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O Anticristo (ao centro), em representação do Atlas Catalão (1375).
O Anticristo (ao centro), em representação do Atlas Catalão (1375).| Foto: Wikimedia Commons/Domínio público

Ao discutir nessa coluna o problema com Eric Voegelin, levantamos um problema na imaginação política conservadora: para se afastar do gnosticismo progressista – o ódio à realidade histórica e o sonho de um outro mundo –, o conservador corre o risco de odiar o próprio evangelho, que anuncia a salvação divina dentro da história.

Embora não fosse ele mesmo conservador, Eric Voegelin arrastou muitos conservadores e principalmente católicos nessa direção. No entanto, suas críticas a Moisés, Isaías, os profetas bíblicos, o apóstolo Paulo e os reformadores protestantes não deixam dúvidas: sua “solução” para o problema da concupiscência progressista é um neopaganismo.

Mas como andar nessa corda bamba? Ao final do nosso artigo da semana passada, argumentei que a parecença do cristianismo com o progressismo, no assunto da relação entre Esperança e história, é inevitável. A fé cristã na ressurreição e em uma nova criação foi historicamente capturada pelo epicurismo e secularizada, engendrando uma coisa parcialmente cristã e parcialmente anticristã, um antievangelho: o seu “duplo iníquo”.

Meu ponto é que isso é um destino histórico. Onde há evangelho, há um antievangelho; ou, para usar uma linguagem bíblica, um anticristo. Ora, em um país com tantos católicos e evangélicos, esse confronto já está dado; aprender a lidar com ele é uma questão de sobrevivência.

Embora não fosse ele mesmo conservador, Eric Voegelin arrastou muitos conservadores e principalmente católicos nessa direção. Mas sua “solução” para o problema da concupiscência progressista é um neopaganismo

“Não acrediteis”

Quanto a esse duplo iníquo não faltam advertências no Novo Testamento. Segundo o relato do evangelista Mateus, Jesus instruiu explicitamente aos discípulos: o tempo da espera, o entretempos entre o primeiro e o segundo advento, será marcado pela ameaça do engano:

“Então, se alguém vos disser: O Cristo está aqui! ou: Ele está ali, não acrediteis. Porque surgirão falsos cristos e falsos profetas, que realizarão grandes sinais e milagres, a tal ponto que, se fosse possível, enganariam até os escolhidos. Eu vos tenho dito essas coisas antes que aconteçam. Portanto, se vos disserem: Ele está no deserto; não saiais; ou: Ele está dentro da casa; não acrediteis. Porque, assim como o relâmpago sai do oriente e se mostra até o ocidente, assim também será a vinda do Filho do homem. Pois onde estiver o cadáver, ali os abutres também se ajuntarão.” (Mateus 28,23-28)

Estamos acostumados a pensar em Jesus e seus seguidores com a turma da fé – os evangelhos são cheios de convites, estímulos e mandamentos sobre o imperativo do crer. Por isso mesmo é da maior importância o momento em que o Senhor nos convida à descrença e à suspeita. É isso mesmo: suspeitar é uma importante disciplina cristã.

O argumento do Senhor vai nessa direção: um grande perigo será libertado no entretempos, cuja malignidade particular não se expressa no ódio aberto, na violência e na perseguição, mas na plausibilidade da semelhança. Cristo ordena aos discípulos, então, uma atitude de discernimento crítico e até mesmo de prevenção contra essa ameaça. Essa prevenção crítica constitui uma importantíssima dimensão da esperança cristã; é uma prevenção consciente e ativa à falsa esperança e a seus agentes: o falso messianismo e o falso profetismo.

A advertência de Jesus se insere no chamado “apocalipse sinótico” que aparece em Mateus 24, Lucas 21 e em Marcos 13. Esse “pequeno apocalipse” adverte sobre a “abominação da desolação”, uma profecia que alude à profanação do templo de Jerusalém por Antíoco Epifânio, no tempo das guerras dos Macabeus, e que teria recebido um cumprimento imediato com a destruição de Jerusalém no ano 70 AD. O pano de fundo bíblico dessa linguagem seria, por sua vez, a profecia registrada no livro do profeta Daniel, sobre o “assolador”. Essa “abominação”, que estaria no lugar “onde não se deve estar” (Mc 13,14), seria uma pessoa.

