Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Francisco Razzo

Francisco Razzo

Francisco Razzo é professor de filosofia, autor dos livros "Contra o Aborto" e "A Imaginação Totalitária", ambos pela editora Record. Mestre em Filosofia pela PUC-SP e Graduado em Filosofia pela Faculdade de São Bento-SP.

Cristianismo

Entre o altar e o trono ­­— porque a Igreja de Cristo não é palanque para demagogos

Presidente Lula com imagem de Jesus Cristo no Palácio do Planalto. (Foto: Ricardo Stuckert/PR)

Ouça este conteúdo

A morte do papa Francisco provocou, como era de se esperar, uma avalanche de análises apressadas e especulações políticas. Entre tantas bobagens ditas por especialistas e demagogos, destacam-se as declarações do presidente Lula, que questionou a demora na escolha de um novo papa latino-americano. Disse ele:

“Nós precisamos pensar em diversificar a nossa relação. Porque senão a gente vai ficar mais um século pobre... Há quantos anos existe a Igreja Católica? Uns dois mil anos? E pela primeira vez um Papa latino-americano? Na região mais católica do mundo. Algo está errado.”

Quando se cobra da Igreja “representatividade”, impõe-se um critério mundano que desfigura sua identidade. A Igreja é corpo. Seu centro é Cristo. Para os católicos, é o Corpo Místico de Cristo. Não o palanque de Lula

Comento. Sim, algo está errado. E não é a Igreja. O erro está na expectativa de que ela funcione como instância de representatividade regional, obediente às categorias do mundo secular e à lógica identitária progressista. O que se exige, com esse raciocínio, é uma nomeação geopolítica conveniente. Uma Igreja para Lula chamar de “sua”.

Essa mentalidade me lembra um episódio decisivo da história. No século 11, a Igreja enfrentou a Querela das Investiduras — o conflito entre o imperador Henrique IV e o Papa Gregório VII. A disputa deve ser lida como um combate teológico e civilizacional sobre o lugar da Igreja no mundo: quem ordena os bispos? Quem estabelece a autoridade espiritual?

Henrique IV acreditava ter esse direito, como herdeiro da tradição carolíngia, que unificava trono e altar. Gregório VII, o mais importante reformador da cristandade, respondeu com firmeza da fé: o bispo de Roma não é vassalo do poder secular. É ele quem julga. Se necessário, excomunga. O imperador não pode investir um bispo. O poder espiritual não deriva do temporal.

Essa distinção foi selada simbolicamente na cena de Canossa — quando o imperador, humilhado, espera dias para ser readmitido à comunhão. Não se pode reduzir esse episódio a uma vitória institucional. Ele marca o nascimento da liberdade da Igreja. Daquilo que é seu por direito.

VEJA TAMBÉM:

A separação entre sacerdotium e imperium permitiu que a Igreja deixasse de ser engrenagem do poder secular e se tornasse o soberano contraponto sacramental. A teologia política medieval ainda não falava em “laicidade”, mas já intuía: a autoridade espiritual precisa ser independente para ser legítima. Sem essa separação, não haveria mártires. Haveria funcionários públicos de batina.

Esse princípio permanece. Cadê a “laicidade do Estado”, que tanto pregam? Pois bem: a Igreja escolhe seus pastores por discernimento interno — não por pressão de demagogos. O colégio cardinalício representa a comunhão católica. A eleição de um papa visa guardar a fé. Lamento dizer ter de explicar isso para o Lula.

A sucessão de Pedro é vocação do Espírito Santo. É chamado. É serviço para a glória de Deus. Imagina se os ministros do Supremo Tribunal resolverem se meter...

Francisco foi eleito em 2013 porque os cardeais viram nele o homem certo para guiar a Igreja. Ser argentino foi uma circunstância, não a razão. A Igreja não é movida por políticas de ações afirmativas, cotas e toda ladainha da militância progressista. O Espírito sopra onde quer — não onde Lula acha que deve soprar.

VEJA TAMBÉM:

A Igreja, por definição, é católica. Sua universalidade é escatológica, não identitária. Abrange todos os povos porque anuncia uma única verdade. Sua missão, ao espelhar a diversidade do mundo, é convocá-lo à sacrossanta unidade da fé. Quando se cobra da Igreja “representatividade”, impõe-se um critério mundano que desfigura sua identidade. A Igreja é corpo. Seu centro é Cristo. Para os católicos, é o Corpo Místico de Cristo. Não o palanque de Lula.

Dou um exemplo dessa arrogância identitária. A ideia de que um papa africano significaria uma agenda progressista disfarça o racismo com benevolência. O cardeal Robert Sarah, guineense, é prova incontornável perversidade dessa gente: africano, sim — porém, defensor intransigente da tradição litúrgica, da doutrina moral e da espiritualidade cristã. Em Deus ou Nada, Sarah denuncia a secularização da Igreja e sua adaptação ao mundo moderno. Sua origem não define sua voz católica: firme, profética e genuinamente “romana”.

A Igreja, portanto, não precisa de ídolos para animar a militância. Precisa de apóstolos. Não de diversidade performativa. De fidelidade. Lula, ao sugerir que 'algo está errado' na demora da escolha de um novo papa latino-americano, repete — ainda que sem saber — a velha tentação dos imperadores: ditar à Igreja o que ela deve ser. A Igreja, porém, serve a outro Senhor.

Conteúdo editado por: Jocelaine Santos

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.