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Judeu ortodoxo reza no Muro Ocidental, também conhecido como Muro das Lamentações, em Israel.
Judeu ortodoxo reza no Muro Ocidental, também conhecido como Muro das Lamentações, em Israel.| Foto: Atef Safadi/EFE/EPA

Publico hoje uma resenha de meu novo livro, Por amor de Sião: Israel, Igreja e a fidelidade de Deus, publicado por Edições Vida Nova. O autor é Willy Robert Henriques, graduado em Teologia pelo Seminário Martin Bucer, mestrando em Divindade pela mesma instituição, aluno de Relações Internacionais e participante do programa Mastership da Stand With Us Brasil, instituição que tem por missão educar sobre Israel ao redor do mundo.

Algumas perguntas importantes

Muito se popularizou nos meios teológicos reformados, principalmente por influência de nomes como Herman Bavinck, Louis Berkhof e Willian Hendriksen, a ideia de que a igreja do período gentílico substitui Israel dentro do pacto que Deus tem com o seu povo. Assim, na nova aliança, o Israel de Deus seria a igreja. Essa posição é defendida nas principais obras de teologia sistemática, sobretudo aquelas de linha amilenista. No entanto, algumas questões surgem: Essa era visão que todos os Pais da Igreja defendiam? Os reformadores eram unânimes nessa interpretação? Tal posicionamento foi consensual dentro da tradição puritana, na Inglaterra, Escócia, Holanda e Estados Unidos? O professor Franklin Ferreira, em seu novo livro, Por Amor de Sião, busca responder a estas perguntas, mostrando um outro lado da história da interpretação da Bíblia.

O autor aponta que o livro, de certa forma, é uma releitura da posição supersessionista que ele mesmo defendeu em sua Teologia Sistemática, lançada em 2007 também por Edições Vida Nova e escrita em coautoria com Alan Myatt. Em certo momento de sua vida, Franklin afirma que passou a refletir mais sobre o assunto e alguns acontecimentos o levaram a olhar de forma diferente para as questões relacionadas ao povo judeu e à Terra de Israel. O ponto principal dessa mudança, se assim se pode dizer, foi uma análise cuidadosa da carta do apóstolo Paulo aos Romanos, sobretudo os capítulos de 9 a 11, em que o apóstolo deixa claro que as promessas de Deus para o povo judeu são irrevogáveis. Antes de entrarmos na obra em si, vale salientar que o livro é recomendado por diversos nomes importantes da teologia brasileira, como Luiz Sayão, F. Solano Portela, Davi Charles Gomes, Jonas Madureira e Joel Beeke.

Na carta do apóstolo Paulo aos Romanos, sobretudo nos capítulos de 9 a 11, o apóstolo deixa claro que as promessas de Deus para o povo judeu são irrevogáveis

Um surpreendente testemunho histórico

O livro é dividido em seis partes. Logo na introdução, Franklin apresenta as razões que o levaram a escrever o livro. Ele segue aqui por uma apresentação histórica, abordando a história de Israel desde a revolta de Simão bar Kochba, em 136 d.C., até chegar ao período pós-Segunda Guerra Mundial. Aqui é mostrado o protagonismo do brasileiro Oswaldo Aranha, que presidiu a sessão especial da Assembleia-Geral das Nações Unidas que aprovou a criação do Estado de Israel, em 14 de maio de 1948. Na ocasião, dez países, incluindo o Reino Unido, se abstiveram. Outros 13, incluindo todos os países árabes, se opuseram. E 33, incluindo os Estados Unidos e a União Soviética, votaram a favor da fundação do Estado de Israel. O autor segue mostrando os diversos conflitos armados que se sucederam à fundação do Estado de Israel, com ênfase na primeira Guerra Árabe-Israelense (15/5/1948-10/3/1949), quando Egito, Síria, Iraque, Jordânia, Líbano e Arábia Saudita se uniram para atacar Israel. Nessa ocasião, quando os judeus saíram vitoriosos, 700 mil árabes palestinos fugiram da região, com medo de possíveis retaliações dos judeus vitoriosos.

