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Manifestantes comemoram com lenços verdes – o símbolo dos ativistas pró-aborto – fora do Congresso argentino em Buenos Aires em 11 de dezembro de 2020.
Manifestantes comemoram com lenços verdes – o símbolo dos ativistas pró-aborto – fora do Congresso argentino em Buenos Aires em 11 de dezembro de 2020.| Foto: RONALDO SCHEMIDT / AFP

A Revolução Sexual deixou muita gente feliz mais ou menos do mesmo jeito que fumar deixa os fumantes felizes” – Mary Eberstadt

Em “Adão e Eva depois da Pílula” (Quadrante, 2019), a genial Mary Eberstadt escreveu um indispensável volume sobre os efeitos inesperados da revolução sexual sobre os alegados maiores beneficiários dessa grande transformação: as mulheres.

Com um impressionante arsenal de evidência científica empírica de ciências sociais, ela demonstra, para além de qualquer dúvida, a grave ambiguidade da liberação sexual: queda nas estatísticas de felicidade feminina; colapso do romance e do erotismo e pornificação generalizada; aumento de depressão, alcoolismo e comportamentos de risco entre homens; adolescência estendida e a “síndrome de peter pan”; aumento dos divórcios com graves efeitos na saúde mental de crianças e adolescentes, incluindo de suicídios; impotência sexual decorrente de vício pornográfico; cultura tóxica em universidades (com aumento de violência sexual entre estudantes, inclusive); e, naturalmente, essa patológica necessidade de abortar.

Embora seja um fã de longa data, e aprecie seus louvores à Humanae Vitae, confesso minhas divergências para com a autora; como protestante não posso concordar totalmente com suas acusações contra os métodos contraceptivos. Ainda assim, seu quadro geral sobre a revolução sexual me parece indisputável. Esse fenômeno moderno, a “desestigmatização e desmistificação do sexo fora do casamento”, com a “redução das relações sexuais... a uma espécie de recreação higiênica na qual tudo pode acontecer” desde que haja “consentimento”, é o que está por trás desse estranho imperativo de abortar. Ou melhor: de manter aberta uma rota de fuga.

Às denúncias de Eberstadt contra a revolução sexual eu gostaria de contribuir com as minhas próprias, que tem relação com um tema frequente dessa coluna: a revolução afetiva e presente cultura do Self, que tem tudo a ver com o abortismo.

Muitas almas conservadoras assistiram horrorizadas à cena de milhares de mulheres, nos estertores do ano de 2020, celebrando em Buenos Aires a descriminalização do aborto na Argentina. Outras tantas almas, de satisfação sorriram e esfregaram suas mãos em terras Brasileiras. Foi, indubitavelmente, um grande feito das esquerdas na América Latina, e precisamos nos debruçar sobre o seu significado.

Em outro artigo faremos observações sobre o significado político e eleitoral da tragédia argentina; nosso assunto hoje é a ascensão dessa nova pandemia moral que se aproxima do Brasil. Pandemia da qual o aborto é um dos grandes vetores de contaminação.

A outra pandemia

Vale a pena mencionar um efeito, em particular, sobre a personalidade e o caráter da mulher contemporânea: uma epidemia de narcisismo:

Numa pesquisa publicada em 2009 e amplamente debatida, o psicólogo Jean Twenge utilizou dados de mais de dezesseis mil universitários e descobriu que aumentara dramaticamente a pontuação obtida por um teste de personalidade que mede o ‘índice de narcisismo’ entre jovens adultos – e, entre as mulheres, o crescimento mostrava-se desproporcional.” – Mary Eberstadt

Esses resultados preocupantes não chegam a impressionar os que observam, há anos, a intensificação desse duplo padrão: uma ênfase cada vez maior, na indústria cultural e de entretenimento, no empoderamento, autonomia, autoatualização e autoestima feminina, de propagandas de produtos de beleza a materiais didáticos de etiqueta e educação-moral-e-cívica da subcultura W.E.I.R.D. como a revista Marie Claire. Ênfase tão excessiva que, honestamente, nos faz sentir que há algo patológico.

