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Gary Cooper no papel de Will Kane em “Matar ou morrer”.
Gary Cooper no papel de Will Kane em “Matar ou morrer”.| Foto: United Artists/Divulgação

É difícil tentar explicar para estrangeiros, sobretudo aqueles que moram em países no Ocidente onde ainda se vive sob o império da lei, o caos, o fracasso e a falência legal e moral que vivemos no Brasil. Mas, como aficcionado pelos grandes westerns de Hollywood, descobri em uma pérola, o celebrado e premiado Matar ou morrer (Hign Noon), de 1952, uma excelente alegoria que ilustra o momento que passamos. A história, narrada em tempo real, se concentra num delegado que tem seu senso de dever testado quando ele é colocado diante do dilema entre decidir enfrentar uma gangue de assassinos sozinho ou deixar a cidade com sua esposa.

Ante meridiem (com spoilers)

Em 1875, em Hadleyville, uma pequena cidade no território do Novo México, o delegado Will Kane, recém-casado com Amy Fowler, está para se aposentar. O feliz casal decidiu partir em breve para uma nova vida, para criar uma família e administrar uma loja em outra cidade. No entanto, chega a notícia de que Frank Miller, um bandido perverso que Kane enviara para a prisão cinco anos antes, foi absolvido por juizes federais “no Norte” por algum tecnicismo judicial. Libertado, chegará no trem do meio-dia para se vingar daqueles que o prenderam. A gangue de Miller – composta por seu irmão mais novo Ben, Jack Colby e Jim Pierce – espera sua chegada na estação de trem depois de cavalgar pela cidade.

Para Amy, uma devota cristã Quaker e pacifista, a solução é simples: sair da cidade antes que Miller chegue. Mas o senso de dever e honra de Kane o faz permanecer na cidade. Além disso, ele diz, Miller e sua gangue vão caçá-lo de qualquer maneira. Amy dá um ultimato a Kane: ela partirá no trem do meio-dia, com ou sem ele. E havia sido justamente por causa da religião de Amy que Kane abrira mão do cargo de delegado.

Matar ou morrer é uma excelente alegoria que ilustra o momento que passamos

Tendo decidido permanecer na cidade, Kane visita antigos amigos e aliados, que ajudaram a prender Miller no passado e a pacificar a cidade, mas nenhum deles se dispõe a ajudar. Inclusive, o juiz Percy Mettrick, que sentenciara Miller, foge e pede que Kane faça o mesmo – enquanto esconde a balança da justiça e recolhe a bandeira dos Estados Unidos. O jovem vice-delegado de Kane, Harvey Pell, amargurado porque Kane não o recomendou como seu sucessor, afirma que apoiará Kane apenas se este for aos dirigentes da cidade e “der sua recomendação” por ele. Quando Kane se recusa a fazê-lo, Pell entrega seu distintivo de delegado.

Os esforços de Kane para reunir um grupo para defender a cidade no Bar do Ramírez e, depois, na igreja protestante da cidade são recebidos com medo e hostilidade. Este é o momento crítico do filme. Kane se dirige aos moradores na igreja e os lembra de como era a vida sob a tirania de Miller – perguntando, na verdade, se eles aprenderam a lição da história. E o que segue é uma paródia da democracia. Algumas pessoas da cidade, preocupadas com o possível prejuízo à reputação da cidade causado por um tiroteio, pedem a Kane que evite o confronto. Alguns são amigos de Miller e se ressentem de que Kane tenha limpado a cidade no passado. Alguns são da opinião de que o dinheiro de seus impostos seria para apoiar a aplicação da lei na cidade e, portanto, lutar contra criminosos não seria sua responsabilidade. As aspirações de “progresso” tornam-se motivo de covardia, em vez de incitação ao heroísmo. Sam Fuller se esconde, enviando sua esposa Mildred para receber Kane e dizer que ele não está em casa. Jimmy se oferece para ajudar, mas é um deficiente visual e está bêbado; Kane o manda para casa, para sua própria segurança. O prefeito continua a instar Kane a deixar a cidade. O antecessor de Kane, Martin Howe, não pode ajudar, pois ele é idoso e sofre de artrite. Herb Baker concorda em servir como seu auxiliar, mas desiste quando percebe que seria o único voluntário. Uma oferta final de ajuda vem de Johnny, de 14 anos; Kane admira a coragem do menino, mas recusa sua ajuda.

