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O cristão e a política para Karl Barth
| Foto: Wikimedia Commons

Em 1959 o teólogo reformado suíço Karl Barth, então professor de teologia sistemática e homilética na Universidade de Basel, participou de duas conversas sobre o tema do “cristão e a política” na Associação de Estudantes Zofingia, em Basel, na Suíça, do qual ele foi membro quando era estudante. A primeira conversa ocorreu em 3 de junho, na Casa da Associação, e a segunda em 18 de novembro, e esta tratou de questões sobre “o cristão e o Estado suíço” e a revolução húngara de 1956, o famoso levante contra a dominação da União Soviética.

Na primeira conversa, em junho, foram dirigidas a Barth as seguintes perguntas:

1. Quais são o papel e os deveres do cristão como cidadão político? O cristianismo compromete o cidadão com uma certa posição política?

2. Qual dos direitos da Igreja um cristão deve defender “ilegalmente”? (Proibição da confirmação, dos cultos).

3. Uma sociedade secularizada é um argumento tão forte contra o Estado quanto o Estado anticristão? (materialismo Ocidental – materialismo Oriental)

4. A Igreja tem uma justificativa ou uma tarefa relacionada a requerer uma recusa ao serviço militar? A forma de governo [do Estado] desempenha um papel nesse caso?

5. Existe uma diferença entre a posição da Igreja em relação aos nacional-socialistas e ao comunismo? Se sim, por quê? 

Barth respondeu sobretudo a primeira pergunta, se concentrando nas tarefas do cristão como cidadão político. Durante a apresentação das teses foi evitada uma discussão sobre política, não porque Barth não quisesse assumir uma posição partidária, mas porque ele gostaria de deixar claras as tarefas do cristão diante da política. Assim, ele respondeu às perguntas por meio de dez teses. Abaixo, o leitor tem a transcrição destas teses, que giram em torno do tema do Reino de Deus, e que foi publicada numa obra editada por Eberhard Busch, professor emérito de teologia reformada na Universidade de Göttingen, na Alemanha, e que foi aluno e assistente pessoal de Barth – Barth in Conversation: volume 1, 1959-1962 -, livro que é um deleite para os pesquisadores daquele que talvez seja o mais importante teólogo cristão do século 20.

1. O cristão é testemunha do Reino de Deus que veio em Jesus Cristo e ainda deve ser revelado nele

O Reino de Deus é a reconciliação do mundo com Deus. Isso tem a ver com a realização da unidade do direito divino e humano. Em vez do Reino de Deus pode-se simplesmente dizer Jesus Cristo. Por enquanto, essa é uma realidade oculta, [mas, no entanto, uma realidade! Portanto]: o Reino de Deus não é um ideal. É um fato realizado. O cristão, como membro da comunidade humana, é testemunha do Reino de Deus. Ele é uma testemunha, porque é revelado a ele. Porque o cristão sabe disso, ele deve apontar para isso [o Reino de Deus].

Na segunda conversa, em novembro, Barth acrescentou: “O cristão é, primariamente, um cidadão do Reino de Deus, e secundariamente, um cidadão de seu Estado. Como tal, ele deve testemunhar do Reino de Deus”.

2. Como testemunha do Reino de Deus, o cristão é antes de tudo um cidadão deste Reino

Ele é um cidadão que reside definitivamente em sua pátria e é obrigado a isso, embora ainda haja outras formas de cidadanias (família, sociedade humana). Ele existe originalmente e principalmente como cidadão do Reino de Deus, e em todas as outras instituições apenas secundariamente, [e seu lugar lá é] determinado por sua primeira cidadania. Isso faz do cristão uma pessoa peculiar. Ele é sempre um passarinho solitário no telhado [Salmo 102.7]. 

3. O cristão vive em cada tempo e situação também como cidadão de um Estado em uma de suas formas diferentes e em mudança. 

Não há cristianismo fora do tempo e do espaço. A vida do cristão tem uma determinação concreta. No entanto, ele não pode ser reduzido à sua existência política. Ele vive, também aqui, como cidadão e testemunha da existência do Reino de Deus. Não se deve falar de forma tão abstrata do Estado. O cristão vive sempre em uma das diferentes formas do Estado, e sempre em relação ao seu próprio Estado. 

4. O cristão reconhece o Reino de Deus na Ordem Provisória de Deus para o estabelecimento e preservação da justiça relativa, da liberdade relativa e da paz relativa em seu Estado

[O Estado que ele encara] é uma manifestação de Deus, destinado ao presente tempo intermediário, um tempo de transição antes do estabelecimento do Reino de Deus. Esta [vida no tempo intermediário] não é um vácuo, porque há [da parte de Deus] a Igreja e o Estado. [O Estado] também é uma solução provisória, porque toda a ordem do estado tem apenas a preocupação de fornecer segurança externa, liberdade, quietude e paz externa. No entanto, fiquemos felizes com essa segurança externa! Onde quer que a força coercitiva deva ser usada, estamos em um estágio intermediário. Todo Estado fornece uma justiça relativa, [que é expressa positivamente como] uma justiça em relação a outra coisa – [isto é, justiça em] relação ao Reino de Deus. 