Duplo padrão: porque, simultaneamente com isso, temos uma difundida leniência com a adolescência estendida masculina, e com o que se convencionou chamar de “homenino” – os homens acostumados a cuidar do próprio umbigo, entregando-se à bipolaridade de busca de sucesso e catarses hedonistas e evitando estudadamente compromissos permanentes com mulheres e filhos. Ao mesmo tempo, em filmes Hollywoodianos, todos continuam sonhando com grandes homens que na última hora se sacrificarão pelas mulheres e por seus filhos.

Paradoxalmente, as mulheres reclamam bastante desse tipo de homem que ajudaram a criar – afinal, todo mundo tem mãe, inclusive os homeninos; mas a paternidade, no entanto, vem se tornando uma raridade. E muitas mulheres estão lentamente descobrindo que é necessário um pai para formar outro pai.

O padrão narcisista, que busca autossatisfação sem compromissos, ao mesmo tempo em que depende totalmente do mundo externo e odeia essa dependência, é fruto direto da socialização humana em um sistema de capitalismo emocional, no qual a vida afetiva é desregulamentada (pela destruição da moralidade tradicional) e então comodificada. Vira produto. O conjunto dos compromissos morais e sociais passa a existir em função do bem estar individual, segundo regras de mercado e sob a gestão vigilante e inteligente da indústria cultural – tema exaustivamente explorado na obra da socióloga Eva Illouz.

Assim devemos ler a facilitação do divórcio, o fim da fidelidade e a normalização dos relacionamentos abertos, as novas formas de sexo extraconjugal, a autoajuda feminina dedicada a auxiliar mulheres a lidar com perdas emocionais constantes, a “evolução” do direito de família, os sites de relacionamento e a ascensão meteórica da pornografia: a colonização da vida afetiva íntima e familiar pela lógica do consumo, criando um grande sistema de laissez-faire afetivo. Cujos efeitos colaterais já mencionamos acima e mencionaremos novamente abaixo.

Tão extensiva e radical foi a hegemonia desse padrão narcisista, descrito desde 1959 por Philip Rieff como o paradigma do “Homem Psicológico”, que esse pathos eventualmente se transformou em uma metodologia política universal, centrada na autoafirmação e na autoexpressão, e desinteressada no “bem comum” e no princípio da fraternidade. Foi assim que surgiram as modernas políticas identitárias, como há anos o Dr. Mark Lilla vem denunciando em ensaios e artigos. E assim o novo paradigma fechou suas duas pinças: tanto o mercado quanto a política operam sob as “leis” do capitalismo emocional.

A revolução sexual foi uma das principais demandas do novo modo de organização da vida moral e afetiva instaurado pela ascensão do “Homem Psicológico”: separando sexo de procriação e de compromissos maritais, ela supostamente libertaria a mulher da servidão do patriarcado – ou seja, da prisão à fertilidade e à maternidade, permitindo que ela desfrutasse de todas as liberdades e do poder dos homens na arena pública. O movimento feminista, que inicialmente via com olhos mais benevolentes a dignidade do lar, da feminilidade da maternidade, “converteu-se” ao novo paradigma de autoafirmação e autoexpressão e foi com isso recrutado pelo controlador de todas essas marionetes: o sistema do capitalismo emocional.

Como o feminismo, outros movimentos sem conotações originalmente narcisistas, como movimentos antirracistas, foram batidos no liquidificador ideológico juntamente com ideias de direitos reprodutivos e LGBTQIA+, transformando-se em ferramentas de expansão do capitalismo emocional. Penso que essa epidemia narcisista, denunciada desde os anos 1950, tornou-se claramente uma pandemia narcisista quando os partidos de esquerda perderam seu antigo foco na luta de classes e ganharam outro centro de gravidade: as políticas da sexualidade.

A politização do capitalismo emocional permitiu ainda que ele possuísse a alma do moderno movimento dos Direitos Humanos, distorcendo profundamente a sua intenção original. Igualando liberdade, igualdade e dignidade com ideologia liberal, a elite burocrática dos Direitos Humanos tornou a própria ideia de Direitos Humanos em um aguilhão contra as moralidades menos individualistas e mais comunitaristas na sociedade, que sobrevivem na religião e em muitas famílias.