Após a introdução, segue a primeira parte do livro, denominada “A longa sombra do antissemitismo”. Nessa parte, o autor se ocupa em mostrar como a igreja apostólica se via como “uma comunhão única com dois ramos, o judeu e o gentio”, ou seja, na origem os cristãos não enxergavam separação ou distinção entre judeus e gentios crentes. Citando o historiador metodista Justo González, o autor afirma que “os primeiros cristãos não criam que pertencessem a uma nova religião. Eles haviam sido judeus [por] toda sua vida, e continuavam sendo”. O ponto aqui é mostrar que o pensamento da igreja era de união e continuação, não de cisão ou ruptura. O texto chega ao século 2.º, com destaque para o pensamento de Marcião, que, rompendo a ideia de unidade, “se desfez do Antigo Testamento, que até então era a parte principal das Escrituras cristãs. Ao distinguir entre YHWH, o Deus temível da Torá, ‘o Deus criador dos judeus – o Deus da justiça e da ira’ –, que seria a divindade vingativa e violenta do ‘Velho Testamento, e o Deus gentil e amoroso e Pai do Senhor Jesus, do ‘Novo’ Testamento”. Marcião defendeu que o Antigo Testamento deveria ser totalmente rejeitado, e que não deveria nem ser lido na igreja, tampouco ser a base do ensino cristão. Além disso, Marcião retirou do Novo Testamento todas as referências judaicas, e todas as referências à Torá.

A igreja logo respondeu à posição de Marcião, porém isso não impediu que logo surgissem pessoas que levariam adiante a separação entre igreja e sinagoga. É citado como exemplo o fato de os cristãos se recusarem a se envolver nas revoltas judaicas de 66 a 70 e 132 a 136. Logo, isso ampliou a percepção do judaísmo de que os cristãos eram heréticos por crerem que Jesus era o Messias de Israel. Segundo o autor, da parte dos cristãos surgiram acusações contra os judeus que fizeram o conflito se aprofundar ainda mais, com destaque para a acusação de deicídio, atribuindo aos judeus a culpa pela morte de Jesus. “Da acusação de deicídio surgiu uma teoria de substituição que se tornou muito aceita: a nova aliança firmada com a Igreja seria uma substituição da aliança mosaica firmada com Israel. Assim, a Igreja seria o novo Israel”. O texto segue mostrando que vários Pais da Igreja, com maior ou menor ênfase, aceitaram as duas teorias, o deicídio e a teoria da substituição. Citando o erudito em Antigo Testamento Walter Kaiser Jr., Franklin argumenta algo interessante, que vale ser mencionado: “Esses pais argumentavam ‘que os cristãos já tomaram o lugar de Israel como o povo santo de Deus; cristãos, não os judeus, herdariam a terra santa’”. E a razão para essa troca teria sido a falta de fé da parte de Israel. O autor mostra que há certa incoerência nessa argumentação, pois essa ideia pressupõe que “a promessa que Deus garantiu por sua própria vida a manter para sempre foi anulada pelo próprio Deus e refeita agora para com os crentes gentios”.

Essa seria, então, a origem da teoria da substituição, ou supersessionismo; desse ponto em diante o autor mostra que, com base nessa teoria, uma onda de antissemitismo inundou a cristandade em diversas épocas de sua história. Ao tratar do antissemitismo na época dos reformadores, a ênfase do autor recai em Martinho Lutero. Ele argumenta que, de início, Lutero demonstrava uma posição branda em relação aos judeus. No entanto, com o decorrer do tempo, Lutero caminha para uma abordagem mais antissemita em relação aos judeus. Como exemplo, Franklin cita as seguintes palavras de Lutero:

“Os cristãos devem precaver-se para que não sejam seduzidos por este povo maldito e obstinado, que despreza todo o mundo [...] É um povo maligno, obcecado, e, como dizem os escritos, não abdicaram do mal nem através dos ensinamentos ou doutrinas dos profetas [...] Digo como os judeus que, vangloriando-se de ser o povo eleito de um Deus que os santificou, por outro lado desafiam suas leis, praticam o orgulho, enchem-se de inveja, aplicam usura, são sovinas e cheios de maldade. [...] O que nós, cristãos, devíamos fazer com este povo maldito e amaldiçoado?”

Às autoridades, Lutero dá os seguintes conselhos:

“Vou dar meu conselho. Primeiro devíamos incendiar suas sinagogas (ou escolas), e o que não queimar devia ser soterrado definitivamente, para honra de Nosso Senhor e da cristandade, mostrando a Deus que não toleramos ofensas a seu Filho, nem a quem o segue. [...] Não só as escolas, suas casas também deviam ser destruídas, porque dentro delas praticam a mesma coisa que nas escolas. Os judeus deveriam ser reunidos sob um único teto, como numa estrebaria, igual aos ciganos, para que saibam que não são donos da terra, mas prisioneiros, por suas mentiras e blasfêmias.”

