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Francisco Razzo

Francisco Razzo

Francisco Razzo é professor de filosofia, autor dos livros "Contra o Aborto" e "A Imaginação Totalitária", ambos pela editora Record. Mestre em Filosofia pela PUC-SP e Graduado em Filosofia pela Faculdade de São Bento-SP.

Vídeo

Catequese política

video neta lula
A visão de mundo simplista exposta no vídeo da neta de Lula. (Foto: Imagem criada utilizando Whisk/Gazeta do Povo)

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A frase parece solta no meio do vídeo: “Por 500 anos nos escravizaram, nos exploraram, nos mantiveram de joelhos”. É dita sem sinal de dúvida. Nenhuma pausa. Nenhuma hesitação. A neta do presidente Lula repete o que parecer soar como óbvio – como se os Estados Unidos fossem um ator histórico desde o início dos tempos.

Não se trata só de erro idiota. Guardam isso. O que chama a atenção é o modo como a afirmação se encaixa direitinho em um padrão mental. Tudo é culpa de um opressor externo, e o Brasil, naturalmente, ocupa o lugar do explorado. Pensar assim não exige análise nem memória. Basta repetir, repetir e repetir. É ladainha. O loop eterno do ressentimento milagroso.

Trata-se de uma narrativa de conforto e isenta de responsabilidades. Coloca os eleitos do lado certo da história. Esqueçam qualquer compreensão, para o bem ou para o mal, de como as coisas chegaram a esse ponto.

O vídeo da Bia, neta do Lula, não quer convencer ninguém. Quer ativar. Sua função é acionar certezas prévias, gerar identificação emocional, provocar engajamento da militância acrítica

Chama a atenção também a naturalidade da estúpida arrogância. Há uma confiança imune à verificação. O erro factual é o detalhe menor. O importante é a mensagem. Trump impõe tarifas aos brasileiros. E há, segundo ela, um símbolo de resistência: o Pix.

O sistema de pagamentos instantâneos, criado por técnicos do Banco Central, exalta, aparece como símbolo de soberania. Lula, diz ela, estaria defendendo o povo ao manter o Pix gratuito. Bolsonaro, ao contrário, teria entregado tudo aos americanos. A oposição entre patriota e traidor é construída com a gramática dos afetos. Eu sei, tudo é muito constrangedor.

A linguagem é velha; o formato, novo. A neta do presidente mimetiza o estilo do próprio vídeo que fez o governo recuar da tentativa de monitorar o Pix. Vocês sabem do que estou falando, certo? O vídeo da Bia, neta do Lula, não quer convencer ninguém. Quer ativar. Sua função é acionar certezas prévias, gerar identificação emocional, provocar engajamento da militância acrítica.

Em outro trecho, o tom patético sobe ainda mais: “E quando a Polícia Federal vai atrás de quem tentou entregar nosso país, quando finalmente vamos punir os traidores, aí vem a chantagem. A mensagem é clara: parem de investigar nossos fantoches ou nós esmagamos o povo de vocês”.

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Pensando bem, isso não é só patético. É revelador. A investigação já está justificada antes de começar. Não há suspeitos. Há culpados. Os “traidores” precisam ser punidos. A operação da PF não aparece como instrumento do Estado de Direito. Trata-se de um anto heroico de reparação moral. É um acerto de contas.

O fato é que essa lógica não admite disputa real. É, em essência, antipolítica. Ela transforma conflitos ideológicos em ação redentora. E toda redenção, nesse enquadramento, precisa eliminar a ambiguidade. O conflito não serve para pensar. Serve para purificar. Essa forma de desqualificação permite eliminar o debate sem precisar travá-lo. Nenhuma ambiguidade sobrevive. Só resta o justo e o traidor. Agora, uma dúvida retórica, por que ela? Enfim... poderia ser qualquer outro militante.

O que se vê, portanto, não é exatamente ingenuidade. Há cálculo. Mesmo o delírio é funcional. O erro histórico de “500 anos de exploração” é menos grave que a convicção com que é defendido. É essa certeza que importa. A certeza está ali. Não porque é verdadeira, mas porque é útil para a ideologia.

O vídeo da neta de Lula é mais do que um desvio. É um retrato. Mostra como a mentalidade dos nossos agentes políticos gira em torno de fantasmas

O problema é que esse tipo de enredo contamina a própria democracia. A política deixa de ser disputa regulada pelo que é comum e vira complexos campos de revelações. Quem governa se apresenta como intérprete exclusivo da vontade popular. Nesse cenário, as instituições são toleradas enquanto confirmam o sacramento. A democracia, assim, antes de se esvaziar pela força, apodrece pelo consentimento. Não pelo silêncio da maioria, mas pelo fervor dos convertidos.

O vídeo da neta de Lula, portanto, é mais do que um desvio. É um retrato. Mostra como a mentalidade dos nossos agentes políticos gira em torno de fantasmas. Mostra o quanto nossa imaginação histórica se alimenta de ressentimento. Mostra o quanto estamos dispostos a dobrar os fatos na guerra do bem contra o mal. O discurso já não serve para argumentar. Esquece. Ele serve para marcar posição e criar lealdade. Serve para sacramentar narrativas.

Para toda essa gente, fazer política é um ato salvífico. Eles acreditam piamente nisso. Procuram ímpios. Não disputam projetos. Querem redimir a própria imagem da história. A política, assim, é liturgia. E esse é o problema do vídeo da neta de Lula: ele não tem interesse em informar, propor ou debater. Ele é catequético.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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