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Acima da Grande Porta Oeste da Abadia de Westminster, em Londres, erguem-se dez estátuas de pedra calcária francesa que contemplam o mundo com serenidade, em nítido contraste com a violência que lhes deram origem. Inauguradas em 10 de julho de 1998, numa cerimônia presidida pelo então arcebispo de Canterbury, George Carey, e pela rainha Elizabeth II, essas figuras não retratam reis ou santos medievais, como ditava a tradição gótica da abadia. Elas homenageiam mártires cristãos do século 20 – uma era que, segundo muitos estudiosos, testemunhou mais mortes por causa da fé do que todos os 19 séculos anteriores somados. Como observou o subdeão Anthony Harvey, no discurso de inauguração das estátuas dos mártires na Abadia de Westminster: “Nunca houve um tempo na história cristã em que alguém, em algum lugar, não tenha morrido em vez de se comprometer com os poderes da opressão, da tirania ou da descrença. Mas o nosso século, o mais violento de toda a história registrada, produziu um rol de mártires cristãos que excede o de qualquer período anterior”.
Os nichos, esculpidos no século 15 e mantidos vazios desde a restauração do século 19, foram preenchidos como parte de um projeto que desejava proclamar uma mensagem contemporânea: o martírio não é uma relíquia da Antiguidade, mas uma realidade persistente nas sociedades modernas. Esculpidas por Tim Crawley e sua equipe da Rattee & Kett, em Cambridge, as estátuas foram modeladas a partir de fotografias e registros históricos, refletindo a diversidade geográfica e denominacional dos homenageados. Representam cristãos de todos os continentes e de tradições católica, ortodoxa e protestante. Entre eles estão vítimas do nazismo, do comunismo, do apartheid, de ditaduras latino-americanas e de perseguições étnicas ou religiosas.
Da esquerda para a direita, as estátuas representam: São Maximiliano Kolbe (Polônia, 1894-1941); Manche Masemola (África do Sul, c. 1913-1928); Janani Luwum (Uganda, 1922-1977); grã-duquesa Isabel da Rússia (Rússia/Alemanha, 1864-1918); Martin Luther King Jr. (EUA, 1929-1968); São Óscar Romero (El Salvador, 1917-1980); Dietrich Bonhoeffer (Alemanha, 1906-1945); Esther John (Paquistão, 1923-1960); Lucian Tapiedi (Papua-Nova Guiné, 1929-1942); e Wang Zhiming (China, 1908-1973).
O martírio não é uma relíquia da Antiguidade, mas uma realidade persistente nas sociedades modernas
Esses dez não são casos isolados. Simbolizam entre 10 milhões e 15 milhões de cristãos que, segundo as estimativas mais aceitas por historiadores e instituições especializadas (como a Fundação Pontifícia Ajuda à Igreja que Sofre, a Portas Abertas e o Center for the Study of Global Christianity, em suas revisões mais recentes), foram mortos em razão da fé ao longo do século 20, o período mais letal da história do cristianismo. A seguir, exploramos suas histórias, situando o contexto de suas mortes e o legado que deixaram.
São Maximiliano Kolbe: o frade que trocou a vida pela de um pai
Nascido Raymond Kolbe na Polônia, Maximiliano tornou-se franciscano conventual e fundou uma ampla rede de editoras e mosteiros católicos na Polônia e no Japão. Preso pelos alemães nazistas em 1941, foi enviado ao campo de concentração de Auschwitz, onde se ofereceu para morrer de fome no lugar de Franciszek Gajowniczek, um pai de família condenado ao bloco da morte. Orou e cantou com seus companheiros até sucumbir, em 14 de agosto de 1941. Beatificado em 1971 e canonizado em 1982, sua estátua o mostra em gesto de oferta, ecoando o dito de Jesus: “Ninguém tem amor maior do que este: de alguém dar a própria vida pelos seus amigos” (João 15,13).
