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Carta assinada por 34 organizações estudantis de Harvard culpam Israel pela guerra contra o Hamas.
Carta assinada por 34 organizações estudantis de Harvard culpam Israel pela guerra contra o Hamas.| Foto: Somesh Kesarla Suresh/Unsplash

Os ataques terroristas do Hamas contra Israel não acenderam apenas uma guerra local. Enquanto Gaza é arruinada por bombardeios, as democracias liberais se veem engolfadas em uma preocupante série de escaramuças ideológicas muitíssimo reveladoras, e que ainda revelará altos custos políticos.

Diversos países europeus testemunharam atos públicos de solidariedade não apenas aos palestinos, mas ao próprio Hamas, e as manifestações de antissemitismo pipocaram em importantes capitais. No dia 12 de outubro, o ministro do Interior da França, Gérald Darmanin, proibiu as demonstrações pró-palestinos e ameaçou deportar imigrantes desobedientes. Na Alemanha essas expressões atingiram um grau exasperante, e já em 11 de outubro o chanceler Olaf Scholz proibiu manifestações anti-Israel.

Mas a coisa segue fervendo. Ontem, o vice-primeiro-ministro Robert Habeck declarou em discurso que “a escala das manifestações islâmicas em Berlim e em outras cidades na Alemanha é inaceitável e demanda uma dura resposta política”. Habeck disse explicitamente que, para seguir desfrutando da tolerância no país, os muçulmanos terão de estendê-la aos judeus, e que o Estado de Israel tem uma responsabilidade histórica com os judeus e com a segurança de Israel. Alemães que praticarem antissemitismo serão processados, e imigrantes que o fizerem serão deportados.

A esquerda, e principalmente os esquerdistas mais jovens, estão de algum modo envenenados, a ponto de serem citados juntamente com a extrema direita e os neonazistas

Mas o que capturou minha atenção no discurso de Habeck foi a admissão de que há uma linha distinta de antissemitismo que é praticada pela esquerda e especificamente por jovens ativistas. E qual seria a bandeira desses jovens-esquerdistas-antissemitas? O anticolonialismo. “O anticolonialismo não deve levar ao antissemitismo”, declara Habeck. Em seguida ele exorta essa esquerda a rever seus argumentos e a largar o doisladismo que obscurece a clareza moral da questão.

Não é impressionante que um chefe de governo precise vir a público para tal sorte de exortação? Mas é preciso ler com atenção o subtexto dessas declarações: a esquerda, e principalmente os esquerdistas mais jovens, estão de algum modo envenenados, a ponto de serem citados juntamente com a extrema direita e os neonazistas. Habeck cita o pensamento anticolonialista especificamente, mas sabemos que essas agendas andam de mãos dadas na atual síntese identitária.

No Reino Unido as coisas não estão melhores. Em 14 de outubro aconteceram protestos anti-Israel em várias cidades e uma enorme manifestação em Londres, que deixou o governo preocupado. Mas o pior se aproxima: uma grande marcha anti-Israel marcada para se realizar em pleno Remembrance Day, que celebra a memória dos mortos na Primeira Guerra Mundial. A expectativa é de reunir pelo menos 100 mil pessoas. O primeiro-ministro britânico, Rishi Sunak, publicou uma declaração afirmando que “planejar protestos no Dia do Armistício é provocativo e desrespeitoso”, e que está tomando providências. O comentarista político Douglas Murray, que há tempos observa a descaracterização da civilização britânica por imigrantes que são radicais islâmicos, comentou em entrevista a Rita Panahi na SkyNews que uma marcha nessa data seria uma provocação deliberada contra o povo britânico, e que uma defesa da agenda neonazista do Hamas nessa marcha inevitavelmente demandará uma resposta nacional.

Na mesma entrevista, Murray comentou outro fenômeno simultâneo: a preocupação de políticos de esquerda – como Kamala Harris, nos EUA, e o prefeito de Londres, Sadiq Khan – com o perigo da “islamofobia”. O problema, obviamente, é que no momento são os judeus que sofrem intimidação nos EUA e em várias cidades europeias. Além disso, muçulmanos engrossam as fileiras dos que endossam, de forma mais ou menos explícita, o terrorismo do Hamas. Harris foi duramente criticada pela insensibilidade de lançar um plano governamental contra a islamofobia bem no momento em que o antissemitismo entra em franca ascensão, impulsionado por radicais islâmicos.

