Nos últimos anos, a Igreja Cristã vem sofrendo imensa pressão para aceitar a ideologia de gênero. O tema tem gerado muito debate e divisão em diversas igrejas e denominações sobretudo na Europa e nos Estados Unidos, na medida em que grupos progressistas dentro dessas tem abraçado ideias contrárias à ética sexual bíblica. Mas o testemunho cristão é uniforme quanto a não aceitar possibilidades de discussão quanto à atribuição biológica dos dois gêneros na humanidade, feminino e masculino, e à rejeição da normalização da homossexualidade na igreja – que é chamada a amar e acolher todo ser humano que se reconhece pecador diante de Deus e busca o perdão pela fé na morte de Cristo Jesus na cruz.
Em janeiro de 1994, líderes de onze organizações evangélicas e renovadas da Igreja Presbiteriana (EUA) - PCUSA, incluindo, por exemplo, os Presbiterianos em Oração, a Comunhão de Pastores Evangélicos da PCUSA, o Comitê Presbiteriano de Leigos e o Centro Presbiteriano de Estudos de Missões, se reuniram em Kentucky, Louisville, e prepararam uma declaração conjunta sobre o ensino bíblico sobre a ética sexual, e esta foi publicada como Uma Declaração de Fé e Vida. Era uma resposta aos debates acirrados ocorrendo na Igreja Presbiteriana (EUA) sobre questões de ética sexual.
No passado, o Catecismo Maior de Westminster, de 1647, ensinava: “Quais são os pecados proibidos no sétimo mandamento [‘Não adulterarás’]? Os pecados proibidos no sétimo mandamento [...] são: adultério, fornicação, rapto, incesto, sodomia e todas as concupiscências desnaturais; todas as imaginações, pensamentos, propósitos e afetos impuros; todas as comunicações corruptas ou torpes, ou o ouvir as mesmas; [...] a proibição de casamentos lícitos e a permissão de casamentos ilícitos; [...] os votos embaraçadores de celibato; a demora indevida de casamento; o ter mais que uma mulher ou mais que um marido ao mesmo tempo; o divórcio ou o abandono injusto”.
Mais recentemente, a Fraternidade Reformada Mundial publicou, em março de 2011, a Declaração de Fé da Fraternidade Reformada Mundial, e seu artigo sobre “leis e ética” afirma, sobre a “ética sexual e matrimonial”: “O casamento como uma monogamia heterossexual foi instituído por Deus, no qual homem e mulher deixam suas famílias e unem-se um ao outro em um relacionamento que dura por toda a vida. Os desejos sexuais são satisfeitos dentro dessa união, e os filhos nascidos devem ser criados e educados no conhecimento e prática cristãos. Desvios desse padrão acontecem por causa da pecaminosidade humana. A Bíblia proíbe relacionamentos sexuais fora do casamento, bem como a união entre pessoas do mesmo sexo. A dissolução de um casamento pelo divórcio é permissível se há adultério ou um dos cônjuges abandona irremediavelmente o outro.” Esta tem sido a compreensão cristã, firmada na Escritura Sagrada, durante toda a história da Igreja. E a Declaração, que é reproduzida abaixo, é uma importante contribuição ao resumir o ensino da Escritura sobre a sexualidade, e por isso merece um alcance muito além dos limites da Igreja Presbiteriana (EUA).
A estrutura da Declaração de Fé e Vida guarda semelhanças com a Declaração de Barmen, que foi aprovada em maio de 1934, no Sínodo de Barmen, que reuniu representantes das igrejas luteranas, reformadas e unidas. A Declaração de Barmen foi a resposta da chamada Igreja Confessante (Bekennende Kirche) à síntese do nacional-socialismo e do cristianismo liberal promovido pelos “cristãos alemães” que apoiavam o ditador Adolf Hitler. Seu texto na íntegra pode ser encontrado em minha obra Curso Vida Nova de teologia básica: teologia sistemática (São Paulo: Vida Nova, 2013), p. 255-260.
Seguindo a Declaração de Barmen, a Declaração de Fé e Vida rejeita vigorosamente compreensões não-cristãs sobre a sexualidade. Essas iniciam com as palavras “rejeitamos essas falsas doutrinas...”. Esta parte seria uma damnatio, que corresponde ao anathema bíblico, que significa excomunhão, condenação, repreensão enfática: “Mas, ainda que nós mesmos ou um anjo do céu vos pregue um evangelho diferente do que já vos pregamos, seja maldito. Conforme disse antes, digo outra vez agora: Se alguém vos pregar um evangelho diferente daquele que já recebestes, seja maldito” (Gálatas 1.8,9). A damnatio se refere à condenação de uma doutrina contrária a qualquer verdade do Evangelho do Senhor Jesus. Este elemento – “rejeitamos” – também está presente na Segunda Confissão Helvética, elaborada em 1562 por Heinrich Bullinger, e publicada em 1566 por Frederico III, Eleitor Palatino.
