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Sujos de carvão

Jeremy Bigwood
Antonio, 46, carvoeiro desde os 20

A presença da Polícia Federal no Centro de Defesa da Vida Carmen Bascarán, em Açailândia (MA), é sinal de que mais uma vez a ONG dirigida pelo advogado Antonio Filho, sob ameaça de morte de um fazendeiro local, cumpriu sua missão.

Daquela casa esticada em puxadinhos e jardins partem denúncias acompanhadas de coordenadas geográficas precisas sobre um crime em andamento.

São os que fogem, ou conseguem avisar os parentes, que dão o alerta, repassado sem identificar as fontes ao Grupo Móvel do Ministério do Trabalho, que flagra os que escravizam trabalhadores e resgata as vítimas do trabalho forçado, degradante, perigoso nas fazendas de pecuária e nos fornos de carvão.

Sentada em uma mesa de plástico redonda a procuradora do Trabalho, Cláudia Santos, ouve o piauiense Valdecio Pereira, 40 e poucos anos – o dono do “negócio”. Ele parece à vontade na camisa branca bem passada ao lado do acabrunhado Amadônio de Souza, motorista e “gato” dos três garotos silenciosos que descubro na outra ponta da varanda.

Santos explica rapidamente o esquema flagrado na produção de carvão ilegal em oito fornos no Assentamento Açaizal, em Itinga, município a 80 quilômetros dali. Valdecio, o dono do caminhão e dos fornos, pagava R$ 100 por gaiola (55m³) de madeira no pasto a um fazendeiro em Vavalândia, próximo ao assentamento, e queimava o carvão em um lote “emprestado por um amigo”, segundo seu depoimento à procuradora. Os “corretores das guseiras” passavam como a gaiola e a enchiam na boca do forno por R$ 3 mil, segundo Valdecio.

O trabalho pesado ficava a cargo dos rapazes, resgatados depois de três meses de trabalho forçado, vivendo em “moradia sem condições de habitabilidade”, segundo a procuradora. De acordo com o relatório da equipe do Ministério do Trabalho, os meninos penduravam as redes sob uma cobertura de palha sem paredes e dormiam imersos na fumaça dos fornos. Não havia água potável – eles bebiam dos baldes que usavam para controlar a temperatura dos fornos, o que os obrigava a realizar turnos de vigília depois de jornadas de trabalho braçal que ultrapassavam 12 horas. As refeições eram preparadas por eles no mesmo local, e não havia alimentos em condição adequada para o consumo.

“Essas condições violam a dignidade do trabalhador. Por isso, eles serão autuados por exploração de trabalho em condições análogas à escravidão”, explica a procuradora, que incluiu na lista de violações a restrição de liberdade – devido à distância e ao isolamento – e exigiu de imediato os salários jamais pagos aos meninos.

Antonio dos Santos Gomes, 21 anos, o Tonho, é o único que parece confiante em falar sobre o episódio. Jônatah Cruz de Souza, 19 anos, concorda em gravar a entrevista, mas demora a participar da conversa. O terceiro – um rapaz com problemas de dicção – não quer sequer revelar o nome.

Combinamos não tirar fotografias. Para quebrar o gelo, pergunto sobre a vida de Tonho.

Ele é o mais velho de sete irmãos, nasceu “perto de Imperatriz”, a 90 quilômetros dali, e estudou em Açailândia até a 6ª série. Aos 10, passou a ajudar o pai no trabalho braçal nas fazendas e, aos 12, passou a trabalhar também sozinho, como servente de pedreiro.

No esquema de Valdecio, era ele o mais rápido para “bater tora” – arrancar os troncos, tocos e roçar a juquira para deixar o pasto limpo para o fazendeiro. Depois enchiam o caminhão com a madeira cortada por Amadônio, que às vezes os ajudava. Chegavam ao assentamento no fim da tarde, depois de 10, 11 horas de trabalho. Aí descarregavam a madeira e enchiam os fornos – eram quatro dias para encher os seis que estavam em uso.

“Encher forno é ligeiro, bater tora é o mais ruim. Era só madeira nativa, tinha tão pesada, que precisava de quatro pessoas pra carregar”, conta Tonho.

À noite, eles se revezavam para cuidar dos fornos. “Tem que vigiar, jogar água e, se começa a pegar fogo, tem que apagar e tirar o carvão com o garfo porque senão perde tudo”.

Pergunto sobre o calor e a fumaça, e os três dão risada.

“Eu sentia um pouquinho de respirar aquela fumaça preta, a garganta, um calor do caramba”, diz Jônatah, levemente irônico.

Pergunto se eles sabiam que aquele trabalho era considerado análogo à escravidão. A resposta de Tonho vem rápida.

(…)

Leia mais em Amazônia Pública.

*Artigo escrito por Marina Amaral, jornalista do Amazônia Pública. O projeto envolveu três equipes de repórteres da Agência Pública de Reportagem e Jornalismo Investigativo, que percorreram regiões amazônicas: no pólo de mineração em Marabá (PA); na bacia do Rio Tapajós; e em Porto Velho e as hidrelétricas do rio Madeira.

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