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O relacionamento entre os cristãos e o Estado é uma questão teológica e prática profundamente significativa nas Escrituras. Em 1 Pedro 2.13-17, encontramos uma das passagens mais relevantes do Novo Testamento sobre essa questão. Nesse trecho, o apóstolo Pedro oferece princípios orientadores sobre como o cristão deve se portar diante das autoridades humanas:
“Por causa do Senhor, estejam sujeitos a toda instituição humana, quer seja ao rei, como soberano, quer seja às autoridades, como enviadas por ele, tanto para castigo dos malfeitores como para louvor dos que praticam o bem.
Porque assim é a vontade de Deus, que, pela prática do bem, vocês silenciem a ignorância dos insensatos. Como pessoas livres que são, não usem a liberdade como desculpa para fazer o mal; pelo contrário, vivam como servos de Deus. Tratem todos com honra, amem os irmãos na fé, temam a Deus e honrem o rei.”
Os cristãos e o Estado
No Novo Testamento, encontramos três perspectivas distintas sobre o poder constituído: uma descrição positiva de sua função ideal (Rm 13.1-7), uma condenação à sua forma idolátrica (Ap 13.1-18) e uma posição mais neutra, com recomendações práticas para a vida cristã sob o governo (1Pe 2.13-17).
Assumindo que Pedro escreveu esta carta antes de seu martírio (em torno de 64 d.C.), a epístola teria sido redigida entre os anos 60 e 64, provavelmente em Roma, figuradamente chamada de “Babilônia”.
Pedro escreve a partir do pressuposto de que as três pessoas da Trindade estão unidas em um único propósito: a salvação integral e eterna dos “eleitos peregrinos” (1Pe 1.2). Isso implica uma compreensão abrangente da soberania de Deus sobre todas as áreas da vida, inclusive a esfera política.
“Estejam sujeitos”
A instrução inicial do trecho é clara: “estejam sujeitos”. O termo indica a ação de se colocar debaixo de uma ordem, uma inserção consciente. O princípio geral é: obedecer, exceto quando a ordem envolver pecado.
Em várias ocasiões nas Escrituras, vemos o povo de Deus desobedecendo ao governo e sendo aprovado por Deus por essa ação. Portanto, a submissão à autoridade não é absoluta.
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“Toda instituição humana”
A expressão “toda instituição humana” vai além do governo secular. Inclui várias esferas de autoridade: pais e filhos, oficiais da igreja e membros, estruturas de autoridade em empresas, instituições educacionais, organizações voluntárias, etc.
O texto motiva ainda os servos (aqui significando criados, empregados, serventes, não escravos) a se sujeitarem aos senhores (1Pe 2.18) e as esposas a se sujeitarem aos maridos (1Pe 3.1-2).
“Rei, como soberano”
Historicamente, o senado romano, que no período da monarquia indicava os reis e limitava seu poder, decidiu abolir a monarquia e transformou Roma em república em 509 a.C. O uso do título “rei” (rex, basileus) foi proibido oficialmente em Roma.
Quando Júlio César foi assassinado em 44 a.C., isso não se deu por ele ser ditador (cargo que, na época, significava magistrado extraordinário), mas porque os senadores temiam que ele se tornasse rei.
Nos documentos imperiais, os títulos usados eram “Cesar Augusto” (Kaisar Sebastos ou Kaisar Augoustos) e “Imperador” (Autokratōr). Este último, usado durante o principado, significava “comandante em chefe” do exército romano. No mundo romano somente no fim do século IX d.C. o imperador, Leão VI, o Sábio, foi chamado de “rei dos romanos”.

Quando Pedro usa o termo “rei”, como judeu, provavelmente tinha em mente o modelo do Antigo Testamento: o rei que “fez o que era reto” e andou “nos caminhos de Davi”. Assim, Pedro aponta para o tipo ideal de governante e não legitima uma submissão acrítica ao imperador.
A resposta de Pedro diante da proibição de pregar o Evangelho (At 5.29) mostra que ele não advogava obediência incondicional à autoridade. Jacques Ellul argumenta que o texto de Pedro é subversivo, pois se refere ao poder político romano, mas apoia um outro modelo: o do rei justo do Antigo Testamento.
A postura dos cristãos da época, portanto, não era de passividade, mas de resistência consciente, sem rejeitar a existência do poder político em si, mas denunciando suas distorções.
"Autoridades... para castigo [e]... louvor”
O termo “autoridades” refere-se às lideranças governamentais que têm o poder de governar pessoas na sociedade. Pedro afirma que essas autoridades existem “para castigo dos malfeitores e louvor dos que praticam o bem”.
Wayne Grudem comenta que governos que não punem os malfeitores desobedecem ao seu propósito divino. Eles devem honrar aqueles que praticam o bem como forma de recompensa e incentivo ao comportamento moral, e não com base na condição econômica ou favoritismo político.
“Que praticam o bem”
Pedro declara que a submissão à autoridade deve ser acompanhada da prática do bem, a qual será usada por Deus para silenciar a calúnia. Os cristãos devem viver “como pessoas livres”, mas não usar sua liberdade como desculpa para o mal. A liberdade cristã é definida como a alegria de fazer o que é certo.