Enquanto espera no hotel pelo trem, Amy conhece Helen Ramírez, que tinha sido amante de Miller, depois de Kane, e finalmente de Pell; ela está deixando a cidade, mas diz a Amy que, se Kane fosse seu homem, ela não o abandonaria em sua hora de necessidade.

Nos estábulos, Pell sela um cavalo e tenta convencer Kane a ir embora. A conversa se torna uma discussão e, logo, uma briga. Kane vence a briga e nocauteia seu ex-vice delegado. Kane retorna à delegacia para escrever seu testamento, enquanto o relógio marca o meio-dia. Kane, então, vai para a rua, para enfrentar Miller e sua gangue sozinho. Amy e Helen passam em uma carroça com suas bagagens, seguindo para a estação de trem. Kane e Amy trocam um olhar rápido e, em seguida, Amy olha para frente enquanto passa por ele. Significativamente, é Helen quem olha para trás, não Amy. A perspectiva se eleva e se expande para mostrar Kane sozinho em uma rua deserta. Logo depois, a gangue chega, e o tiroteio começa. Quando o trem está prestes a partir, Amy ouve os tiros, salta do trem e corre de volta para a cidade. Kane atira e mata Ben Miller e Colby, mas é ferido quando Miller tenta queimá-lo em um celeiro. Escolhendo a vida de seu marido em vez de suas crenças pacifistas, Amy pega a pistola pendurada dentro do escritório de Kane (a pistola de Pell, que ele deixou lá quando renunciou ao cargo de vice-delegado) e atira em Pierce pelas costas. Com isso, restou apenas Miller, que consegue tomar Amy como escudo humano, para forçar Kane a se expor. Mas, quando Amy arranha o rosto de Miller, ele comete o erro de empurrá-la para o chão, e Kane o mata com um tiro.

Kane ajuda sua esposa a se levantar e eles se abraçam. Enquanto as pessoas da cidade surgem e se aglomeram ao redor dele, Kane joga sua estrela de delegado no chão, olha com desgosto para a multidão e parte da cidade com Amy em sua carroça. No fim, as pessoas da cidade foram salvas, mas agora elas têm menos valor moral que o homem que as salvou.

Uma alegoria política

Esta obra icônica serve como poderosa alegoria do Velho Oeste que se tornou o Brasil. Ganham destaque a futilidade do trabalho do delegado e do juiz local, que tem seu trabalho anulado por uma corte superior “do Norte”, o que implica no retorno do vingativo Miller à cidade, cinco anos depois de ter sido preso. Também se destacam a indiferença e covardia moral dos habitantes da cidade pacificada, e o sonho utópico de se conseguir alguma conciliação dos civilizados cidadãos com o cruel bandido Miller, se Kane – que representa a Lei e a Ordem – se retirar pacificamente da cidade. Mas Kane, diante da covardia moral dos moradores, se torna um exemplo para aqueles forçados a agir contra a vontade popular – mesmo que isso signifique ficar sozinho e não receber o apoio de que precisa, seja dos políticos, dos religiosos e mesmo de amigos próximos. Mas, ainda assim, prefere ficar sozinho e ser impopular por causa do senso interior de dever, de moralidade e de honra.

Quando um grupo de cidadãos decide que deve se recusar passivamente a apoiar a lei por razões de preservação pessoal, quem, de fato, são os bandidos?