O anomos

O apóstolo Paulo se refere a esse indivíduo em termos similares, também aludindo à profecia de Daniel, mas com maior detalhamento. Sua discussão a respeito é interessantíssima e muito atual – o filósofo Giorgio Agamben, por exemplo, debruçou-se sobre a linguagem do messiânico e do antimessiânico em Paulo. Vale uma citação mais longa do apóstolo:

“Irmãos, acerca da vinda de nosso Senhor Jesus Cristo e da nossa reunião com ele, vos pedimos que não mudeis facilmente o vosso modo de pensar nem fiqueis assustados por causa de espírito, palavra ou carta atribuídos indevidamente a nós, como se o dia do Senhor já estivesse bem perto. Ninguém vos engane de modo algum, pois isso não acontecerá sem que primeiro venha a apostasia e seja revelado o homem do pecado, o filho da perdição, que se opõe e se levanta contra tudo que se chama Deus ou é objeto de adoração, a ponto de assentar-se no santuário de Deus, apresentando-se como Deus. Não vos lembrais de que eu vos dizia essas coisas quando estava convosco? E agora sabeis o que o detém para que seja revelado no tempo certo. Pois o mistério da impiedade já está atuando, e falta apenas ser tirado do caminho aquele que agora o detém; e então esse ímpio será revelado, a quem o Senhor Jesus matará com o sopro de sua boca e destruirá com a manifestação da sua vinda. A vinda desse ímpio se dá por meio da força de Satanás com todo o poder, sinais e falsos milagres, e com todo o engano da injustiça para os que perecem, pois rejeitaram amar a verdade para serem salvos. É por isso que Deus lhes envia a atuação do erro, para que creiam na mentira, para que sejam julgados todos que não creram na verdade, mas tiveram prazer na injustiça.” (1Ts 2,1-12)

O que temos é uma espécie de falso messias, que tem sua “revelação” (apokalypsis), a sua própria “vinda” (parousia), que se apresenta como Deus e é adorado no santuário de Deus, que realiza sinais e prodígios e convence os homens da mentira. Essa figura é uma paródia escatológica de Cristo, uma vez que sua manifestação precede o Segundo Advento de Cristo, que o destruirá.

É da maior importância o momento em que o Senhor nos convida à descrença e à suspeita. É isso mesmo: suspeitar é uma importante disciplina cristã

Paulo o descreve como o “iníquo” ou anomos: o sem-lei. De modo impressionante, o sem-lei é também o que se levanta contra todos os cultos (o que poderia ser contado como uma resistência à idolatria), mas se assenta no santuário como se fosse o próprio Deus, exigindo adoração universal.

É intrigante o fato de que Jesus fora acusado de falar contra o templo e contra a lei e que, no princípio da igreja, Estêvão tenha sido martirizado precisamente sob essas duas acusações (como registrado no livro dos Atos dos Apóstolos). O iníquo representa uma superação da lei que poderia ser confundida com a mensagem apostólica da graça, e também uma forma radicalizada da crítica à idolatria que culminaria na divinização do próprio homem. Ele manifesta uma transcendência da lei e uma autoridade sobre o culto que lembram o messiânico.

A manifestação desse contrário de Cristo, o anomos, é impedida até o momento final por um poder misterioso: “aquele que o detém” (katechōn). Essa figura foi, ao menos desde Tertuliano (160-220), identificada com o Império Romano e, posteriormente, com o Estado, tornando-se a principal justificativa histórica da ideia de um império cristão, cuja finalidade básica seria suprimir e atrasar o mal. Na opinião de Giorgio Agamben, todas as teorias do Estado que o veem como um poder destinado a suspender o mal seriam versões secularizadas dessa interpretação.

O katechōn também foi associado ao Espírito Santo e à própria igreja, que seriam esses supressores do mal até o tempo determinado por Deus. Em meu julgamento, a tese de que a autoridade política é o que detém o iníquo tem certa ressonância com a visão da autoridade sustentada por Paulo em Romanos 13; nesse caso, a ascensão do iníquo não seria a mera ascensão de um poder político, mas de um poder caracteristicamente antimessiânico: a Besta, na linguagem de Apocalipse.

