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Francisco Razzo

Francisco Razzo

Francisco Razzo é professor de filosofia, autor dos livros "Contra o Aborto" e "A Imaginação Totalitária", ambos pela editora Record. Mestre em Filosofia pela PUC-SP e Graduado em Filosofia pela Faculdade de São Bento-SP.

Exploração de menores

O pecado e a praça

felca vídeo
Youtuber Felca denunciou exploração e exposição precoce de crianças nas redes sociais. (Foto: Reprodução/YouTube/Felca)

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Como metade de todas as pessoas do universo, eu também assisti ao vídeo do Felca. Se não viu, veja. Vale a pena. Da minha parte, não esperava nada de novo do (não tão) submundo da internet. O tom foi preciso, quase um documentário de investigação. Limpo, sem frescuras. Sim, é desconfortante. Felca não performou virtudes. Mostrou a verdade crua a respeito do sistema de exploração que, longe de ser marginal, opera dentro do grande salão iluminado das redes sociais com seus algoritmos moralmente neutros e economicamente lucrativos.

Por um instante, quase que ingenuamente, achei que a conversa iria direto ao ponto. Falaríamos dos criminosos. Identificá-los, investigá-los e responsabilizá-los. Mais do que um ato de polícia, seria um ato de decência moral. É um problema de saúde pública também.

Só que o desvio veio rápido. Antes que o vídeo terminasse de viralizar, já havia gente repetindo com ar de urgência: “Precisamos regulamentar as redes sociais”. Das milhares de matérias, pincelei uma que dizia: “O Congresso recebeu 32 projetos de lei em menos de 24 horas após a divulgação do vídeo, a maioria propondo novas obrigações para plataformas digitais”. Isso aqui não é uma nota de rodapé. Trata-se do enredo inteiro mudando a cara do protagonista. A cena do crime já não era o assombroso pecado do criminoso, mas a praça pública.

Já esperava essa reação ao vídeo do Felca. Desmontar redes criminosas, expor cúmplices, punir gestores? Não. É um desfile de discursos virtuosos sobre a urgência de regular a praça e abraçar o pecador

Esse deslocamento é truque antigo. Na política, é o passe lateral para se ganhar tempo. No púlpito, é a parábola que começa num lugar e termina justificando controle. Em vez de olhar para a materialidade do crime, discute-se a arquitetura do discurso. É mais confortável falar de “ecossistema digital” do que pronunciar a palavra “predador”. É mais elegante redigir um relatório sobre “fluxos de informação” do que investigar quem, intencionalmente, manipulou o algoritmo para recomendar a próxima vítima.

Infelizmente, o vídeo do Felca virou o cavalo de Troia perfeito para os defensores da censura: uma causa moralmente inatacável que abre caminho para a agenda oportunista. É a velha política de usar o medo legítimo para legitimar ainda mais poder.

Santo Agostinho, em A Cidade de Deus, já nos ensinava sobre a diferença entre a paz verdadeira e a paz aparente. O pecado como raiz de toda desordem e decadência humana. O crime não é um acidente do mundo; é a sua herança. Não há sistema político ou regulação técnica que acabe com o desejo de dominar, de explorar, de submeter o outro à perversidade. A cidade dos homens carrega esta ferida. A tragédia é que o pecado não se contenta em só agir mal: ele também corrompe a forma como reagimos. Até mesmo a indignação pode ser sequestrada para servir a outros apetites.

Por isso o cenário tem algo de kafkiano: o acusado é o ambiente, não o pecador. Se um banco for assaltado, não se procura o ladrão; proíbe-se o dinheiro. A lógica se repete com naturalidade: indignação, pauta, projeto de lei. O crime sexual se dissolve até virar rodapé legislativo.

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Quem desloca o debate sabe que, na indignação, a diferença entre combater um ato e controlar um meio se apaga. A vítima vira detalhe; o crime, instrumento. A criança explorada já não é uma criança – é um argumento para mudar a lei. Noutras palavras, estatística.

O vídeo do Felca fica como documento raro: prova de que ainda se pode fazer investigação independente com rigor e impacto. E também como prova de que a verdade, sozinha, não se protege. Talvez o erro seja esperar que, da cidade dos homens, venha algo além de soluções para administrar o pecado – e não para vencê-lo.

Eu confesso, de verdade, que já esperava esse tipo de reação: desmontar redes criminosas, expor cúmplices, punir gestores? Não. É um desfile de discursos virtuosos sobre a urgência de regular a praça e abraçar o pecador.

No fim, o crime sobrevive remodelado, invisível, protegido pelo mesmo mecanismo que prometeu combatê-lo. É mais fácil vigiar a multidão do que caçar quem se esconde na escuridão. E, enquanto a cidade dos homens persistir em fingir que leis purificam corações, o pecado da soberba seguirá escrevendo as regras.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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