A revolução e o seu "backup"

O aborto, segundo a mordaz, mas verdadeira observação de Mary Eberstadt, é o “plano permanente de backup” da revolução sexual. Se outros métodos contraceptivos não funcionam por qualquer razão, é sempre possível matar o mal pela raiz. E o mal é, naturalmente, a falta de escolha das mulheres (a raiz são as crianças).

Ora, sem dúvida nenhuma há casos extremos no tocante ao aborto, como anencéfalos, gravidez por estupro ou com alto risco para as mães, e haveria muito o que dizer a respeito. Mas não precisaremos discutir aqui se há exceções e o que fazer com elas; pois nem a feminista mais fervorosa negará que, em sua defesa dos direitos reprodutivos, o que se tem em mente não são apenas esses casos extremos, mas qualquer situação de gravidez. O ponto não é resolver exceções, mas libertar as mulheres do controle patriarcal. É um ponto ético e político: isso ficou claro como o dia quando milhares de mulheres gritaram em coro, no dia 30 de Dezembro de 2020:

¡Abajo el patriarcado que va a caer, que va a caer!

¡Arriba el feminismo que va a vencer, que va a vencer!

O abortismo quer liberar a mulher da prisão da fertilidade e da maternidade e garantir-lhe o absoluto controle do próprio corpo, visando o que Anthony Giddens descreveu em “A Transformação da Intimidade” como “a relação pura” – o poder de permanecer em relacionamentos apenas enquanto trazem retribuições significativas – permitindo assim o laissez-faire sexual e emocional.

Nesse sentido o aborto liberta os homens também; pois eles não precisam mais se preocupar em cuidar de mulheres e filhos para ter sexo. E, por esse mecanismo simples e óbvio, as mulheres se tornaram de repente um objeto bastante barato no mercado, especialmente considerando as novas alternativas da pornografia e da bissexualidade. Quem precisa comprometer-se com uma mulher para ter uma vida de orgasmos?

Dadas, no entanto, as limitações biológicas intrínsecas da fertilidade feminina e suas necessidades emocionais específicas, em parte moldadas pela evolução biológica, o sofrimento emocional das mulheres aumenta drasticamente no laissez-faire do capitalismo emocional. Esse foi um resultado de interesse especial de Eva Illouz, especialmente em sua obra indispensável (que eventualmente discutiremos aqui): “Why Love Hurts: A Sociological Explanation” (2012). Mary Eberstadt fez similar observação:

Neste mundo pós-revolucionário, o sexo se tornou mais fácil do que nunca; no entanto, quando o assunto é romance, parece que as coisas se invertem. Esse talvez seja o principal enigma enfrentado pelos homens e mulheres modernos: o da carência romântica em tempos de abundância sexual.”

E a mulher sofre bem mais do que o homem com esse estado de coisas. Mas não somente a mulher: quando há filhos, eles sofrem terrivelmente com os divórcios, que comprovadamente afetam sua saúde emocional, desempenho escolar, índices de envolvimento com drogas, com criminalidade e suicídio.

Nesse admirável mundo novo o aborto tem importância enorme. Ele é a bala de prata, a arma mais segura para prevenir sofrimentos emocionais potencialmente causados por relacionamentos infelizes ou por abandono de parceiros. Isso no sentido negativo; no sentido positivo, o aborto permite que as mulheres também pratiquem o sexo casual e sem compromisso, “elevando-se” à liberdade e à estatura moral dos homeninos.

É importante termos a mais absoluta clareza sobre a função do aborto no contexto da ascensão do homem psicológico e da revolução sexual: é verdade, em parte, que ele impede que os homens controlem suas mulheres “amarrando-as” através da maternidade; mas é verdade, também, que a liberdade que elas obtêm com isso é basicamente a liberdade de fazer sexo sem amor e sem filhos. E isso é exatamente o que o que o sistema do capitalismo de consumo precisa: de pessoas sem compromissos, exceto o de ganhar dinheiro e gastá-lo consigo mesmas. O aborto é uma solução fácil e barata para o capitalismo emocional.