Franklin segue mostrando posicionamentos de diversos outros reformadores em relação aos judeus, tanto favoráveis quanto contrários. Ele cita os posicionamentos de nomes como Heinrich Bullinger, Andreas Osiander, Martin Borrhaus, Wolfgang Capito, Philipp Melanchthon, Martin Bucer e João Calvino.

A segunda parte, denominada “A tradição reformada”, é talvez o ponto alto do livro no que diz respeito às pesquisas históricas. Aqui, Franklin traz uma pesquisa primorosa argumentando que os reformadores não eram unânimes na posição supersessionista. Seu ponto de partida é mostrar como a Reforma Protestante, por meio da ênfase na autoridade da Escritura, promoveu o estudo do hebraico. Com isso, gramáticas hebraicas foram publicadas, começando por diversos estudiosos na Alemanha; Peter Martyr Vermigli teve sua gramática hebraica publicada em inglês; Antonius Reuchlin, por sua vez, publicou a sua em Basileia, na Suíça. Todo esse amplo retorno às fontes e estudos do hebraico contribuíram para o reconhecimento da noção de que, de acordo com o testemunho das Escrituras Sagradas, o povo judeu e Israel são importantes no plano de Deus.

A teoria da substituição ou o supersessionismo defende o contrário do que está no texto bíblico. Se a Igreja substitui Israel, isso contradiz o que Paulo está afirmando em sua carta aos Romanos

O autor, então, segue mostrando que os puritanos, na Inglaterra e na Escócia, tinham uma visão otimista sobre Israel. Ele cita como exemplo “o anglicano William Perkins, que ensinou que o fim do mundo não podia ser esperado em breve, pois haveria tempos melhores à frente, e esses tempos melhores estavam associados à conversão dos judeus”. Seguindo na mesma linha interpretativa, o autor cita Thomas Draxe, discípulo de Perkins; Thomas Brightman, um dos primeiros clérigos ingleses a defender o retorno dos judeus à sua terra; Sir Henry Finch, parlamentar, jurista e hebraísta que publicou um manifesto defendendo que, em um futuro próximo, os judeus seriam convertidos, restaurados e teriam um império mundial. Além desses são citados também William Hooke, William Greenhill, Jeremiah Burroughs, John Owen, John Milton, Thomas Goodwin, Thomas Manton, James Durham, George Hutcheson, David Dickson, Thomas Boston, John Flavel e Samuel Rutherford. Como mencionado anteriormente, a pesquisa é vastíssima. Além dos nomes individuais, o autor cita trechos do Diretório de Culto de Westminster, de 1645, que afirmava que os clérigos deveriam “orar pela propagação do evangelho e reino de Cristo a todas as nações, pela conversão dos judeus, a plenitude dos gentios, a queda do Anticristo, e o apressar da vinda do Senhor”. O Catecismo Maior de Westminster e a Declaração de Savoy também são citados trazendo referências favoráveis aos judeus. Sem contar alguns batistas ingleses que solicitaram ajuda a Oliver Cromwell, o lorde protetor da Inglaterra, Escócia e País de Gales, para auxiliar o retorno dos judeus à Terra Prometida. Ainda nessa parte de pesquisa histórica o autor menciona muitos outros nomes e textos dos reformados holandeses, dos puritanos na Nova Inglaterra, além de outros puritanos na Inglaterra e Escócia.

Chegando ao século 20, Franklin apresenta diversos nomes também favoráveis ao retorno dos judeus a sua terra como cumprimento das profecias bíblicas. Vale menção o testemunho do presbiteriano Geerhardus Vos, autor de uma importante obra, Teologia Bíblica, lançada no Brasil pela Editora Cultura Cristã, que em 1934 afirmou: “Certo cumprimento da promessa de eleição nacional ainda permanece reservado para o futuro. Israel, em sua capacidade racial, será visitado mais uma vez, no futuro, pela graça salvadora de Deus”. Vos entedia que a conversão de Israel está claramente prevista nas Escrituras e baseava esta afirmação em todos os profetas do Antigo Testamento que falavam da apostasia e do retorno dos judeus. Há também um espaço na obra para comentar a emocionante história de Cornélia “Corrie” ten Boom, autora da famosa obra O Refúgio Secreto. Ten Boom era membro da Igreja Reformada holandesa, e foi uma sobrevivente do campo de concentração de Ravensbrück, na Alemanha. Ela foi presa em 1944 por ajudar a salvar a vida de muitos judeus, escondendo-os dos alemães nacional-socialistas durante a Segunda Guerra Mundial. Seus bisavôs, Willem e Elisabeth ten Boom, começaram reuniões de oração em sua casa, no Harleem, na Holanda, em 1844. Esse encontro tornou-se uma tradição familiar e duraria 100 anos. Toda a família Ten Boom e seus amigos oravam para que se tornasse realidade a profecia bíblica específica sobre o retorno do povo judeu à sua pátria histórica na terra de Israel.

