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Francisco Razzo

Francisco Razzo

Francisco Razzo é professor de filosofia, autor dos livros "Contra o Aborto" e "A Imaginação Totalitária", ambos pela editora Record. Mestre em Filosofia pela PUC-SP e Graduado em Filosofia pela Faculdade de São Bento-SP.

Escravidão e racismo

A hipocrisia do moralismo identitário

Escravidão na Grécia Antiga
Pedaço de terracota do século 7.º a.C., na Grécia Antiga, mostrando escravos trabalhando em uma mina. (Foto: Domínio público/Wikimedia Commons)

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No texto desta semana, gostaria de analisar o artigo “Que tipo de racista eu sou?”, da psicanalista Vera Iaconelli. De todos os absurdos, eu gostaria de destacar dois trechos:
“Não apagaremos 500 anos de violência, nos quais a variedade fenotípica da espécie foi usada como justificativa para que uns escravizassem outros”, e “Não deixaremos de ser brancos, como não deixaremos de ser homens ou mulheres, pobres ou ricos. Nossa única escolha é decidir que tipo de racistas seremos”.

Duas frases de efeito. Poderosas, sem dúvida. E, no entanto, profundamente imprecisas – histórica e moralmente. É o tipo de bobagem repetida milhares de vezes até se transformar em um dogma. O dogma do identitarismo.

A primeira simplifica séculos de escravidão à questão da raça, ignorando as dinâmicas políticas que marcaram essa prática ao longo da história. A segunda vem toda travestida de um mea culpa público e, claro, escorrega para o determinismo cego e moralmente oportunista: nascemos presos à nossa identidade. O máximo que podemos fazer é escolher o tipo de vilão que seremos.

Gregos escravizavam gregos. Romanos reduziam seus inimigos à força de trabalho. Raça nem sequer era um tema. O fundamento da escravidão era econômico: mão de obra barata

No atual contexto da sensibilidade pública, é uma visão sedutora, principalmente para quem prefere o conforto das narrativas com culpados bem definidos e um roteiro moral previsível – para não dizer estúpido.

Com relação à história da escravidão, destaco o seguinte: muito antes de raça, vieram a guerra, as dívidas, as disputas tribais. A escravidão não era questão de fenótipo, mas de oportunidade. Poder e mercado. Quem perdia uma batalha virava escravo. Quem não pagava suas dívidas virava escravo. Gregos escravizavam gregos. Romanos reduziam seus inimigos à força de trabalho. Raça nem sequer era um tema. O fundamento da escravidão era econômico: mão de obra barata.

O conceito de raça, tal como o entendemos hoje – essa construção biológica-social e hierárquica – só surgiu no mundo moderno, entre os séculos 18 e 19. Carl Linnaeus (1707–1778), criador da taxonomia moderna, procurou classificar humanos em subgrupos baseados em características físicas e culturais. Ele já atribuía traços de personalidade e comportamento a cada grupo – uma forma rudimentar de determinismo biológico. Johann Blumenbach (1752–1840) foi considerado um dos “pais” do conceito moderno de raça. Ele dividiu a humanidade em cinco “raças” distintas, baseadas no crânio (craniometria). Blumenbach era menos rígido que seus sucessores, mas abriu as portas para as teorias que justificaram a hierarquização de humanos racialmente.

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Outro autor fundamental para a consolidação do racismo científico é Joseph Arthur de Gobineau (1816–1882), autor do Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas. Esse ensaio é uma das primeiras tentativas de sistematizar a ideia de raça como um fator determinante na história das civilizações, sustentando a tese de que o declínio das grandes civilizações era causado pela “degeneração racial” provocada pela miscigenação.

A escravidão baseada na raça, portanto, não tem 500 anos, com acredita Vera Iaconelli. Vale destacar que os europeus não inventaram a escravidão africana. Encontraram redes comerciais já estruturadas e intermediários locais prontos para negociar e se aproveitaram dela. Foram os próprios grupos africanos que capturavam seus rivais e os entregavam aos comerciantes. Reduzir essa história à mera “opressão branca” não só apaga a agência desses atores locais como infantiliza seu papel.

Entretanto, o mais curioso no artigo da Vera Iaconelli nem é o erro histórico. É a cilada moral construída a partir desse erro. Sob o disfarce de uma reflexão pessoal, surge o moralismo identitário: somos o que somos, um racista involuntário.

O discurso oferece uma crítica às estruturas de poder, mas nega a possibilidade de mudança. Ela diz que devemos questionar as “artimanhas diárias” que perpetuam a opressão, mas já avisa: certas coisas não mudam. “Não deixaremos de ser brancos”, lamenta.

Superar a hipocrisia moralista exige mais que indignação fingida. Requer precisão histórica, análise rigorosa e uma boa dose de coragem

Esse moralismo identitário é um paradoxo desconcertante. Quer a transformação do mundo, mas declara certos elementos imutáveis da própria capacidade de mudar. A transformação possível se limita à introspecção – a uma autorreflexão moral que não vai além do reconhecimento dos próprios privilégios. É a absolvição pós-moderna: confesse seus pecados identitários e durma em paz – continuarei a ser branca e privilegiada; a diferença é que agora sou consciente.

O que Iaconelli faz, no fundo, é mais confortável do que parece. Ao transformar identidade em destino, a autora escapa da responsabilidade prática. Denuncia as estruturas de poder, mas deixa suas próprias contradições ilesas. Trata-se de um moralismo circular, que começa e termina no mesmo ponto.

Superar a hipocrisia moralista exige mais que indignação fingida. Requer precisão histórica, análise rigorosa e uma boa dose de coragem.

Fato é que a história não absolve ninguém. E talvez seja essa a lição mais útil que o artigo “Que tipo de racista eu sou?” poderia ensinar para a própria autora: entre a responsabilidade histórica e a autoindulgência identitária, sempre vale a pena escolher o caminho mais difícil: refugiar-se na própria miséria moral ou deixar de ser hipócrita.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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