Manche Masemola: a jovem rejeitada pela tradição tribal
Em Marishane, no Transvaal (atual Limpopo), Manche conheceu o cristianismo por missionários anglicanos em 1927. Batizada em 1928, enfrentou violenta oposição familiar: o pai a espancou e a forçou a longas caminhadas até Mohlaletse, onde morreu em 1.º de setembro de 1928, aos 15 anos. Sua conversão confrontava estruturas patriarcais e práticas animistas da tribo Pedi. Canonizada em 1992, sua estátua a representa com um livro de orações, símbolo de uma fé devota levada até o fim.
Janani Luwum: o arcebispo que enfrentou um ditador
Bispo anglicano desde 1969, Luwum denunciou abertamente as torturas e execuções do regime de Idi Amin. Em 1976, enviou-lhe uma carta aberta que se tornou histórica. Falsamente acusado de traição, foi sequestrado, torturado e executado em 16 de fevereiro de 1977. O regime alegou “acidente”, mas ninguém acreditou. Sua estátua o mostra com a Bíblia aberta, testemunho de seu ministério profético: “corra o juízo como as águas, e a justiça, como um ribeiro perene” (Amós 5,24).
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Grã-duquesa Isabel: a nobre que fundou conventos em meio à Revolução
Nascida princesa Elisabeth de Hesse, casou-se com o grão-duque Sergei da Rússia e se tornou membro da Igreja Ortodoxa. Fundou a Ordem de Santa Isabel, dedicada ao cuidado dos pobres. Recusou-se a abandonar Moscou durante a revolução comunista e foi presa em 1918. Jogada viva em uma mina em Alapayevsk, morreu de fome e ferimentos. Canonizada em 1981, sua estátua a mostra com uma cruz, sinal da realeza convertida em imitação de Cristo.
Martin Luther King Jr.: o pregador dos direitos civis
Pastor batista, líder do movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos, recebeu o Nobel da Paz em 1964. Assassinado em 4 de abril de 1968, tornou-se, com sua morte trágica, o símbolo definitivo da luta não violenta pelos direitos civis. O choque nacional provocado pelo crime gerou uma onda de comoção, protestos e reflexão em todo o país, acelerando avanços legislativos e sociais pendentes, aprofundando o compromisso americano com a igualdade racial e inspirando gerações futuras na luta contra toda forma de injustiça. Sua estátua o retrata em oração, unindo púlpito e protesto.
São Óscar Romero: o arcebispo que se colocou ao lado dos pobres
Arcebispo católico desde 1977, Romero tornou-se a principal voz contra a violência estatal em El Salvador. Suas homilias pelo rádio denunciavam desaparecimentos e massacres. Foi assassinado durante a missa em 24 de março de 1980. Beatificado em 2015 e canonizado em 2018, sua estátua evoca seu martírio litúrgico e profético.
Transcendendo fronteiras confessionais, as estátuas apontam para uma realidade maior do que suas próprias histórias: a de que o sangue dos mártires nunca é esquecido por Deus
Dietrich Bonhoeffer: o teólogo que confrontou o nazismo
O luterano Bonhoeffer integrou a resistência alemã e participou do círculo da Operação Valquíria, que tentou matar Adolf Hitler em 20 de julho de 1944. Preso por uma operação para tirar judeus da Alemanha em 1943, escreveu no presídio Resistência e submissão: cartas e anotações escritas na prisão. Enforcado em 9 de abril de 1945, suas últimas palavras foram: “Este é o fim – para mim, o começo da vida”. Sua estátua o apresenta com livro e cruz, símbolo do preço do discipulado.
Esther John: a professora assassinada por abandonar o Islã
Nascida Qamar Zia (na então Índia Britânica) e convertida do islamismo aos 17 anos, inspirada pelo Livro de Isaías durante estudos em uma escola cristã, ela se batizou em 1955 numa igreja presbiteriana e adotou o nome Esther John, atuando como evangelista no Paquistão. Rejeitou um casamento arranjado e passou a receber ameaças. Foi encontrada baleada em 2 de fevereiro de 1960. Sua estátua a mostra com Bíblia e lápis, unindo ensino e fé sob risco de morte.
