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No fim do ano, o país se enche. Gente nas estradas, gente nos aeroportos, gente nas praias, gente nos shoppings. O Brasil aparece ocupado, barulhento, em deslocamento. Algo parece funcionar. Algo parece ter se ajustado. Essa impressão – tão compreensível quanto enganosa – passa a circular como diagnóstico econômico. Praias cheias, voos lotados e comércio aquecido ganham estatuto de evidência. As festas de fim de ano assumem o papel de prova: o Brasil prospera. O amor, de fato, venceu!
A sensação não é absurda. O calor empurra para fora de casa. O ano se encerra. Algum dinheiro extra circula. Dezembro sempre teve esse ritmo expansivo, e convém reconhecê-lo antes de qualquer crítica. O turismo acompanha o compasso: aviões cheios, hotéis ocupados, serviços em atividade intensa. Alguns setores respiram melhor. Isso acontece agora e aconteceu outras vezes.
É justamente aí que a leitura escorrega. O recorte cresce demais. A parte pede para falar pelo todo – é método, não acidente. Truque retórico. Bajulação. O país inteiro parece caber na cena do embarque. A economia se deixa resumir pela fotografia.
Uma parcela da imprensa e do debate público converteu a agitação de fim de ano em argumento de legitimação governista
Não sejamos ingênuos. Essa leitura se instala dentro de um ecossistema narrativo previsível – e, neste momento, politicamente interessado. Uma parcela da imprensa e do debate público converteu a agitação de fim de ano em argumento de legitimação governista. Números otimistas circulam com entusiasmo. A ideia de retomada encontra pouco atrito. Influenciadores acompanham o tom, tratando o fluxo sazonal como justificação da política econômica petista. O fim de ano fornece a moldura; a interpretação vem junto; a dúvida soa deslocada – ou pior, soa oposicionista.
A cena não mente, mas também não explica. O fluxo mostra presença, não fundamento. O consumo ajuda a sustentar a impressão: parcelamentos se alongam, limites se esticam, o ano seguinte começa comprometido. A presença vem antes. O ajuste costuma chegar depois.
Quem sustenta que a lotação de fim de ano atesta a saúde econômica do governo precisa demonstrar três coisas: que o consumo não está financiado por crédito insustentável; que a renda real das famílias cresceu no período; que a inadimplência não acompanha a curva de vendas. Até aqui, a demonstração não veio – vieram fotografias.
O crédito tem função real. Permite atravessar períodos difíceis. Suaviza choques. Sustenta o cotidiano quando a renda não acompanha. Não se trata de demonizá-lo – trata-se de entender seus limites. O crédito não cria base. Adia. Desloca. Quando passa a funcionar como extensão permanente da renda, algo se desequilibra. O shopping cheio oferece alívio visual. O poder de compra real segue silencioso.
É nesse ponto que a confusão intelectual se consolida. A lotação passa a explicar a si mesma. O dado visível se impõe. A interpretação se recolhe. Há um vício epistemológico antigo nesse gesto – o mito do dado: a crença de que certos fatos falam sozinhos, como se já viessem acompanhados de significado. O dado aparece; o juízo se ausenta. A cena cheia se beneficia dessa crença, e se beneficia duplamente quando há interesse em que ela prospere. É um truque antigo; sua eficiência vem precisamente de sua obviedade.
O consumo sustentado por endividamento aponta para pressão adiante. A renda real sem avanço limita leituras otimistas
A análise pede outro ritmo. Precisa olhar de onde vem o gasto, para onde vai a renda, como o crédito se comporta. Precisa acompanhar investimento produtivo, poupança interna, estabilidade das expectativas. Esses critérios existem. Não são secretos. Apenas não rendem boas imagens – e, por isso mesmo, não servem à narrativa que se quer consolidar. Quando entram em cena, o entusiasmo visual recua. O consumo sustentado por endividamento aponta para pressão adiante. A renda real sem avanço limita leituras otimistas. A inadimplência acompanha o ritmo das vendas. O quadro se recompõe longe da praia e do shopping.
Ainda assim, o fascínio persiste. O país agitado conforta. O barulho acalma. A fotografia sossega. O brasileiro preserva uma disposição rara para a convivência e a celebração, mesmo sob aperto prolongado. Essa energia existe e não deve ser desprezada. O equívoco começa quando ela passa a carregar um peso explicativo que não suporta – quando temperamento assume a forma de critério e a festa de dezembro vira o álibi para puxar saco de governo.
Feliz 2026!
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos




