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O papa Bento XVI durante visita ao Brasil, em 2007.
O papa Bento XVI durante visita ao Brasil, em 2007.| Foto: Rodolfo Buhrer/Arquivo Gazeta do Povo

O conceito cristão de guerra justa (bellum iustum) almeja garantir que, por meio de uma série de critérios que devem ser cumpridos, um conflito militar seja considerado justo e moralmente aceitável. Nesse artigo, abordo o conceito de guerra justa nos escritos de Bento XVI, seguindo a síntese oferecida por Pedro Erik Carneiro, em seu livro Teoria e tradição da guerra justa: do Império Romano ao Estado Islâmico. Bento XVI, nascido Joseph Ratzinger, foi papa da Igreja Católica de 2005 a 2013, quando abdicou, se tornando papa emérito até seu falecimento, em 2022. Renomado teólogo, foi mundialmente conhecido e apreciado, inclusive por protestantes, como testemunha a excelente coletânea The Theology of Benedict XVI: A Protestant Appreciation, com contribuições de, entre outros, Katherine Sonderegger, Gregg Allison, Kevin Vanhoozer, Fred Sanders, Carl Trueman e Peter Leithart. Foi professor universitário e serviu como perito teológico no Concílio Vaticano II. Também teve muita influência durante o pontificado do papa João Paulo II, como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Escreveu inúmeros livros sobre os mais diversos assuntos da fé cristã, e sua trilogia Jesus de Nazaré se tornou um best-seller mundial e uma referência nos estudos sobre a pessoa e obra do único Salvador, como revelado nos Evangelhos. Seus livros e discursos sempre foram dignos de estudo, pela profundidade de seu conhecimento, aliado a uma piedade bem evidente. Foi crítico ferrenho do marxismo, da Teologia da Libertação, do secularismo e do relativismo, todos considerados corretamente inimigos da Escritura e da Igreja.

Apoiando-se na tradição anterior

De acordo com Pedro Erik, Bento XVI respeitou a tradição cristã anterior sobre a guerra justa, que aponta a necessidade de guerra em algumas circunstâncias. Ele desejou manter o ensino tradicional, mas alertou que devemos adaptar esta tradição aos novos riscos militares, como, por exemplo, o surgimento das bombas atômicas. Ele escreveu:

“Eu diria que nós não podemos ignorar que, na grande tradição cristã, e em um mundo marcado pelo pecado, quaisquer agressões maléficas que ameacem destruir não apenas os valores e pessoas, mas a própria imagem da humanidade. [...] Eu penso que a tradição cristã sobre este ponto tem fornecido respostas que devem ser atualizadas com base nos novos métodos de destruição e nos novos perigos. Por exemplo, pode não haver nenhuma maneira para que uma população se defenda de uma bomba atômica. Assim, estes novos riscos devem ser atualizados. Mas eu diria que não podemos excluir totalmente a necessidade, a necessidade moral, para defender adequadamente as pessoas contra os agressores e valores injustos.”

Outra adaptação da doutrina tradicional aos novos tempos ocorreu em 2002, quando, diante da possibilidade de guerra no Iraque, Ratzinger, ainda cardeal, argumentou contra esta guerra, dizendo que “o conceito de ‘guerra preventiva’ não aparece no Catecismo da Igreja Católica”.

Bento XVI respeitou a tradição cristã anterior sobre a guerra justa, que aponta a necessidade de guerra em algumas circunstâncias

O discurso em Ratisbona

Bento XVI fez seu discurso mais lembrado na Universidade de Ratisbona, na Alemanha, no dia 12 de setembro de 2006. O discurso trata do relacionamento entre a fé e a razão, mas foi mal-entendido pelo mundo islâmico. Como lembra Pedro Erik, em retaliação a este discurso, muçulmanos bombardearam igrejas cristãs, realizaram atos de violência e decapitaram o padre Boulos Behnam, cujo terrível sofrimento, de sua família e dos cristãos do Iraque, foi assim descrito:

“O drama começou em 9 de outubro, quando o padre Boulos Islander Behnam, da Igreja Ortodoxa Síria Santo Efrém, em Mosul, foi raptado na rua. Os sequestradores exigiram US$ 350 mil em resgate da família do padre, mas aparentemente reduziram o montante para US$ 40 mil, se a igreja do padre concordasse em denunciar as críticas ao Islã feitas pelo papa. Apesar de já ter se distanciado publicamente das declarações do papa, a congregação Santo Efrém devidamente fez 30 outdoors ao redor de Mosul criticando o papa. Enquanto isso, sua família levantou o dinheiro do resgate. Nada disso satisfez os sequestradores. Dentro de 48 horas, o cadáver do padre Behnam foi descoberto, com os braços e as pernas decepadas, junto com sua cabeça, colocada sobre o seu torso. Seus braços mostravam sinais de tortura. Alegadamente, os assassinos ligaram para a viúva, informando que o marido merecia morrer porque ele se recusou a se converter ao islamismo. Quinhentas pessoas compareceram ao seu funeral.”