Lucian Tapiedi: o papuano que protegeu missionários na guerra
Nascido na Papua Nova Guiné, ele atuava como professor e evangelista na Missão Anglicana de Sangara, parte da Diocese de Nova Guiné da Igreja da Província da Papua Nova Guiné (na época, ligada à Igreja da Inglaterra). Foi um dos “Anjos da Selva”, ajudando missionários e tropas aliadas na Segunda Guerra Mundial. Capturado, foi decapitado pelos japoneses em 17 de julho de 1942. Sua estátua o mostra com arco e flecha, símbolo da inocência transformada em coragem.
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Wang Zhiming: o pastor executado na Revolução Cultural
Pastor metodista na província de Yunnan, manteve cultos clandestinos diante da perseguição maoísta. Detido como “contrarrevolucionário”, foi humilhado em praça pública e fuzilado em 29 de dezembro de 1973. Sua estátua o mostra em veste pastoral, ícone da fidelidade cristã sob o ateísmo estatal.
O legado das estátuas
Visíveis a todos que ingressam pela Porta Oeste, o tradicional palco de coroações e casamentos reais, essas estátuas transformaram a Abadia de Westminster em um memorial do martírio contemporâneo. Elas transcendem fronteiras confessionais, unindo católicos como Kolbe e Romero a protestantes como King e Bonhoeffer, e ortodoxos como Isabel. E, ao fazê-lo, apontam para uma realidade maior do que suas próprias histórias: a de que o sangue dos mártires nunca é esquecido por Deus.
A visão de João no Apocalipse ilumina esse mistério. Ali, os mártires não aparecem como derrotados, mas como testemunhas cuja morte se torna semente de triunfo. Sob o altar, “as almas dos que tinham sido mortos por causa da palavra de Deus” clamam: “Até quando, ó Soberano Senhor [...] não julgas e vingas o nosso sangue?” (Ap 6,9-10). O clamor deles não expressa vingança pessoal, mas confiança absoluta na justiça divina. Recebem vestes brancas, sinal de aprovação, pureza e dignidade, e são chamados a aguardar “um pouco mais de tempo”, até que o número dos seus irmãos se complete. A vindicação, portanto, não vem da força humana, mas da intervenção soberana do Cordeiro, que garante que nenhuma lágrima é esquecida e que todo sofrimento fiel será restaurado pela justiça final de Deus.
Num mundo ainda marcado por perseguições, esses dez testemunhos lembram aos milhões de visitantes que o martírio não terminou
Essa vindicação alcança seu clímax no triunfo descrito em Apocalipse 20–22. Os que venceram “por causa do sangue do Cordeiro e por causa da palavra do testemunho” (Ap 12,11) participam do reinado de Cristo, assumindo seu lugar na nova criação onde “já não haverá morte, nem luto, nem dor” (Ap 21,4). À luz dessa esperança escatológica, o martírio não é o fim, mas a porta para a realeza eterna. O Cordeiro que foi morto reina; e, com Ele, reinam também aqueles que permaneceram fiéis até o fim. A história pode aparentar derrota, mas o último capítulo pertence ao Senhor e nele os mártires são vindicados com glória.
Num mundo ainda marcado por perseguições, esses dez testemunhos lembram aos milhões de visitantes que o martírio não terminou. Eles são apenas a vanguarda visível de uma multidão incalculável que, século após século, preferiu morrer a negar Cristo. Como canta a Igreja há mais de 1,6 mil anos: Te martyrum candidatus laudat exercitus, Domine – “A ti te louva o exército branco dos mártires”. Essa linha do Te Deum (século 4.º) é uma das mais antigas e belas evocações do exercitus candidatus, o exército vestido de branco – que não marcha com armas, mas com palmas e coroas. Em Westminster, em 1998, aqueles dez rostos de pedra lembraram ao mundo que esse exército continua marchando. E o seu Rei e Senhor ainda recruta novos soldados.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos




