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100 anos da Guerra do Contestado: silêncio, invisibilidade e miséria
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Claro Jansson/ Revelando Contestado
A Guerra do Contestado, sob o olhar do fotógrafo sueco Claro Jansson: foi no dia 22 de outubro de 1912 que o coronel João Gualberto e o monge José Maria foram mortos na Batalha de Irani, dando início ao conflito.

Como explicar que gente tão humilde, tão pobre, tão ignorante, tão primitiva, tenha enfrentado forças tão poderosas e durante quase quatro anos sua resistência e seu protesto?” Osny Duarte Pereira (1966)

A epígrafe que abre este refletir sobre os 100 anos do início da Guerra do Contestado foi publicada no cinquentenário do final desta, onde o grande jurista Osny Duarte Pereira, com a alma e os ossos impregnados de sua genética contestadense, deixa para este centenário um retrato dos mais completos e reais sobre o homem e a mulher do Contestado, pois os caboclos e as caboclas que foram calcinados pelas bocas dos canhões da velha república do diabo, como eles bem diziam, deixaram para o Brasil uma lição de vida, por meio de uma rede de solidariedade, audácia, inteligência e utopia, alvacenta e intátil aos olhos de milhões de brasileiros, que, um século depois, não a conhecem. Mesmo silenciado pelo tempo e pela história oficial desta república, Osny Duarte Pereira, um brasileiro nascido no Contestado, não é um desses intelectuais apolíticos roídos pelos vermes do silêncio; ele nos traz, cinquenta anos depois, um olhar atual e estarrecedor da grandiosidade erguida pelos caboclos e caboclas nos sertões da amortalhada floresta de araucárias. Mas, cem anos depois, o Contestado ainda é guerra, os tambores acabam de rufar.

Passados 100 anos do início da maior guerra civil camponesa brasileira, como entender os altos índices de miséria na região onde se teve o desenrolar dela? Tal assertiva se baseia – e é visível – nos dados públicos emitidos por órgãos federais e estaduais, que traçam “um retrato regional” e revelam que tanto a população urbana quanto a rural apresentam baixos índices de qualidade de vida, se comparada com outras regiões desenvolvidas de Santa Catarina e do Paraná. É notório que essa região já estava abaixo dos padrões de desenvolvimento regional na época da Guerra do Contestado, mas 100 anos depois, passando por todos os processos de desenvolvimento observados nos dois estados mencionados, ela não conseguiu acompanhar o padrão de riqueza das demais regiões. Este subdesenvolvimento teria origem no desenrolar da Guerra do Contestado ou estaria associado à concentração histórica da riqueza nas mãos de pequenos grupos e de famílias influentes, como os coronéis da terra do passado ou os empresários da indústria madeireira e ervateira das cidades que compõem essa região geográfica na atualidade? Quem são os miseráveis desta região: os que descendem do caboclo originário daquela terra ou os que descendem de grupos europeus que chegaram depois?

A Guerra do Contestado é um episódio complexo, pois é alimentado por vários fatores que se entrelaçam, sejam de ordem social, política, econômica, cultural, sejam de ordem religiosa. Esses elementos são os responsáveis pela atual formação territorial das cidades envolvidas no conflito.

A região do Contestado vive historicamente a complexidade e os paradoxos da riqueza concentrada e da miséria espraiada por vasta área do interior de Santa Catarina e do Paraná, principalmente na área que esteve em guerra e nas suas bordas. Qualquer proposta que venha ser elaborada no futuro, para romper o subdesenvolvimento regional, necessita considerar os fatores da sua identidade cultural, dando razão e manutenção à sua existência no conjunto da União Nacional.

Repetindo e reafirmando, passados 100 anos do início da maior guerra civil camponesa brasileira, se faz necessário entender os altos índices de miséria na região onde ela aconteceu. Cem anos depois, as políticas dos estados em questão não conseguiram incorporar socioeconomicamente a região da Guerra do Contestado, pois há um misto de incompetência dos dois estados e, inclusive, do governo federal, no que se refere às políticas públicas de inserção dos municípios que compõem a região.