Por que o mundo islâmico ficou tão furioso com o discurso de Ratisbona? O principal argumento do discurso foi: “Não agir segundo a razão é contrário à natureza de Deus”. Como destacou Pedro Erik, os assassinos terrível e perversamente ilustraram exatamente o ponto demonstrado no discurso de Bento XVI.

No discurso em Ratisbona, Bento XVI ressaltou que Deus é logos (razão) e observou a “recíproca aproximação interior entre a fé bíblica e a indagação filosófica do pensamento grego”. O que ofendeu os muçulmanos foi a citação, por Bento XVI, de um livro do teólogo católico libanês Theodore Khoury (Manuel Paléologue. Entretiens avec un Musulman, Introduction, texte critique, traduction et notes par Theodore Khoury), na parte que trata de um diálogo entre o imperador cristão bizantino Manuel II Paleólogo e um estudioso persa, em 1391, em Ancara, quando Manuel II explicou o que pensava sobre a “guerra santa islâmica” (jihad) e Maomé. Disse Bento XVI:

“No sétimo colóquio (διάλεξις – controvérsia) publicado pelo prof. Khoury, o imperador aborda o tema da jihād, da guerra santa. O imperador sabia seguramente que, na sura 2, 256, lê-se: ‘Nenhuma coação nas coisas de fé’. Esta é provavelmente uma das suras do período inicial – segundo uma parte dos peritos – quando o próprio Maomé se encontrava ainda sem poder e ameaçado. Naturalmente, sobre a guerra santa, o imperador conhecia também as disposições que se foram desenvolvendo posteriormente e se fixaram no Alcorão. Sem se deter em pormenores como a diferença de tratamento entre os que possuem o ‘Livro’ e os ‘incrédulos’, ele, de modo surpreendentemente brusco – tão brusco que para nós é inaceitável –, dirige-se ao seu interlocutor simplesmente com a pergunta central sobre a relação entre religião e violência em geral, dizendo: ‘Mostra-me também o que trouxe de novo Maomé, e encontrarás apenas coisas más e desumanas tais como a sua norma de propagar, através da espada, a fé que pregava’. O imperador, depois de se ter pronunciado de modo tão ríspido, passa a explicar minuciosamente os motivos pelos quais não é razoável a difusão da fé mediante a violência. Esta está em contraste com a natureza de Deus e a natureza da alma. Diz ele: ‘Deus não se compraz com o sangue; não agir segundo a razão – σὺν λόγω – é contrário à natureza de Deus. A fé é fruto da alma, não do corpo. Por conseguinte, quem desejar conduzir alguém à fé tem necessidade da capacidade de falar bem e de raciocinar corretamente, e não da violência nem da ameaça... Para convencer uma alma racional não é necessário dispor do próprio braço, nem de instrumentos para ferir ou de qualquer outro meio com que se possa ameaçar de morte uma pessoa...’.

Nesta argumentação contra a conversão através da violência, a afirmação decisiva está aqui: não agir segundo a razão é contrário à natureza de Deus. E o editor, Theodore Khoury, comenta: para o imperador, como bizantino que cresceu na filosofia grega, esta afirmação é evidente; mas não o é para a doutrina muçulmana, porque Deus é absolutamente transcendente. A sua vontade não está vinculada a nenhuma das nossas categorias, incluindo a da razoabilidade. Neste contexto, Khoury cita uma obra do conhecido islamita francês R. Arnaldez, onde este assinala que Ibn Hazm chega a declarar que Deus nem sequer estaria vinculado à sua própria palavra e que nada O obrigaria a revelar-nos a verdade. Se fosse a sua vontade, o homem deveria inclusive praticar a idolatria.

Aqui gera-se um dilema, na compreensão de Deus e consequentemente na realização concreta da religião, que nos desafia hoje de maneira muito direta: a convicção de que o agir contra a razão estaria em contradição com a natureza de Deus faz parte apenas do pensamento grego ou é válida sempre e por si mesma? Penso que, neste ponto, se manifesta a profunda concordância entre o que é grego na sua parte melhor e o que é a fé em Deus baseada na Bíblia. Modificando o primeiro versículo do livro do Gênesis, o primeiro versículo de toda a Sagrada Escritura, João iniciou o prólogo do seu Evangelho com estas palavras: ‘No princípio era o λόγος’. Ora, é precisamente esta a palavra que usa o imperador: Deus age ‘σὺν λόγω’, com logos. Logos significa conjuntamente razão e palavra – uma razão que é criadora e capaz de se comunicar, mas precisamente enquanto razão. Com este termo, João ofereceu-nos a palavra conclusiva para o conceito bíblico de Deus, uma palavra na qual todos os caminhos, muitas vezes cansativos e sinuosos, da fé bíblica alcançam a sua meta, encontram a sua síntese. No princípio era o logos, e o logos é Deus: diz-nos o evangelista. Este encontro entre a mensagem bíblica e o pensamento grego não era simples coincidência. A visão de São Paulo – quando diante dele se estavam fechando os caminhos da Ásia e, em sonho, viu um macedónio que lhe suplicava: ‘Passa à Macedônia e vem ajudar-nos!’ (cf. At 16,6-10) – esta visão pode ser interpretada como a ‘condensação’ da necessidade intrínseca de aproximação entre a fé bíblica e a indagação grega.”

Como lembra Pedro Erik, a transcendência de Alá sobre a razão é uma marca central do islamismo, admitida e até exaltada pelos líderes muçulmanos, mesmo que esta ênfase gere muitas contradições na doutrina islâmica. Os líderes muçulmanos não se cansam de afirmar que Alá não se limita ao que se entende como razão humana e que ele pode se contradizer. Mas isso não evitou que o mundo islâmico reagisse feroz e violentamente a um diálogo do século 14 citado e comentado por Bento XVI.

As bem-aventuranças não representam um programa social, mas são conselhos aos discípulos, lembrando que qualquer um pode ser seguidor de Cristo

As formas doentias de religião

De acordo com Pedro Erik, em 2012 Bento XVI fez uma crítica a um documento do Concílio Vaticano II, que tem relação com os conflitos militares atuais, nos quais o terrorismo de fundo religioso está bem presente. Ele criticou a Declaração Nostra Aetate, de 1965, que trata do relacionamento com outras religiões, inclusive o islamismo. Bento XVI disse: “No processo de recepção ativa, uma fraqueza desse extraordinário texto gradualmente tem emergido: ele fala de religião apenas em termos positivos e desconsidera as formas distorcidas e doentias de religião que, do ponto de vista histórico e teológico, são de muito maior importância; por esta razão a fé cristã, desde o seu começo, adotou uma posição crítica em relação à religião, tanto internamente, como externamente”. E, ainda segundo Pedro Erik, com relação às suas posições declaradas na ONU, em 2008, o papa Bento XVI deu ênfase, em seu discurso, na responsabilidade de proteger as populações contra os crimes contra a humanidade, genocídios e limpezas étnicas. Ele ressaltou, no entanto, que a ONU deve entrar em ação apenas quando os Estados são incapazes de garantir esta proteção. E lembrou que o frade dominicano espanhol Francisco de Vitoria vislumbrou no século 16 esta responsabilidade internacional e a considerou como parte da razão natural humana.

Uma resposta aos pacifistas

Bento XVI fez inúmeras análises teológicas de passagens da Bíblia. Em se tratando de guerra justa, pode-se fazer menção ao que ele comentou sobre o Sermão da Montanha. Este é considerado o guia central da moral cristã, a nova Torá, onde Cristo é representado como o novo Moisés, estando acima de Moisés, por ser o próprio Deus. E o Sermão da Montanha é muito usado por pacifistas para dizer que Cristo renega qualquer guerra, citando em apoio as bem-aventuranças sobre os mansos (Mt 5,3) e os pacíficos (Mt 5,9).

Agostinho de Hipona não relacionou as bem-aventuranças com a guerra, como fazem os pacifistas, e Bento XVI segue este Pai da Igreja em sua argumentação. Sua argumentação se encontra no primeiro volume de sua trilogia Jesus de Nazaré, num capítulo dedicado ao Sermão da Montanha. Neste, ele estabeleceu um paralelo entre vários detalhes do Sermão da Montanha com o Antigo Testamento, descreveu as diferenças do sermão descrito por Mateus com a descrição de Lucas, e discutiu a relação da Torá de Moisés com a Torá do Messias, detalhada no Novo Testamento. Para o tema da guerra justa, Bento XVI também tratou das duas bem-aventuranças que são citadas pelos pacifistas: “bem-aventurados os mansos, porque herdarão a terra” e “bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus”.

Para começar, para Pedro Erik, é importante conhecer como Bento XVI define as bem-aventuranças. Elas não representam um programa social, mas são conselhos aos discípulos, lembrando que qualquer um pode ser seguidor de Cristo. Como Bento XVI escreveu:

“Mas, então, o que são as bem-aventuranças? Elas se inserem, antes de mais, numa longa tradição da mensagem do Antigo Testamento, tal como a encontramos, por exemplo, no salmo 1 e no texto paralelo de Jeremias (Jer 17,7s): ‘bem-aventurado o homem que confia no Senhor...’ São palavras que traduzem uma promessa, mas que servem ao mesmo tempo para o discernimento dos espíritos e assim se tornam instruções que indicam o caminho da sabedoria. A disposição que São Lucas dá ao Sermão da Montanha elucida a direção especial das bem-aventuranças: ‘Erguendo os olhos para os seus discípulos...’. Cada um dos elementos das bem-aventuranças resulta do olhar para os discípulos; descrevem o estado dos discípulos de Jesus: são pobres, famintos, que choram, odiados e perseguidos (Lc 6,20ss). Trata-se não só de qualificações práticas, mas também teológicas dos discípulos – daqueles que passaram a seguir Jesus e se tornaram a sua família. O Sermão da Montanha como tal não é nenhum programa social, isto é verdade. No entanto, somente onde estiver viva no pensar e no agir a grande orientação que ele nos dá, somente aí onde a força da renúncia e da responsabilidade para com o próximo e para com tudo vier da fé, somente aí pode crescer a justiça social”.

Comentando a primeira bem-aventurança, a dos mansos que herdarão a terra, Bento XVI olha para a Igreja, como terra, e para os mansos, os que seguem a Cristo. Ele disse que esta bem-aventurança é praticamente uma citação do Salmo 37,11: “Os mansos (ou os simples) herdarão a terra”. A esperança da terra, para Bento XVI, vai muito além de um simples pensamento de posse sobre um pedaço de terra ou de um território nacional. Como resume Pedro Erik, naturalmente é possível descobrir, entre mansidão e promessa de terra, uma sabedoria muito comum da história: os invasores vêm e vão, e permanecem os simples, os humildes, que cultivam a terra. Mas aqui a terra não é um Estado nacional. A paz tem em vista a superação de fronteiras e uma terra renovada “por meio da paz que vem de Deus”. A comunidade da Igreja de Jesus Cristo, que envolve todo o mundo, é então um esboço da terra de amanhã, que deve tornar-se uma terra da paz de Jesus Cristo.

Por fim, com relação à bem-aventurança sobre os pacíficos que são filhos de Deus, Bento XVI começa dizendo que Cristo é o verdadeiro portador da paz. Segundo o resumo de Pedro Erik, o afastamento ruinoso de Deus é o ponto de partida de todos os envenenamentos do homem; a sua superação é a condição fundamental para a paz no mundo. Por isso, Bento XVI pode concluir sobre esta bem-aventurança dizendo: “O cristão sabe que a persistência na paz com Deus é uma parte indispensável da luta pela ‘paz sobre a terra’; a partir daí vêm os critérios e as forças para esta luta. Que aí onde Deus deixa de estar presente no ângulo de visão do homem também a paz falhe e prevaleça a violência com imprevisível crueldade”. Ou seja, nenhuma das duas bem-aventuranças serve de argumento para os pacifistas.

Um guia para decisões morais

Originalmente, a doutrina da guerra justa foi proposta e desenvolvida por pensadores cristãos, especialmente por Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino. Essa tradição rejeita tanto a afirmação pacifista de que a guerra é sempre imoral quanto a afirmação realista de que a guerra está fora dos limites do julgamento moral. Antes, a tradição da guerra justa vê a guerra como uma atividade humana e, portanto, sujeita ao escrutínio moral. Além disso, vê a guerra como um instrumento que os estadistas podem utilizar em circunstâncias apropriadas, na busca da justiça. Assim, para aqueles que procuram respostas apodíticas simples para a questão de saber se uma determinada guerra – como as ocorridas na Coreia, no Vietnã, nas Falklands, no Iraque ou no Afeganistão – é justa ou não, a doutrina da guerra justa revelar-se-á decepcionante. Esta não é, contudo, uma crítica válida à tradição da guerra justa. Questões tão complexas como as levantadas pela tradição da guerra justa raramente ou nunca admitem respostas irrefutavelmente verdadeiras e nunca são independentes da nossa posição sobre questões éticas e teológicas mais amplas. O que podemos esperar da doutrina da guerra justa não são respostas simples, mas um conjunto de perguntas para guiar aqueles em posição de autoridade e comando na tomada de decisões guiadas por paciência, coragem, prudência, caridade e sabedoria.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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