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Franklin Ferreira

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Bíblia

A fé não se impõe por lei: o equívoco do PL 4.606/2019

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Projeto de Lei que tramita no Senado pretende proibir "alterações" no texto da Bíblia. (Foto: Pexels/Pixabay)

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Em 30 de outubro de 2025, participei por videoconferência de uma audiência pública presidida pela senadora Damares Alves na Comissão de Educação e Cultura do Senado Federal, que discutia o Projeto de Lei 4.606/2019, em tramitação naquela casa legislativa. Na coluna de hoje, transcrevo o discurso que fiz naquela ocasião, afirmando por que considero o projeto um erro.

Excelentíssimos senhores senadores membros da Comissão de Educação e Cultura, demais senadores e autoridades presentes, senhoras e senhores, boa tarde. É uma honra participar desta audiência pública. Agradeço pelo convite e pela oportunidade de contribuir com este debate. Meu nome é Franklin Ferreira, sou doutor em Divindade pelo Puritan Reformed Teological Seminary, nos Estados Unidos. Sou também pastor batista, reitor e professor do Seminário Martin Bucer, com sede em São Paulo. Venho aqui com respeito e senso de responsabilidade, compartilhar algumas reflexões sobre o tema proposto.

Entre a boa intenção e o grave erro

Como cristão protestante, que crê na inspiração e na autoridade última da Escritura, reconheço a boa intenção expressa pelo Projeto de Lei 4.606/2019, de autoria do deputado federal Pastor Sargento Isidório (Avante-BA), que busca “vedar qualquer alteração, adaptação, edição, supressão ou adição nos textos da Bíblia Sagrada, para manter a inviolabilidade de seus capítulos e versículos”. A intenção é piedosa. Contudo, nem toda boa intenção se traduz em boa teologia ou boa legislação.

O problema deste projeto não é o zelo, mas o instrumento escolhido. Ao tentar defender a Bíblia por meio do Estado, ele contraria os próprios princípios bíblicos, redescobertos na Reforma protestante do século 16, que exaltam tanto a soberania de Deus sobre sua Palavra quanto a liberdade da Igreja diante do poder civil.

Não é a Igreja que deve ser tutelada pelo Estado, mas o Estado que deve ser julgado pela Palavra de Deus

A Bíblia não precisa do Estado para ser protegida

O apóstolo Pedro declara que “a palavra do Senhor permanece para sempre” (1Pe 1,25). A história comprova que nenhum decreto humano foi capaz de destruir ou preservar a Escritura – apenas Deus o faz, por sua providência soberana. Desde o Édito de Diocleciano até o secularismo e relativismo atuais, passando pelo totalitarismo comunista, os poderes civis que tentaram controlar o texto sagrado falharam.

A proposta de “tombar” a Bíblia como patrimônio nacional, embora bem-intencionada, incorre em dois erros sérios. Primeiro, presume que as Escrituras necessitam de proteção humana, quando “a Escritura é autêntica em si mesma, não por causa do testemunho da Igreja, mas porque procede de Deus” (CFW I.V). Segundo, confunde as esferas: não é a Igreja que deve ser tutelada pelo Estado, mas o Estado que deve ser julgado pela Palavra de Deus (Sl 2; Jo 19,11).

O perigo teológico de confundir inspiração com tradução

Outro erro fundamental do projeto é confundir o texto inspirado com suas traduções. Deus inspirou originalmente a Escritura “em hebraico e em grego” (CFW I.VIII), não em português. Toda tradução bíblica é um esforço de comunicar fielmente o conteúdo dos originais, mas não é inspirada da mesma forma. Portanto, qualquer tentativa de “vedar alterações” ignora a realidade de que toda tradução legítima envolve ajustes, escolhas e revisões constantes. Portanto, a própria essência da tradução é a mudança lexical em busca da melhor equivalência possível. Por exemplo, a palavra grega logos (Jo 1,1) pode ser vertida como “Verbo” ou “Palavra”, conforme o contexto e a tradição linguística. Nenhuma dessas escolhas é uma “alteração” ilícita, mas sim parte do trabalho hermenêutico de tornar o texto compreensível.