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Quatro ordens distintas
Pedro apresenta quatro ordens diretas e claras:
- “Tratem todos com honra”: Os cristãos são exortados a reconhecer a dignidade intrínseca de todas as pessoas, independentemente de status ou função. O cristão honra cada indivíduo como portador da imagem de Deus.
- “Amem os irmãos na fé”: A vida comunitária da igreja deve ser marcada pelo amor fraternal. O compromisso com os outros membros da fé está acima das lealdades políticas ou culturais.
- “Temam a Deus”: Deus é o único que merece temor reverente. Ele é soberano acima de todas as autoridades humanas.
- “Honrem o rei”: Por fim, volta-se ao tema da autoridade política. O rei deve ser honrado – nunca idolatrado. A honra ao governante se dá dentro dos limites da honra maior devida a Deus.
Essas instruções revelam a hierarquia de obrigações do cristão. Embora tenham responsabilidades com o Estado, suas obrigações com Deus e com os irmãos em Cristo são maiores. Em contraposição às pretensões divinas dos imperadores romanos, o texto reafirma que nenhuma autoridade humana é equivalente a Deus, nem merece o temor que só a Ele pertence.
Deus como fonte de toda autoridade
Pedro afirma que devemos nos sujeitar às autoridades “por causa do Senhor” e que elas foram “enviadas por ele”. Isso revela que Deus é a fonte de toda autoridade e que apenas ele detém o poder absoluto sobre toda a criação. Governos legítimos são aqueles que cumprem o papel para o qual foram instituídos: promover o bem e reprimir o mal. Quando isso é invertido, a autoridade se opõe a Deus.
A submissão ao Estado é um reflexo da submissão à vontade soberana de Deus. Contudo, quando as exigências estatais conflitam com os mandamentos divinos, o cristão deve priorizar sua obediência a Deus.
A vida cristã na sociedade
A mensagem de 1 Pedro 2.13–17 é clara: a fé cristã deve produzir um tipo de cidadão que, ao mesmo tempo, respeita as autoridades e reconhece que elas são subordinadas ao governo supremo de Deus. A devoção cristã não está isolada da vida pública. Pelo contrário, ela molda nossa postura em todas as esferas da sociedade, inclusive a política. Portanto:
Submeta-se por causa do Senhor, não por conveniência. O motivo para a submissão à autoridade é teológico, não político. Fazemos isso “por causa do Senhor”, como sinal de nossa confiança na soberania de Deus, mesmo quando os governos são falhos. Isso significa que o cristão paga seus impostos, respeita leis justas, cumpre seus deveres civis – não porque tudo esteja certo, mas porque deseja honrar a Deus com sua conduta.
Pratique o bem como um testemunho público. Em tempos de tensão política e hostilidade contra a fé cristã, o maior antídoto é a prática visível do bem. A honestidade no trabalho, o cuidado com os pobres, a solidariedade com os que sofrem e a firmeza moral silenciam acusações infundadas. Os bancos da igreja devem ser uma escola de boas obras.
Ame a igreja com prioridade. O amor pelos “irmãos na fé” é um mandamento que preserva a comunhão. Em tempos de discordância política dentro da igreja, Pedro nos chama a lembrar quem é nossa verdadeira família. Discordâncias políticas não devem dividir o corpo de Cristo. O amor fraternal é um testemunho mais forte que qualquer aliança ideológica. Tema a Deus acima de tudo.
Somente Deus é digno de temor reverente. Isso significa que o cristão não deve idolatrar líderes políticos, nem temer governos injustos mais do que teme a Deus
O temor a Deus nos impede de transigir com o pecado, mesmo quando ele é sancionado pelo Estado ou popularmente aceito.
Honre o rei, sem idolatrá-lo. Honrar o governante é reconhecer sua função dada por Deus – ainda que ele esteja longe do ideal bíblico. Honra não significa aprovação incondicional, mas um trato respeitoso. O cristão pode criticar, protestar e até desobedecer, quando necessário, mas sempre com postura respeitosa e consciente de sua cidadania celestial.
Quando o Estado ultrapassar seus limites, resista com fidelidade. A “rebelião contra os tiranos é obediência a Deus” (Thomas Jefferson). A obediência ao Estado é legítima até o ponto em que ele tenta usurpar o lugar de Deus. Quando há conflito entre a lei de Deus e a do homem, obedecer a Deus é imperativo. Isso exige discernimento, coragem e disposição para sofrer por amor à verdade. A igreja não deve silenciar diante da injustiça institucionalizada.
Diante desses desafios, oremos: “Ó Senhor, Tu que fortaleces os corações dos que em Ti confiam, dá-nos a força para suportar as provações com paciência, para que, armados com a couraça da fé, possamos resistir às tempestades deste mundo e alcançar a Tua glória eterna” (João Crisóstomo, Homiliae in Statuas, Homilia 15, seção 6 [PG 49, 156, Patrologia Graeca]).
Conteúdo editado por: Aline Menezes