Nesse sentido, a Declaração de Fé e Vida é ainda mais relevante, na medida em que algumas denominações e grupos dentro de igrejas protestantes históricas, tais como anglicanas, batistas, luteranas, metodistas e presbiterianas, têm rompido nos últimos anos com a compreensão consensual da ética sexual cristã e com o ensino claro da Escritura Sagrada, que entende que o relacionamento sexual entre pessoas do mesmo sexo é pecado e incompatível com a moralidade cristã.
E o alerta feito por Wolfhart Pannenberg, em 1996, permanece relevante ainda hoje: “Este é o limite para uma igreja cristã que se reconhece sujeita à autoridade das Escrituras. Aqueles que instam a igreja a mudar a norma de seu ensino sobre este assunto precisam saber que estão promovendo cisma. Se uma igreja se permitisse chegar ao ponto em que cessaria de tratar a atividade homossexual como um afastamento da norma bíblica e reconheceria uniões homossexuais como relacionamento pessoal amoroso entre parceiros equivalente ao casamento, essa igreja não estaria mais firmada no alicerce bíblico; antes, ela estaria contra o testemunho inequívoco das Escrituras. Uma igreja que tomasse esse passo deixaria de ser a igreja una, santa, católica e apostólica”.
Os que prepararam a Declaração de Fé e Vida não estão sozinhos em discernir paralelos com a perversão do cristianismo pelos cristãos alemães – que era o resultado de dois séculos de uma longa tradição de considerar a revelação de Deus na Escritura insuficiente – com a tendência generalizada de hoje em permitir que os valores seculares contemporâneos influenciem a ética cristã. Contra essas tendências, esta Declaração soa como um testemunho e protesto importante na atualidade:
UMA DECLARAÇÃO DE FÉ E VIDA
I
Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção e para a instrução na justiça, para que o homem de Deus seja apto e plenamente preparado para toda boa obra. (2Timóteo 3,16-17 NVI).
Afirmamos que as Sagradas Escrituras do Antigo e do Novo Testamento são nossa única autoridade de fé e prática. As Escrituras mediam para nós a Palavra viva, Jesus Cristo, pelo poder do Espírito Santo, que sempre fala e trabalha em harmonia com a Palavra escrita. Transmitida a nós pela comunhão dos santos, resumida em nossas confissões de fé, estudada e aberta a nós por professores e pregadores na comunidade da Igreja, as Escrituras são sempre confiáveis, pois vivemos diariamente por suas verdades. Tudo o que é necessário para a fé e para a vida é declarado explicitamente na Escritura ou pode ser deduzido dela e afirmamos que ela fornece sua própria interpretação. Por ser ela a revelação de Deus não é limitada pela cultura ou pelo tempo. A Bíblia é, portanto, a autoridade a que somos chamados a obedecer em cada circunstância.
Portanto, rejeitamos essas falsas doutrinas:
- que o significado da Escritura é apenas uma questão de interpretação individual, separada de sua interpretação de suas próprias palavras, de seu contexto histórico, ou à parte da fé apostólica e das confissões da Igreja universal;
- devido à distância histórica, cultural e científica do nosso tempo, a Bíblia não é mais aplicável;
- que o Espírito Santo do Deus Trino fala de forma contrária a Jesus Cristo como ele é mediado a nós através da Palavra escrita na Bíblia;
- que a consciência humana, sentimento, sabedoria, pesquisa científica ou conhecimento médico, psicológico e sociológico são suficientes em si mesmos, à parte – ou mesmo contra – a Bíblia, para discernir a vontade de Deus.
II
Acaso não sabem que o corpo de vocês é santuário do Espírito Santo que habita em vocês, que lhes foi dado por Deus, e que vocês não são de si mesmos? Vocês foram comprados por alto preço. Portanto, glorifiquem a Deus com o corpo de vocês. (1Coríntios 6,19-20 NVI).
Afirmamos que as Sagradas Escrituras do Antigo e do Novo Testamento ensinam que pertencemos – de corpo e alma, na vida e na morte – não a nós mesmos, mas a Deus. Deus é a Palavra eterna pela qual fomos criados. Jesus Cristo é o Verbo encarnado, por cujo sacrifício somos redimidos, e é a Palavra viva que manifesta a nova humanidade em sua própria vida e na nossa. Embora fosse celibatário, nada lhe faltava para a plena comunhão com Deus e com a humanidade. É pelo poder de seu Espírito Santo que somos capazes de segui-lo como discípulos obedientes, rejeitando as paixões de nossa natureza pecaminosa e escolhendo, em vez disso, viver uma vida santa em nossa conduta. O Trino Deus – Pai, Filho e Espírito Santo – é soberano sobre todas as circunstâncias de nossas vidas, e somente em comunhão com este Deus podemos ser curados.
Portanto, rejeitamos as falsas doutrinas:
- que podemos reivindicar autonomia e domínio sobre nossos próprios corpos;
- que a relação sexual é necessária para a integridade pessoal ou plena comunhão entre as pessoas;
- que não é possível controlar e disciplinar a expressão de nossos desejos sexuais;
- que podemos ser discípulos fiéis de Jesus Cristo, independentemente do poder transformador de seu Espírito, que nos permite seguir seu padrão de obediência a Deus.