Assim, Kane é isolado da sociedade pelas mesmas qualidades que lhe conferiram prestígio. Mas, assim como Kane rejeita a autoridade moral da religião pacifista de sua esposa, ele também rejeita a “vontade do povo” e se prepara para enfrentar Miller e sua gangue sozinho. Neste momento, Kane foi privado das sanções clássicas que autorizariam o uso da violência pela autoridade civil. Ele não tem direito oficial ao distintivo de delegado, já que havia renunciado o cargo ao se aposentar naquela manhã. O prefeito define sua ação como “antiprogressista”; e a assembleia municipal reunida na igreja deixou claro que não quer mais que Kane atue como seu agente e defensor. Mas, quando um grupo de cidadãos decide que deve se recusar passivamente a apoiar a lei por razões de preservação pessoal, quem, de fato, são os bandidos? Assim, Kane se torna, na verdade, um vigilante – um homem que assume o poder da Lei sem se submeter ao processo democrático.

Há um elemento pessoal em sua decisão: Kane sabe que Miller vai persegui-lo e prefere enfrentá-lo agora a passar a vida inteira olhando por cima de seu ombro. Mas outros sentimentos e ideias também o movem. Ele é um voluntário, não um profissional: seu distintivo de delegado era sua vocação, a expressão de seu orgulho e honra, e a prisão de Miller foi sua vitória mais significativa. Ele não pode deixar o trabalho inacabado, e o retorno de Miller irá desfazer o trabalho de sua vida. Há também um componente social entre seus motivos. Seu trabalho foi significativo porque transformou Hadleyville em uma pequena cidade “progressista”, que se tornou segura para as mulheres e crianças, que agora podem andar pelas ruas sem medo. Ele não pode permitir que a cidade volte ao antigo regime selvagem, mesmo que as pessoas que constituem essa sociedade estejam dispostas a permitir isso. Com efeito, o princípio que o move é o de que a defesa da “civilização” é mais importante que a “democracia”. Mas o apelo final de Kane é a autoridade de seu caráter, força interior e hombridade. Kane é o único homem com conhecimento, habilidade e poder suficiente para derrotar Miller; e ele tem a consciência de que a posse do poder para agir implica uma responsabilidade absoluta de agir, seja ou não a ação legal ou aceitável para os cidadãos.

Diálogos impactantes

Ainda que as expressões faciais do taciturno Kane comuniquem sua luta interior de forma impressionante, há diálogos poderosos em Matar ou morrer. Por exemplo, quando Helen se dirige a Harvey Pell: “Você é um menino bonito: tem ombros grandes e largos. Mas ele [Kane] é um homem. E é preciso mais do que ombros grandes e largos para fazer um homem”. Em outro momento, Helen diz, ao decidir abandonar a cidade: “Kane será um homem morto em meia hora e ninguém vai fazer nada sobre isso. E quando ele morrer, esta cidade morrerá também. Eu posso sentir isso”. Num momento tocante, Helen se dirige em espanhol a Kane: “Um ano sem te ver”. E ele responde, cheio de melancolia: “Sim, eu sei”.

Martin, o predecessor de Kane, lhe diz de forma cínica: “Você arrisca sua pele pegando assassinos e os júris os soltam para que eles possam voltar e atirar em você novamente. Se for honesto, você será pobre a vida inteira e no fim acaba morrendo sozinho em alguma rua suja. Para quê? Por nada. Para ganhar uma estrela de lata”. Ele continua: “As pessoas precisam se convencer da Lei e da Ordem antes de fazer qualquer coisa a respeito. Talvez porque, no fundo, eles não se importem. Eles simplesmente não se importam”. Já o juiz Mettrick diz a Kane, ao abandonar a cidade: “Esta é apenas uma pequena vila suja no meio do nada. Nada do que acontece aqui é realmente importante”. E o clérigo protestante, dr. Mahin, fala para sua congregação: “Os mandamentos dizem ‘Não matarás’, mas contratamos homens para sair e fazer isso por nós. O certo e o errado parecem bem claros aqui. Mas se vocês estão me pedindo para dizer ao meu povo para sair e matar e talvez serem mortos, sinto muito. Eu não sei o que dizer. Eu sinto muito”. O leitor deve ter em mente que o mandamento em hebraico é mais apropriadamente traduzido como “não assassinarás”, o que faz sentido, em vista das instruções encontradas no Antigo Testamento em favor da legitima defesa, da pena de morte e da guerra justa.

E, quando sua última esperança de ajuda o abandona, Kane diz: “Vá para casa, fique com seus filhos, Herb”. Ao que Herb responde a Kane: “Você limpou esta cidade. Você a tornou adequada para mulheres e crianças viverem”. Por fim, quando Pell tenta fazer com que Kane fuja, este diz, exasperado: “Não me empurre, Harv. Estou cansado de ser empurrado”.

Um clássico do cinema

Matar ou morrer se tornou um dos filmes mais amados de todos os tempos. Concorreu a sete Oscars e ganhou quatro, inclusive o de melhor ator, para Gary Cooper, e de melhor canção, para Do Not Forsake Me, Oh My Darlin’, composta pelo ucraniano Dimitri Tiomkin e cantada por Tex Ritter. Katy Jurado recebeu o Globo de Ouro na categoria de melhor atriz coadjuvante, sendo a primeira atriz mexicana a ganhar este prêmio. E Matar ou morrer foi selecionado pela Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos como um dos primeiros 25 filmes para preservação no Registro Nacional de Filmes em 1989, por ser “culturalmente, historicamente ou esteticamente significativo”.

Kane encarna o verdadeiro herói. É um homem que defende o que é certo, mesmo quando ninguém mais o faz, mesmo sob risco pessoal e quando a tentação de simplesmente dar as costas é forte demais

Matar ou morrer foi criticado na União Soviética como uma “glorificação do indivíduo”. Portanto, é significativo que, em 1989, o designer gráfico polonês Tomasz Sarnecki tenha transformado a variante polonesa do pôster de Matar ou morrer em um pôster eleitoral do Solidariedade para as primeiras eleições parcialmente livres na Polônia comunista. O pôster, que foi exibido em toda a Polônia, mostra Kane armado com uma cédula dobrada dizendo “eleições” em sua mão direita, enquanto o logotipo do Solidariedade está preso ao colete, acima do distintivo de delegado. A mensagem na parte inferior do pôster diz: “Matar ou morrer: 4 de junho de 1989”. O antigo líder do Solidariedade, Lech Wałęsa, escreveu em 2004:

“Sob a manchete ‘Ao meio-dia’ está a faixa vermelha do Solidariedade e a data – 4 de junho de 1989 – da votação. Foi um truque simples, mas eficaz que, na época, foi mal interpretado pelos comunistas. Eles, de fato, tentaram ridicularizar o movimento de liberdade na Polônia como uma invenção do ‘Velho Oeste’, especialmente dos Estados Unidos. Mas o pôster teve o impacto oposto: Cowboys em roupas ocidentais se tornaram um símbolo poderoso para os poloneses. Cowboys lutam pela justiça, lutam contra o mal e lutam pela liberdade, tanto física quanto espiritual. O Solidariedade derrotou os comunistas naquela eleição, abrindo caminho para um governo democrático na Polônia. É sempre tão emocionante quando as pessoas trazem este pôster para mim para autografá-lo. Eles o estimaram por tantos anos e se tornou o emblema da batalha que todos lutamos juntos.”

Matar ou morrer se tornou o filme favorito de vários presidentes dos Estados Unidos. Dwight Eisenhower exibiu o filme na Casa Branca. Bill Clinton o exibiu 17 vezes na Casa Branca. Ronald Reagan disse que Matar ou morrer era seu filme favorito, devido ao forte compromisso do protagonista com o dever e a lei. E esse filme serve como uma poderosa alegoria para explicar o caos político e a covardia moral e espiritual de muitos diante do momento que vivemos no Brasil. Kane encarna o verdadeiro herói. É um homem que defende o que é certo, mesmo quando ninguém mais o faz, mesmo sob risco pessoal e quando a tentação de simplesmente dar as costas é forte demais. Haverá quem se espelhe em Will Kane neste país?

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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