Um capítulo também é dedicado para tratar de como a tradição luterana via os judeus, e aqui o autor mostra que, apesar dos posicionamentos de Lutero, vários teólogos dessa tradição promoveram uma perspectiva messiânica e criam numa futura conversão dos judeus, com ênfase no papel de Dietrich Bonhoeffer, que convocou a igreja alemã a tomar uma atitude contra o governo por apoiar leis racistas contra os judeus, leis estas que não tinham legitimidade alguma. Bonhoeffer chegou a afirmar que a igreja deveria “travar as rodas do Estado”, caso a perseguição aos judeus continuasse.

Na quarta parte do livro, Franklin aborda a tradição católica romana e mostra que a partir do século 19 a Igreja Católica Romana começou um longo processo de reavaliação de sua compreensão sobre a relação com os judeus e Israel. Como exemplo ele cita o estabelecimento do Patriarcado Latino de Jerusalém, em 1847. Cita também o Santo Ofício, que em 1928 condenou pela primeira vez o ódio contra o povo judeu. Cita G. K. Chesterton, que se considerava um sionista e amigo dos judeus, apesar de ser acusado do contrário. O autor cita também o Catecismo da Igreja Católica, de 1992, que reconheceu a eleição do povo judeu como um dogma explícito da doutrina católica romana. E talvez o nome mais marcante da defesa católica do sionismo tenha sido o papa João Paulo II, que estabeleceu relações diplomáticas formais entre a Santa Sé e o Estado de Israel, reconhecendo sua centralidade na vida e na fé judaica.

Ênfases teológicas importantes

A última e maior parte do livro é chamada de “Temas Teológicos”, e a sua exposição depende dos estudos históricos previamente abordados. Aqui o autor faz uma ampla defesa teológica da irrevogabilidade da promessa de Deus para o seu povo, ou seja, as promessas que Deus fez a Israel não podem ser revogadas – elas terão seu pleno cumprimento. A maior base argumentativa do autor é a carta de Paulo aos Romanos, nos capítulos de 9 a 11. Por ali, o autor defende que a igreja dos gentios é o ramo enxertado na videira, e Israel é o ramo original. Franklin mostra que a teoria da substituição ou o supersessionismo defende o contrário do que está no texto bíblico. Se a Igreja substitui Israel, isso contradiz o que Paulo está afirmando em sua carta.

Franklin também faz uma apresentação das alianças contidas na Escritura Sagrada e utiliza vários gráficos para elucidar ainda mais seus argumentos. Também aborda a questão tão debatida nos círculos cristãos a respeito do shabat. Faz uma defesa da necessidade de abordar literalmente o conceito de “terra” no Novo Testamento, assim como o uso do termo “Israel” para se referir às terras bíblicas, contra o uso generalizado do termo Palestina, usado até mesmo em obras sobre o Antigo Testamento, para designar a terra, mostrando as inclinações políticas envolvidas no uso desse último topônimo. Além disso, também oferece uma teodiceia sobre o Holocausto, que vale muito a pena ser lida.

O livro é excelente, tanto pelo tema instigante e necessário quanto pela argumentação do autor, que traz mais luz ao debate. Normalmente, qualquer defesa do cumprimento de profecias a respeito de Israel ainda por vir é atribuída à escatologia dispensacionalista, e aqui Franklin consegue mostrar que o popular consenso não leva em conta o testemunho histórico do passado. Com certeza, a partir da escrita desse livro, não há como discutir a sério esse assunto sem levar em conta o grandioso trabalho de pesquisa realizado pelo autor. Concordando ou discordando, a leitura é necessária, e não há dúvidas de que trará importantes contribuições ao leitor, e o fará pensar mais seriamente e de uma forma bem mais completa a respeito de um tema tão importante para a interpretação das Escrituras e da fé cristã.

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