III
[Jesus] respondeu: “Vocês não leram que, no princípio, o Criador os fez homem e mulher e disse: Por essa razão, o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher, e os dois se tornarão uma só carne? Assim, eles já não são dois, mas sim uma só carne. Portanto, o que Deus uniu, ninguém o separe”. (Mateus 19,4-6 NVI).
Afirmamos que as Sagradas Escrituras do Antigo e do Novo Testamento nos dizem claramente que Deus em seu amor por nós nos criou homem e mulher, e declarou sua criação “boa”. A Escritura nos diz que Deus pretendeu desde o início, como pretende hoje, apesar de nosso pecado e da queda de toda a criação, que nossos desejos sexuais fossem satisfeitos apenas no contexto do casamento de uma mulher e um homem, em uma fiel e alegre união de uma só carne. A Escritura nos diz que o casamento de marido e mulher tem o propósito de ajuda mútua, salvaguardando, sustentando e desenvolvendo seu caráter moral e espiritual, e para a propagação de filhos e a sua criação na disciplina e instrução no Senhor. Além disso, Deus condenou expressamente as relações sexuais fora do casamento. Essa proibição se aplica a pessoas casadas que cometem adultério, ao relacionamento sexual entre homens e mulheres solteiros e, porque a ordem de Deus pretende que o relacionamento sexual seja entre homem e mulher, à prática homossexual, uma perversão da ordem criada por Deus.
Portanto, rejeitamos as falsas doutrinas:
- que o corpo, os desejos sexuais do homem e da mulher um pelo outro e as instituições do casamento e da família são estranhos à ordem criada por Deus; que são questões indiferentes em nossa nova vida em Jesus Cristo; e que temos o direito de alterá-los ou redefini-los arbitrariamente de acordo com nossas circunstâncias sociais ou desejos pessoais;
- que as relações sexuais requerem apenas consentimento mútuo, sem levar em conta os laços bíblicos do casamento;
- que Deus deseja que as pessoas se envolvam em atos adúlteros ou relação sexual homossexual ou outra relação sexual não conjugal, e que Deus declara tal relação como um “bom presente”.
- que a compaixão e a justiça cristã exigem que a Igreja tolere relações sexuais adúlteras e homossexuais e outras relações sexuais não conjugais entre seus membros, e considere aqueles que se envolvem em tais práticas como vivendo um modo de vida que demonstra o evangelho cristão e os prepara para a ordenação como presbíteros, diáconos ou ministros da Palavra e do sacramento.
IV
Por isso, temos o propósito de lhe agradar, quer estejamos no corpo, quer o deixemos. Pois todos nós devemos comparecer perante o tribunal de Cristo, para que cada um receba de acordo com as obras praticadas por meio do corpo, quer sejam boas quer sejam más. (2Coríntios 5,9-10 NVI).
Afirmamos que as Sagradas Escrituras do Antigo e do Novo Testamento testificam que todos nós somos feitos à imagem de Deus, responsáveis perante ele, que de Deus não se zomba, e ele nos responsabiliza por sua vontade revelada a nós em sua Palavra. A Bíblia nos avisa que Deus traz seu julgamento, tanto presente quanto futuro, sobre aqueles que o desafiam, mas as Escrituras também prometem que Deus perdoa e transforma todos os que se voltam para ele em arrependimento e confiança.
Portanto, rejeitamos as falsas doutrinas:
- que a atividade sexual persistente e impenitente que é proibida pelas Escrituras é aceitável a Deus e livre de seu julgamento presente e futuro;
- que algumas práticas, embora sejam contrárias às Escrituras, estão tão enraizadas na personalidade que suas expressões são inevitáveis e não podem ser alteradas pelo poder de Deus.
Convidamos todos aqueles que afirmam as verdades e rejeitam os erros apresentados nesta Declaração e que reconhecem esses ensinamentos claros e consistentes da Palavra de Deus, a relembrar esses ensinamentos enquanto proclamam o evangelho e vivem seus relacionamentos em comunidade. Que nosso propósito seja que o povo de Deus seja instruído, advertido e corrigido, para que cresça até a maturidade espiritual e que possa viver uma vida santa e irrepreensível diante de nosso Senhor em amor.
Graças a Deus nosso Pai, e ao Senhor Jesus Cristo, que se entregou por todos nós, para que por graça, por meio da obra do Espírito Santo, sejamos salvos pela fé.
Que o próprio Deus, o Deus da paz, o santifique totalmente. Que todo o seu espírito, alma e corpo sejam mantidos sem culpa na vinda de nosso Senhor Jesus Cristo. Aquele que te chama é fiel e fará isso. (1Tessalonicenses 5,24 NVI).
Publicado na revista Teologia Brasileira, Edição 83 (2020), de Edições Vida Nova. Reproduzida com permissão. Publicada originalmente como “A Declaration for Faith and Life”, no Scottish Bulletin of Evangelical Theology 12.1 (Spring 1994), p. 3-7.
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