5. O cristão não confunde o Estado, em nenhuma de suas muitas formas, com o Reino de Deus. 

O Reino de Deus é “absolutamente” superior a toda ocorrência do Estado. Nenhum Estado é idêntico ao Reino de Deus. Não há Divus Caesar nem Civitas Dei (Agostinho). Também não há Estado cristão. Nenhum Estado pode exigir lealdade incondicional e obediência incondicional, caso contrário, seria o Reino de Deus. O Reino de Deus é apenas real em sua realização e em Jesus Cristo. 

Na discussão após a apresentação das teses, Barth adicionou: “A objeção à ideia de que uma civitas diaboli é possível deriva, em última instância, de fundamentos cristãos. O diabo não pode fundar um Estado para si mesmo. O diabo foi vencido”.

6. O cristão não teme ou nega o Estado em nenhuma de suas muitas formas, porque cada Estado contém algo de divino.

O cristianismo antigo existia mesmo no império de Nero. Não há Estado anticristão e não há civitas diaboli. O cristão é, portanto, protegido contra o ceticismo político ou o desespero político. Um cristão afirmará o Estado de cada forma. Ele distingue [certamente entre formas melhores e piores do Estado] embora nunca pronuncie um sim ou não absoluto. Portanto [como “cada Estado contém algo de divino”], ele [o cristão] não é forçado [ou justificado] a adotar uma posição de neutralidade [em relação ao Estado]. [Em vez disso] ele distingue entre Estados com menor ou maior justiça.

Na discussão posterior, Barth afirmou: “Mesmo o revolucionário não nega o Estado. Ele o afirma, mas de uma forma diferente. Qualquer decisão em termos cristãos tem como critério final a Bíblia. [...] [No processo] é importante continuar lendo a Palavra [de Deus]”. E acrescentou: “Um cristianismo que está sob o perigo do comunismo merece perecer. A melhor e mais segura arma contra o comunismo é nos tornarmos melhores cristãos”.

7. Em vista do Reino de Deus, o cristão distingue entre as formas do Estado, na medida em que elas correspondem mais ou menos à nomeação divina.

Portanto, ele empreende essa diferenciação da justiça [isto é, o exame de mais ou menos justiça prevalecente no Estado] sempre em vista do Reino de Deus.

8. O cristão, como cidadão do Estado, testemunha o Reino de Deus, na medida em que ele decide em cada caso a forma mais apropriada do Estado, significando a forma mais justa.

Além disso, ele dá seu apoio politicamente a essa forma de Estado escolhida.

9. O cristão decide sobre a forma preferível do Estado, bem como sobre a forma de seu apoio a ele, com uma nova e livre orientação para o Reino de Deus em cada tempo e situação particulares.

O cristão não está vinculado a nenhuma ideia em particular (tradicional, histórica) ou a princípios da lei natural, e assim por diante. Ele pode, no entanto, tê-los. “Nova e livre” significa independente, por exemplo, mesmo de uma maioria democrática (que também pode estar errada). Mas ele também pode acompanhar a maioria. “Nova” significa “não vinculada a decisões anteriores”. 

[No fim, mesmo as formas de Estado estão em fluxo.] Mesmo em apenas um tipo das formas conhecidas de Estado, há nuances consideráveis. Entre as democracias, existem as chamadas democracias populares, democracias representativas e assim por diante. [Existem também] formas diferentes de ditaduras: por exemplo, a franco-espanhola no meio do chamado Mundo Livre, a França contemporânea (em 1959 Charles DeGaulle promulgou uma nova constituição que suspendia direitos previamente existentes) – até mesmo os Poderes de Autorização da Guerra do Conselho Federal Suíço (de agosto de 1939 que concedeu poderes especiais para restringir liberdades civis na Suíça no tempo da guerra) que conduziram [estes países a serem] temporariamente pequenas ditaduras. 

Não é ditado do céu ao cristão que ele deve apoiar apenas essa ou aquela forma de Estado. Também é possível que ele trabalhe ativamente dentro de uma ditadura: por exemplo, suportando, esperando na esperança tranquila de que as árvores não cresçam muito altas, ou mesmo cooperando (mais ou menos). Também é possível trabalhar ativamente contra o Estado para a renovação da forma do Estado quando as coisas não podem mais continuar dessa maneira. [No entanto] em todas as circunstâncias, o cristão orará pelas pessoas com responsabilidades no Estado. 

10. O cristão é sempre obrigado a assumir a posição política e a ação particular que correspondem à sua reflexão sobre o Reino de Deus.

Nunca é uma questão de ser algo indeterminado, ou de ser algum tipo de boa intenção geral. Em cada caso concreto, o cristão não tem escolha, mas apenas uma possibilidade: a posição que ele foi ordenado [por Deus] a adotar. Ele deve defender essa atitude resolutamente.

Ao fim do encontro, Barth assegurou à audiência que ele, “em caso de perigo real do comunismo [na Suíça], reagiria exatamente como fez contra o nacional-socialismo [na Alemanha]”.

Conteúdo editado por:Jônatas Dias Lima
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