Mas vamos à cereja do bolo: as universidades. Muita gente ficou chocada com o vídeo do bullying contra um pequeno grupo de judeus praticado por uma turba de estudantes na Universidade Harvard. Mas a infecção parece generalizada. Logo após os ataques, dezenas de associações estudantis de Harvard se manifestaram culpando Israel pelos ataques do Hamas, e o presidente da Universidade Harvard ficou em silêncio a respeito por vários dias. A declaração foi condenada por professores importantes como Steven Pinker, e sua reticência custou caro em termos políticos e mesmo financeiros, com a perda de financiadores bilionários.

A verdade, no entanto, é que os estudantes moralmente confusos são apenas metástases. A origem da doença tem relação com o estado das instituições. Ninguém menos que o cientista político de esquerda Yascha Mounk, que vem recebendo grande atenção por sua obra recém-lançada The Identity Trap (“A armadilha da identidade”), observando atentamente as reações de primeira hora após o ataque terrorista, notou que não apenas grandes jornais anglófonos patinavam na condenação do incidente, mas também as universidades.

Não apenas o “esquerdismo”, em termos genéricos, mas o identitarismo, especificamente, é uma ideologia que destrói alguns aspectos da sensibilidade moral natural, causando um tipo de cegueira moral

Mounk comentou, num tuíte de 9 de outubro: “Não é só Harvard. Revisei as contas do Twitter e do Instagram de Yale, Princeton, Columbia, Stanford, Dartmouth e Johns Hopkins. Nem uma única delas emitiu uma declaração sobre as atrocidades cometidas pelo Hamas”. Na sequência, Mounk comentou que universidades nem deveriam emitir esse tipo de declaração, mas, desde que elas costumam fazê-lo a torto e a direito, não poderiam ter silenciado quando as vítimas foram judeus.

O fato é que a contaminação é extensa. A Casa Branca anunciou em 30 de outubro que tomaria uma série de medidas diante do crescimento do antissemitismo em universidades e faculdades do país. E se o governo Biden, mais à esquerda, precisou tomar tal atitude, podemos crer que situação é de alta gravidade.

É evidente que não se trata de um problema de estudantes imaturos; os “jovens de esquerda” confundindo anticolonialismo com antissemitismo, segundo observou o vice-chanceler da Alemanha, são vetores de uma ideologia basicamente universitária. Não há outra explicação para uma frente unificada, na Europa, reunindo imigrantes islâmicos radicais e jovens progressistas. Mas o que faz jovens de esquerda aceitarem, juntamente com o pacote ideológico, o antissemitismo? Yascha Mounk argumenta, em The Identity Trap, que a síntese identitária amarra todos esses temas em um único complexo: antirracismo, feminismo, gênero, anticolonialismo, etc., através do conceito de interseccionalidade, e que o pensamento anticolonialista de Edward Said seria uma das fontes dessa síntese identitária.

De igual modo, a síntese identitária é ensinada em universidades, reproduzindo-se nos estudantes e em todo o sistema de credenciamento da classe cosmopolita nos EUA. É daí que ela atinge a mídia e a produção cultural, com os resultados que agora testemunhamos. Não é das igrejas que vem o antissemitismo de esquerda dos EUA, mas do mundo acadêmico. Os indícios são substanciais.

De novo, isso possivelmente explica por que a esquerda brasileira e nosso jornalismo se mostraram tão reticentes na condenação do terrorismo do Hamas, com enorme impacto político, a ponto de o governo perder significativamente sua popularidade, segundo dados da AP Exata Inteligência Digital. Alguns, como o jornalista Caio Blinder, se revoltaram publicamente. E ao mesmo tempo em que defendiam a legitimidade dos ataques terroristas e rejeitavam o direito de autodefesa de Israel, militantes on-line e jornalistas fustigavam o sionismo evangélico. Ocorre, nesse caso, que os evangélicos estavam do lado da civilização, e a elite da esquerda, ao lado da barbárie.

Não há como suavizar o problema: não apenas o “esquerdismo”, em termos genéricos, mas o identitarismo, especificamente, é uma ideologia que destrói alguns aspectos da sensibilidade moral natural, causando um tipo de cegueira moral. O antissemitismo é um fruto terrivelmente podre que essa ideologia engendrou, mas não é o único. É necessário resistir à síntese identitária por todos os meios políticos, educacionais e intelectuais disponíveis, expondo esse mofo ao sol do bom senso, e construindo alternativas melhores para a sociedade brasileira. Mas, para isso, as universidades, com seus vieses de esquerda, precisam entrar num movimento de autocrítica e assumir suas responsabilidades históricas.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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