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Franklin Ferreira

Franklin Ferreira

Governantes ímpios

Clamar por justiça: um chamado à oração pelo Brasil

roboão governantes ímpios
"A arrogância de Roboão", de Hans Holbein o Moço. Roboão é um dos maus governantes citados na Bíblia. (Foto: Wikimedia Commons/Domínio público)

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Vivemos em tempos desafiadores, em que o senso de justiça parece obscurecido por interesses ideológicos e políticos distorcidos. Como os cristãos podem saber se uma autoridade política tem legitimidade para continuar governando? E como se portar diante de injustiças praticadas e patrocinadas pelo Estado ou por servidores públicos? Qual o lugar da oração frente a autoridades que falham em cumprir seu dever como ordenado por Deus? Pode-se pedir pelo juízo divino contra autoridades más e injustas?

Uma autoridade ilegítima

As autoridades civis, chamadas no Novo Testamento de magistrados, foram estabelecidas por Deus como servos (ou “ministros” e “diáconos”) para promover a justiça (Rm 13,4-6). Seu papel é punir os que praticam o mal e valorizar aqueles que fazem o bem. Essa visão reflete a ordem divina, onde o poder terreno deve espelhar a santidade e a retidão do Criador. Contudo, quando essas autoridades se desviam desse propósito, elas perdem sua legitimidade. Como Harro Höpfl afirmou: “No momento em que os magistrados vão além dos limites de sua autoridade, [...] tornam-se semelhantes aos ladrões, usurpadores e violadores”.

Ao ignorar seu chamado, esses magistrados se tornam opostos à vontade divina. Um exemplo marcante dessa ilegitimidade política é o conceito da “besta” (Ap 13). Autoridades que promovem o mal e perseguem aqueles que fazem o bem manifestam o espírito dessa entidade, um símbolo de corrupção e oposição a Deus.

A Escritura nunca ordena submissão cega a governantes ímpios. Nunca. “É mais importante obedecer a Deus do que aos homens” (At 5,29). Pelo contrário, a Escritura nos convida a discernir e agir conforme a vontade divina, mesmo diante de poderes corrompidos. Como tão bem colocou Karl Barth: “Aquele de quem procede todo o poder e por meio de quem toda autoridade existente é estabelecida é Deus, o Senhor, o Deus desconhecido e abscôndito, o Criador e o Redentor, o Deus que elege e rejeita. Isso significa dizer que os poderes constituídos são medidos tendo Deus por referência, assim como são todos as coisas humanas, temporais e concretas. Deus é o seu princípio e seu fim, sua justificação e sua condenação, seu ‘Sim’ e seu ‘Não’.”

A Escritura nunca ordena submissão cega a governantes ímpios. Nunca

A postura do povo de Deus

Diante de tal realidade, a Palavra de Deus não nos permite a covardia ou apatia. O povo de Deus é chamado a se posicionar com coragem e fé diante do mundo. A Escritura nos oferece quatro ações fundamentais diante de autoridades que não tem mais legitimidade:

1. Orar. A oração é o fundamento de toda ação do cristão. Clamar a Deus por justiça é alinhar-se com seu caráter santo. É um ato de intercessão que ousadamente lembra a Deus dos compromissos que Ele mesmo assumiu com seu povo, como visto na vida de homens como Elias, que orou e viu o fogo descer do céu sobre o altar de sacrifício, no Monte Carmelo (1Rs 18,20-40).

2. Protestar legitimamente. Quando as autoridades falham, o povo tem o direito de expressar sua discordância de forma justa e pacífica. Isso inclui exemplos como os protestos contra o rei Roboão (1Rs 12), que ocorreram quando o povo de Israel, liderado por Jeroboão, exigiu alívio das pesadas cargas tributárias impostas por Salomão, mas Roboão, rejeitando conselhos sábios, respondeu com arrogância, prometendo um jugo ainda mais duro, o que levou à divisão do reino.

3. Mudar-se, se necessário ou possível. Em casos extremos, buscar refúgio em outro estado ou país pode ser uma opção válida, como visto em exemplos bíblicos, como a fuga de José, Maria e Jesus para o Egito (Mt 2,13-15), ou a dispersão dos primeiros cristãos pela Judeia e Samaria, quando da “grande perseguição contra a igreja” (At 8,1-4).

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4. Resistir, em certos casos. Em situações de opressão grave, a resistência justa pode ser necessária, guiada pela sabedoria divina. “A rebelião aos tiranos é obediência a Deus.” Um exemplo é o caso de Jeú (2Reis 9–10). Ele agiu sob ordem divina para derrubar a casa do rei Acabe. Sua revolta, embora violenta, foi justificada como um julgamento contra a tirania e a corrupção moral dos governantes de Israel. Outro exemplo é a desobediência de Daniel às ordens do rei da Medo-Pérsia, Dario (Dn 6), que emitiu um decreto proibindo orações a qualquer divindade ou pessoa exceto ele por 30 dias, sob pena de ser jogado na cova dos leões. Daniel, porém, continuou orando a Deus três vezes ao dia, como era seu costume. Isso levou à sua denúncia, prisão e lançamento na cova dos leões, de onde foi milagrosamente salvo por Deus.

Os salmos de lamentação

A Escritura está repleta de clamores por julgamento e de lamentos, pedindo que Deus intervenha com justiça divina contra os ímpios ou opressores. Vários salmos, inspirados pelo Espírito Santo, expressam o desejo de que Deus pessoalmente julgue os ímpios e restaure a ordem.