As sociedades bíblicas há mais de dois séculos revisam e atualizam traduções sem jamais violar a integridade da revelação, mas justamente para comunicá-la com maior fidelidade e clareza. Em semântica e linguística histórica, há um campo específico de estudo chamado mudança semântica – também conhecido como deslocamento semântico, mudança lexical ou progressão semântica. Esse fenômeno descreve qualquer alteração no significado de uma palavra ao longo do tempo. A transformação dos sentidos é um processo natural e inevitável da linguagem, presente em todos os idiomas vivos, inclusive o português. Ela ocorre por diversos fatores: mudanças culturais, avanços tecnológicos, contato entre línguas e evoluções no uso cotidiano das palavras. A mudança semântica é, provavelmente, a principal razão pela qual as traduções das Escrituras precisam ser periodicamente revisadas e atualizadas. Isso não implica qualquer modificação no texto sagrado em si, mas apenas ajustes nas traduções, com o propósito de comunicar de modo mais fiel e compreensível a mensagem do texto original.

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A redação do PL ignora essa complexidade. Ao “vedar qualquer adaptação ou adição”, ele tornaria ilegais traduções infantis, interconfessionais, para línguas indígenas, paráfrases devocionais e até mesmo revisões acadêmicas baseadas em novos manuscritos descobertos – como os de Qumran.

A incompreensão sobre a crítica textual

O próprio campo da crítica textual bíblica reconhece que não há um único manuscrito perfeito. Temos milhares de cópias hebraicas e gregas, com pequenas variantes, que, quando estudadas, confirmam a fidelidade geral do texto – mas também mostram que ele foi transmitido em diferentes contextos, sob a providência divina.

O PL 4.606/2019 parece ignorar um fato elementar reconhecido há tempos pelos estudiosos das Escrituras, como Bruce Metzger e F. F. Bruce: nenhum manuscrito bíblico é absolutamente idêntico a outro em todos os detalhes de cópia. Há pequenas variações de grafia, ordem de palavras ou omissões acidentais entre os milhares de manuscritos existentes. Contudo, a imensa maioria dessas diferenças é insignificante e não afeta o sentido do texto nem qualquer doutrina cristã. De fato, entre 97% e 98% de todo o texto bíblico pode ser estabelecido com plena certeza, o que apenas confirma que Deus, em sua providência, preservou a integridade essencial de sua Palavra, mesmo por meio de copistas falíveis. Isso não ameaça a doutrina da inspiração da Escritura, mas a confirma, pois mostra que Deus preservou a mensagem, ainda que os copistas tenham cometido pequenas variações materiais.

Tentar “fixar” por decreto uma versão “oficial” é, portanto, teologicamente e historicamente incorreto e juridicamente impossível. Qual edição seria adotada? A católica (73 livros)? A protestante (66 livros)? A ortodoxa (76 a 78 livros)? A Bíblia de Jerusalém, a Ave-Maria, a Almeida Revista e Corrigida, a Almeida Revista e Atualizada ou a Nova Almeida Atualizada? Qual delas seria considerada “inviolável”? Ao tentar responder a essas perguntas, o Estado estaria legislando sobre doutrina – algo que pertence apenas à Igreja de Cristo, ou seja, aos fiéis que procuram praticar a fé e seus pastores e mestres.

Em vez de leis que pretendem “proibir alterações” na Bíblia, o que precisamos é de liberdade civil para que igrejas fiéis, tradutores competentes e crentes instruídos possam seguir em paz as doutrinas de Cristo

A Palavra inspirada é viva e eficaz (Hb 4,12), e sua autoridade não depende de ser reconhecida pelo Congresso Nacional, mas pelo Espírito Santo que a aplica ao coração dos crentes. Os reformadores advertiam que a Escritura é norma normans, non normata – a norma que julga todas as outras, inclusive os decretos civis e eclesiásticos. Quando o Estado assume o papel de guardião do texto sagrado, ele coloca-se acima da própria Escritura, ainda que inconscientemente. É um zelo mal orientado, como o de Uzá, que tentou segurar a arca com as próprias mãos (2Sm 6,6-7).

A confusão entre autoridade espiritual e poder civil

De acordo com as Escrituras, Cristo é o Cabeça da Igreja (Ef 1,22), e a Palavra é sua voz viva. O Estado, por sua vez, é ministro de Deus apenas no plano civil, “para punir o malfeitor e louvar o que faz o bem” (Rm 13,3-4). Misturar essas esferas é rejeitar o princípio da soberania das esferas, conforme articulado por Abraham Kuyper e antecipado nas distinções de jurisdição já presentes em João Calvino. Quando o Estado tenta definir o que é Escritura legítima, ele ultrapassa os limites de sua autoridade.

Além disso, surge um impasse prático inevitável: quem decidiria quais traduções são válidas e quais devem ser rejeitadas? Seria criado um órgão estatal para arbitrar a Palavra de Deus – à custa do contribuinte? E qual expressão cristã seria “escolhida” para julgar todas as demais?

A distinção entre as esferas civil e espiritual não é inimiga da fé – é a sua guardiã. O Estado, cuja autoridade é limitada por Deus, deve respeitar a missão da Igreja, sem controlá-la nem usá-la como instrumento político. O artigo 19 da Constituição Federal, que proíbe o Estado de criar ou sustentar cultos religiosos, reflete esse mesmo princípio: “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”. Essa separação não é hostilidade, é reconhecimento – reconhecimento de que cada esfera serve ao mesmo Senhor.

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À luz das Escrituras, os problemas da Igreja não se resolvem pela força do Estado. Toda tentativa de ampliar o poder civil sobre a fé só aprofunda o problema. A fé verdadeira não floresce sob coerção, mas na liberdade do coração (Jo 4,24).

Liberdade, reverência e competência

Em vez de leis que pretendem “proibir alterações” na Bíblia, o que precisamos é de liberdade civil para que igrejas fiéis, tradutores competentes e crentes instruídos possam seguir em paz as doutrinas de Cristo. O zelo pela pureza do texto sagrado pertence à Igreja – não ao Estado.

A emenda apresentada pelo senador Mecias de Jesus (Republicanos-MA) aponta um caminho mais equilibrado ao reconhecer “a legitimidade das versões canônicas da Bíblia Sagrada oficialmente adotadas pelas diferentes confissões religiosas” e reafirmar “a liberdade de pregação em todo o território nacional”. Essa formulação respeita a separação entre Igreja e Estado e reconhece a diversidade confessional do país, preservando o espaço legítimo da Igreja e da academia.

Ainda assim, o projeto como um todo permanece desnecessário e problemático. O papel do Estado não é determinar como a Bíblia deve ser impressa, mas garantir que ninguém seja impedido de crer, traduzir, ensinar ou pregar livremente. Não precisamos do Estado para proteger a Palavra de Deus – apenas para assegurar a liberdade que o próprio Criador concedeu a todo ser humano para anunciar sua fé com consciência e fidelidade.

A autoridade da Escritura não deriva de decretos governamentais, mas do próprio Deus que nela fala e pela qual julgará todos os seres humanos

Pregar a Bíblia

Como cristãos protestantes, cremos que a Bíblia é inerrante, suficiente e plenamente inspirada por Deus. Mas também confessamos que ela não precisa do Estado para ser verdadeira. A autoridade da Escritura não deriva de decretos governamentais, mas do próprio Deus que nela fala e pela qual julgará todos os seres humanos.

A Palavra de Deus não deve ser engessada por decretos civis, mas libertada pela proclamação fiel – como exorta o apóstolo Paulo: “Prega a palavra, insta, quer seja oportuno, quer não” (2Tm 4,2). O pregador batista inglês Charles Spurgeon resumiu esse princípio com uma imagem poderosa: “A Bíblia é um leão. Não precisa ser defendida; basta soltá-la, e ela se defenderá sozinha”. Spurgeon queria dizer que a Escritura possui poder inerente e autoautenticado: ela não depende de argumentos humanos ou de proteção estatal para demonstrar sua autoridade; basta ser proclamada para revelar sua força divina e transformar corações.

Assim, embora o PL 4.606/2019 nasça de um zelo religioso compreensível, ele se mostra equivocado em seus fundamentos teológicos, eclesiásticos, linguísticos, práticos e constitucionais – e, por isso, deve ser rejeitado.

A defesa da Escritura não se faz por meio de leis humanas, mas pelo poder do Espírito Santo, que convence, converte e ilumina. É sob essa mesma convicção que os protestantes ingleses exilados escreveram no Prefácio à Bíblia de Genebra (1560): “A Bíblia é a luz para nossos caminhos, a chave para o reino do céu, nosso conforto na aflição, nossa proteção e espada contra satanás, a escola de toda sabedoria, o espelho no qual contemplamos a face de Deus, o testemunho do seu favor e o único alimento e nutrição das nossas almas”.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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