O imperativo de descartar

Algumas coisas se impõem a quase todos entre nós. Uma delas é a visão do lixo: irrita e afasta. Não sei quanto aos meus leitores, mas quando o vejo sinto uma vontade irresistível de jogá-lo fora. É como um “imperativo categórico” de descartar o que se tornou inútil.

Nada demais: o consumo tem seus subprodutos, e mesmo o nosso corpo descarta parte do que consome. Mas o lixo humano tem proporções bem distantes do que a natureza previu; vivemos em uma sociedade de descartes colossais, na qual reaproveitamos ainda pouco, e produzimos coisas que são refugadas desde a fábrica, de modo que possam ser jogadas fora após o primeiro uso, como copinhos de plástico. Refugar tornou-se, para nós, uma dimensão das coisas. Precisamos que muitas delas durem pouco, por exemplo, para fazer o mercado girar, como ocorre com eletrodomésticos e outros bens.

Essa lógica da refugação, de usar e descartar, é inevitavelmente trazida para dentro do mundo da moral e da afetividade quando ele é desregulamentado e se transforma em um laissez-faire sexual. Como copinhos de plástico diferem de copos de cristal, que desejamos que durem, o casamento moderno difere do casamento antigo: a própria legislação de família, ressignificada pelo nosso sapientíssimo STF, o refugou de fábrica para facilitar o descarte. O mesmo se faz com a cultura de “ficar” e “pegar”, e do sexo casual: formas de autorrefugação emocional. Invisto pouco, porque vou jogar fora – e, naturalmente, porque eu mesmo serei jogado fora.

Assim, o que é descartado pelo capitalismo emocional? Relacionamentos que não trazem excitação; histórias afetivas que esfriaram; cônjuges; filhos de outros relacionamentos; corpos jovens de atores pornôs; o sexo casual da semana passada; crenças morais e religiosas que contradizem a cultura líquida; e, acima de tudo: fetos.

Os bebês abortados são um entre vários efeitos colaterais de um sistema de consumo emocional e sexual para o qual não evoluímos nem fomos criados para suportar. O aborto é incompatível com o respeito à dignidade humana e com o princípio da fraternidade, o qual nos coloca através da razão e da consciência sob o dever de cuidar uns dos outros.

O abortismo carrega nas costas algo mais do que o crime específico contra a vida humana. Ele carrega todo um sistema narcisista octópode, que se espalha pelo mercado, pela publicidade, pela indústria cultural e de entretenimento, e pela política moderna. Aceitar o abortismo é aceitar a prioridade da autoafirmação e da autoexpressão sobre nossos compromissos comunitários, sem equilíbrio, e abrir mão do princípio de cooperação e autossacrifício que foi antecipado na história biológica e evolutiva do planeta terra, e coroado em liberdade pelo autossacrifício do Filho de Deus na Cruz. O abortismo contradiz a consciência moral humana, e ainda mais a religião Cristã.

E o narcisismo moderno é a força espiritual por trás do abortismo e de suas bandeiras associadas; e a lógica dos Direitos Humanos tornou-se o aguilhão que nossas elites culturais utilizam para expandir seus mercados de consumo. O aborto é, por si só, um crime; mas ainda assim, é o vetor de uma doença muito maior.

E como há os negacionistas da pandemia da Covid-19, há os negacionistas da pandemia do narcisismo. Por todos os lados: na imprensa, na universidade e mesmo nas igrejas. Mary Eberhardt comparou esses negacionistas aos cientistas comprados pela indústria do tabaco até os anos 1980.

Mas para os cristãos a doença é evidente demais. A leitura crítica sobre a ascensão do narcisismo moderno já teve bastante tempo para amadurecer e ganhar solidez. Ainda que a cura do narcisismo demande algo mais profundo e difícil, como uma “vacina”moral e espiritual para reverter o próprio capitalismo emocional, sabemos demais para irresponsavelmente abrir mão das medidas de proteção contra esse vírus: o aborto precisa ser barrado no Brasil com todos os meios políticos, democráticos e legais que nos forem possíveis.

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