Um exemplo é o Salmo 82, que denuncia e condena juízes corruptos: “Até quando julgarão injustamente e tomarão partido pela causa dos ímpios?” (Sl 82,2). Esses juízes, que deveriam proteger os fracos, agem com parcialidade e perversidade, traindo sua vocação divina. Há um clamor por julgamento divino contra os “deuses” ou juízes injustos (v. 1, v. 6-7), que são acusados de favorecer os ímpios e negligenciar os vulneráveis. O salmo termina prevendo a queda desses governantes (“como homens morrereis”, v. 7).

Os salmos de lamentação, como o 82, não são meros desejos de vingança, mas orações que suplicam a submissão de toda vontade humana à justiça de Deus. Esses salmos nos ensinam que clamar por juízo divino é um ato de fé, pedindo que Deus intervenha para corrigir o que está errado. Esse clamor é um chamado à santidade, abandonando a passividade diante do mal.

Quando as autoridades se desviam de seu propósito de punir o mal e servir ao bem, o povo de Deus é chamado a resistir, mas sempre com base na Palavra e na dependência de Deus

Quando a autoridade perde a legitimidade

Quando as autoridades promovem o mal e perseguem o bem, elas refletem o espírito da “besta” (Ap 13). O apóstolo João descreve um poder que se exalta contra Deus e oprime os justos. Historicamente, figuras como Herodes Agripa I exemplificam essa corrupção. Esse rei da Judeia aceitou adoração como se fosse uma divindade e foi julgado por Deus, morrendo comido por vermes (At 12). Esse episódio mostra que Deus não tolera a arrogância que desafia sua soberania.

Repito: a submissão cega a governantes ímpios nunca foi ordenada pela Escritura. Nunca. Pelo contrário, a Palavra de Deus incentiva o discernimento político e a ação. Quando as autoridades se desviam de seu propósito de punir o mal e servir ao bem, o povo de Deus é chamado a resistir, mas sempre com base na Palavra e na dependência de Deus.

De acordo com João Calvino: “O Senhor, portanto, é o Rei dos reis, e a ele devemos ouvir acima de todos tão logo abra sua boca. De forma secundária, devemos estar sujeitos aos homens que têm preeminência sobre nós, mas somente sob a autoridade de Deus. Se as autoridades ordenarem algo contra o mandamento de Deus, devemos desconsiderá-lo completamente, seja quem for o mandante”.

Um chamado à oração

É hora de orar com fervor pelo Brasil. Os cristãos podem clamar por três pedidos específicos: 1. Arrependimento: que os que se corromperam e torceram as justas leis se voltem para Deus. 2. Justiça: que Deus restaure a retidão nas esferas de poder e julgue aqueles que permanecerem em seus pecados. 3. Discernimento: que os cristãos busquem a verdade e ajam com sabedoria. A Escritura nos dá as palavras para orarmos: “Levanta-te, ó Deus, julga a terra, pois a ti pertencem todas as nações” (Sl 82,8). Essa é uma súplica por intervenção divina, para expor as trevas e exaltar os justos.

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Muitos podem pensar que “só orar” não é suficiente. No entanto, a Escritura nos ensina o contrário. Quando oramos, segundo a Palavra, Deus ouve e responde no tempo certo. Deus atende o clamor dos justos. Ao orar por manifestação da justiça divina, o cristão se submete à vontade e ao reinado de Deus.

Como escreveu E.M. Bounds: “A oração não é um pequeno hábito que nos é imposto; não é uma mera formalidade de alguns minutos de graça dita antes de uma refeição de uma hora, mas é o trabalho mais sério dos nossos anos mais sérios. Ela envolve a essência da nossa fé, a força da nossa alma e a profundidade do nosso compromisso com Deus”.

Bento XVI afirmou, no Angelus de 4 de março de 2007, que “para um cristão, orar não significa evadir-se da realidade e das responsabilidades a que ela obriga, mas assumi-las totalmente, confiando no amor fiel e inexaurível do Senhor. [...] Queridos irmãos e irmãs, a oração não é um acessório, um opcional, mas é questão de vida ou de morte. Só quem ora, isto é, quem se confia a Deus com amor filial, pode entrar na vida eterna, que é o próprio Deus”.

Orar por justiça divina significa pedir que Deus julgue e submeta as nações à sua santidade

Em outras palavras, a oração não prepara o caminho para a ação divina; ela é, em si mesma, a ação divina. A oração é um meio de graça que une o cristão diretamente à vontade e ao poder de Deus. Exemplos bíblicos corroboram essa verdade. As orações de Abraão, Moisés, Davi, Daniel, Jesus, Paulo e João foram ouvidos por Deus, resultando em livramento e juízo, não só em Israel, mas também nas nações ao redor. Assim, orar pelo Brasil não é apenas um ato de fé, mas uma ação que Deus usa para cumprir seus propósitos.

Implorando a Deus por sua intervenção

Orar por justiça divina significa pedir que Deus julgue e submeta as nações à sua santidade. Herodes foi um exemplo de juízo divino contra a arrogância política. Da mesma forma, os cristãos hoje devem clamar por julgamento divino que traga arrependimento ou correção. Esse clamor não é movido por vingança, mas por um desejo de ver a vontade santa e reta de Deus prevalecer sobre o pecado pessoal, a maldade estrutural e a ação demoníaca.

Vivemos dias em que a prevalência da corrupção e da injustiça desafiam os valores cristãos. No entanto, a Escritura nos oferece um caminho claro. Que o povo de Deus se una em oração fervorosa, pedindo que o Senhor restaure sua ordem moral, pois a ele pertencem todas as nações. É tempo de agir com fé e esperança, confiando no Deus que ouve e responde. Pois, como diz a estrofe de um hino do Saltério da Igreja Livre da Escócia: “Sim, todos os reis poderosos da terra / Diante dele hão de se prostrar; / E todas as nações do mundo / A ele hão de servir”.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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