactos de Latrão, apresentou-se como estadista. Hitler transformou um partido em culto. Stálin ergueu a classe operária como dogma. Todos pareciam indestrutíveis no comando de suas máquinas de destruição.

Pio XI enxergou além. Não pretendia derrotar Mussolini no parlamento, ou Hitler no campo de batalha. Sua meta era mais alta: preservar para a Igreja um espaço que sobrevivesse ao naufrágio dessas ideologias. E conseguiu. O fascismo ruiu em 1943; o nazismo, em 1945; o comunismo, no fim do século. A Igreja Católica permanece viva.

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Chamo atenção para uma diferença crucial: a política entendida como prudência histórica diante da mera astúcia política. Mussolini venceu manchetes, Hitler ganhou multidões, Stálin construiu um “império socialista”. Pio XI respondeu com três textos. Hoje, esses textos pesam mais que todas as tolices sanguinárias que eles ergueram.

O século 20 passou, mas a tentação idolátrica ressurge em cada geração, com outras máscaras. Ainda buscamos a salvação fácil: um salvador da pátria, um partido redentor, um programa que prometa o paraíso ao preço do próximo. A lógica não muda: a promessa de plenitude imediata em troca da liberdade. Quando a política esquece o próprio limite – e, sobretudo, o valor do que transcende o Estado, a raça, a classe – o preço é sempre o mesmo: destruição.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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