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Francisco Razzo

Francisco Razzo

Francisco Razzo é professor de filosofia, autor dos livros "Contra o Aborto" e "A Imaginação Totalitária", ambos pela editora Record. Mestre em Filosofia pela PUC-SP e Graduado em Filosofia pela Faculdade de São Bento-SP.

Militância

O arquiteto da alma ou o carcereiro da besta humana

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Para a militância, mulheres reais vítimas de violência não passam de ferramenta no combate ao "patriarcado". (Foto: Imagem criada utilizando Whisk/Gazeta do Povo)

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A estatística é monótona; o pânico, rentável. O jornalismo militante descobriu uma bota fonte de renda: a realidade, em sua frieza numérica, engaja pouco. A solução é a dramaturgia das redes. Um crime bárbaro ocorre e aciona-se o mecanismo da suíte: editores ordenam a caça a qualquer – desculpa o eufemismo – “tropeço” análogo para fabricar a sensação de apocalipse iminente. O que era um dado criminal, uma ocorrência, de repente, por decreto de redação, eclodiu numa tsunami.

Na semana passada, o país se abalou diante do horror de Tainara Souza Santos, arrastada no asfalto pelo ex-companheiro. Sim, foi bárbaro. Só que a imagem do corpo dilacerado deveria despertar a sede de justiça. Na imprensa militante e no tribunal das redes, contudo, despertou a fome de narrativa. A vítima ainda agonizava e seus traumas foram convertidos em palanque. O corpo dilacerado cedeu à fúria performativa, e o algoritmo, que maximiza lucros e não sensibilidade, garantiu que a histeria superasse qualquer compaixão. Em vez de exigir a cabeça do monstro, a intelligentsia decidiu processar a “cultura”.

Acreditar que o bandido que arrasta uma mulher por um quilômetro deixaria de fazê-lo se tivesse assistido a uma palestra sobre equidade de gênero beira ao delírio

É fascinante observar a ginástica moral da elite pensante. Diante da carne dilacerada, o instinto humano clama por justiça: cadeia longa, cela fechada, fim da impunidade. O progressista ilustrado, porém, torce o nariz. Para ele, prender o assassino é uma vulgaridade simplista; sua missão é mais nobre: reformar a alma humana, proteger a mulher, lutar contra o feminicídio. O manifesto de uma influenciadora, viralizado na esteira da tragédia, resume essa alucinação burguesa:

"É impossível querer o fim dos feminicídios (...) e não defender a criminalização da cultura red pill, a regulação das redes sociais (...). Defender apenas o aumento de penas é um espantalho conservador..."

Há uma dose cavalar de narcisismo de classe nessa tese. O perfil do agressor de Tainara – como o da vasta maioria dos carniceiros domésticos – passa longe dos fóruns de discussão sobre masculinidade na internet. Estamos falando de sujeitos moldados pelo álcool, pelo tráfico, pela violência bruta e desarticulada. Não quero ser irresponsável aqui, mas o perfil de um sujeito assim é muito mais verossímil do que um incel.

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Acreditar que o bandido que arrasta uma mulher por um quilômetro deixaria de fazê-lo se tivesse assistido a uma palestra sobre equidade de gênero – ou se tivesse sido impedido de ler um blog machista – beira ao delírio. O agressor real não é um militante ideológico frustrado; é um criminoso. Ele não precisa de desconstrução; precisa de cadeia.

Mas a realidade suja estraga a tese limpinha. Então, sequestra-se o caso Tainara. O monstro brutal é metamorfoseado num “filho do patriarcado digital”. A culpa sai do CPF do indivíduo e dilui-se na “estrutura da sociedade”. O foco migra do tribunal penal para a fiscalização de piadas no Twitter.

Nutro pela estética red pill e sua choradeira de ressentidos o mesmo apreço que tenho por uma infecção intestinal. Rejeitar o remédio errado não significa amar a doença. Quando a militância alega que opiniões idiotas são a “porta de entrada” inevitável para o homicídio, ela opera um salto lógico totalitário. O Estado ganha a licença para policiar a potência antes do ato. Querem julgar a alma para não terem o trabalho sujo de punir o corpo.

Tainara não foi vítima de um “discurso de ódio”. Foi vítima de um homem mau que cedeu ao vício da violência

No fundo, assistimos a uma “venda casada” moral. O militante captura uma nobre intenção universal e cobra o resgate em adesão ideológica, completa. O argumento é uma chantagem suja: “assine minha pauta de censura e ideologia de gênero, ou você é cúmplice do sangue derramado”.

Essa falsa dicotomia é o refúgio dos canalhas. A repulsa ao mal não exige fidelidade à agenda progressista. É perfeitamente possível combater a violência doméstica sem fortalecer um Estado babá que criminaliza o pensamento. Rejeitar a engenharia social não nos torna insensíveis; torna-nos realistas, isto é, não negamos a natureza humana.

Tainara não foi vítima de um “discurso de ódio”. Foi vítima de um homem mau que cedeu ao vício da violência. A reforma do coração pertence a Deus e o Estado não pode ser o substituto. O Estado não é o arquiteto da alma humana, é o carcereiro da besta humana. Sua única nobreza reside em garantir, pela força da lei, que o vício de um não destrua a liberdade de todos.

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