Uma “tragédia” anunciada

Temos maior segurança sobre como a história se desenvolverá antes dessa crise final. O “entretempos” – esse período entre vinda de Cristo e a sua volta – envolve um tipo de ambiguidade, no qual o mistério da iniquidade já está em operação, aguardando a oportunidade de chegar ao clímax. A julgar pelos ensinos de Jesus e de Paulo também, a aparente vitória da mentira antecederá a vitória da verdade.

Há, então, um desenvolvimento quase trágico na missão cristã; um tipo de simultaneidade entre a propagação do mistério do evangelho e o crescimento do mistério da iniquidade, tendo este último uma vitória temporária. A coisa toda faz lembrar a construção da luta entre o bem e o mal na obra de Tolkien, como uma longa derrota, um irremediável declínio com algumas vitórias ocasionais.

Não negaremos, naturalmente, a esperança em uma nova Criação; é que não há como confundi-la com os frutos do progresso ou de uma revolução social. Não, ao menos, para quem leva o evangelho a sério. Daí falarmos em um espírito, entre aspas, “trágico”, a dimensão pessimista do cristianismo.

A julgar pelos ensinos de Jesus e de Paulo também, a aparente vitória da mentira antecederá a vitória da verdade

Nas cartas de João nós encontramos referências muito mais explícitas à essa operação enganosa no entretempos:

“Filhinhos, esta é a última hora; o anticristo está vindo, já muitos anticristos se têm levantado, conforme ouvistes; por isso, sabemos que é a última hora. Eles saíram dentre nós, mas não eram dos nossos, pois se fossem dos nossos teriam permanecido conosco; mas todos eles saíram, para que se manifestasse que não são dos nossos.” (1João 2,8-9)

Aqui a expressão “anticristos” aparece para designar um fenômeno um pouco diferente: não se trata daquela figura escatológica final, o “assolador” de Daniel, nem de falsos Cristos, mas de “filhos” da igreja – mestres que carregam o nome de Cristo, mas o negam em sua doutrina e em suas obras. A leitura dessa epístola joanina mostra que esses indivíduos negam que “Jesus Cristo veio em carne” e que ele seja o Filho de Deus, e isso os torna “enganadores” e “anticristos”, mas também “falsos profetas”.

Essa conjunção é muito importante: a operação antimessiânica se desdobra desde o início na história cristã como uma profecia falsa, o anúncio de uma paródia de Cristo, de um outro Cristo que não é o Verbo encarnado. O antimessiânico sai, assim, de dentro da própria igreja, como uma excrescência maligna, cultivada por outro espírito e que se utilizou do corpo da igreja. Mas sua natureza alienígena é manifesta no abandono da tradição apostólica e em sua competição com ela, tentando confundir os filhos de Deus.

A falsificação nasce de dentro das igrejas, mas com uma mensagem que representa o seu contrário, o “mundo”

Em nome de quem falam os falsos profetas? João é muito claro: “eles são do mundo; por isso falam como quem é do mundo, e o mundo os ouve” (1Jo 4,5). A falsa profecia tem outra fonte e outra voz; é o próprio mundo falando à igreja com a linguagem da igreja ou semelhante a ela. A linguagem herética é essa linguagem paracristã, que anunciará outro Cristo com o nome de Cristo; mas ela só será ouvida por quem não é Deus e despreza a mensagem apostólica.

É claro que a obra do anticristo não para por aí; como vimos, tanto Jesus quanto Paulo se referem a uma figura escatológica que goza de poder político e influência cultural. Mas a questão da relação entre o anticristo e o Estado ficará para outra coluna. Nosso ponto principal, hoje, é compreendermos a dupla genealogia do anticristo: a falsificação nasce de dentro das igrejas, mas com uma mensagem que representa o seu contrário, o “mundo”. E é por isso que a fé madura e sadia precisa envolver uma boa dose de espírito crítico e de discernimento moral.

Viver o cristianismo também é acomodar à Esperança certo espírito “trágico”; e aprender com Jesus Cristo a suspeitar bem.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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