A pesquisa em questão discutiu, também, o poder exercido pelos mais diversos segmentos sociais que envolvem as relações sócio-político-ambientais no contexto da Guerra do Contestado, considerando que ela aconteceu numa região estabelecida entre os poderes políticos curitibanos e florianopolitanos, tendo o primeiro maior interferência na análise, em virtude de uma possível rede comercial na época da guerra.

Claro Jansson/ Revelando Contestado
Caboclos, as maiores vítimas das batalhas, durante missa: a herança perdura.

Esta região, no período conflagrado, era chamada de “sertão inculto”. Passou por um amplo processo de desenvolvimento econômico, transformando a área numa porção de destaque no contexto sulista; porém, as condições sociais e ambientais são marcadas por grandes disparidades, havendo problemas de toda ordem. Os destaques econômicos ficam evidenciados, nos dias atuais, pelos plantations de pinus e, consequentemente, uma indústria de celulose (papel, papelão e derivados), seguidos pela pecuária, agricultura e relativa industrialização vinculada aos segmentos mencionados, que são, também, responsáveis por parte do grande número de miseráveis que subsistem na região.

Região secularmente complexa, um verdadeiro caldo de culturas de todos os cantos do Brasil e do mundo, sempre foi um espaço aberto para o recebimento de muitas gentes. Outros que ali penetraram tinham sido expulsos das zonas onde se processava a colonização, e, neste caso, o melhor exemplo é fornecido pelo vale do rio do Peixe, na década de 1910, quando a ferrovia que atravessava o vale colonizou as terras marginais aos trilhos, já ocupados por uma população luso-brasileira. A concessão de 15 km de cada lado da ferrovia, que se estendia por 372 km em território contestado, representou 6.696 km2 que foram desapropriados, um dos fatos mais marcantes da revolta popular cabocla – a expulsão das suas terras.

A Guerra do Contestado é uma lição ao Brasil, um país que não a conhece, mas que poderia aprender com suas redes de solidariedade, justiça e determinação. As mesmas análises que retrataram regionalmente a vida no Contestado, permitiram observar que a região da Guerra, nos dois estados, se caracteriza como pobre social e infraestruturalmente; porém, do lado catarinense, há um número maior de cidades desenvolvidas, com razoável parque industrial e geração de emprego, inclusive com uma população relativamente maior.

Com isso pode-se afirmar, em meio a tantos problemas levantados, que o estado catarinense foi mais competente no que concerne à integração da região a uma dinâmica socioeconômica voltada aos interesses de manutenção do território, assim como uma bem-sucedida catarinização em toda a Linha Wenceslau Braz. Mas não significa dizer que a paranização não tenha acontecido; apenas os investimentos foram menores para fazer a região se integrar à lógica da capital estadual, que está mais próxima da divisa. Enquanto Florianópolis fica em média a 300 km dos limites das ex-terras contestadas, Curitiba está a pouco mais de 100 km.

Não se abre mão de mencionar que a Guerra do Contestado se constitui como um dos momentos mais importantes da formação territorial do sul do Brasil, mesmo com forte diferenciação. Soma-se aos grandes movimentos revolucionários que marcaram a vida civil, política e militar, juntamente com a Guerra Civil (conhecida como Revolução Federalista), a República Catarinense (ou Juliana) e a Revolução Farroupilha, por exemplo.

Em síntese, a região do Contestado se caracteriza como um enorme bolsão de miséria em Santa Catarina, o que não é diferente na parte que coube ao Paraná depois da “partilha” do território, no acordo de 1916, que “colocou fim” numa guerra genocida de uma população tida como pobre – a Guerra do Contestado. A guerra foi maldita, ceifou milhares de vidas camponesas por interesses do capital e dos coronéis da época, gerando, 100 anos depois do seu início, um território maldito, marcado pela maldição das políticas públicas ineficientes, corruptas e de interesses de pequenos grupos que dominam a região, em todas as escalas.

Artigo escrito pelo professor Nilson Cesar Fraga, Mestre em Geografia (UEM) e Doutor em Meio Ambiente (UFPR).

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