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Édipo é conduzido pela filha Antígona para fora de Tebas, em pintura de Charles Jalabert.
Édipo é conduzido pela filha Antígona para fora de Tebas, em pintura de Charles Jalabert.| Foto: Wikimedia Commons/Domínio público

Quando Ernest Becker ganhou o Pulitzer por seu livro A Negação da Morte, a cultura ocidental tinha apenas começado a escorregar no barranco do liberalismo expressivo. Ou melhor, tinha começado a rolar, mesmo, porque escorregando já vinha havia mais de 100 anos, desde a ascensão do movimento romântico. Mas àquela altura, em meados dos anos 1970, as preocupações do autor ainda podiam encontrar vasta ressonância moral em diversos setores de uma sociedade menos polarizada e mais próxima da mente tradicional. Hoje, em um mundo inundado pelo ruído ensurdecedor do identitarismo, hegemonicamente liberal, psicologizado e antitradicional – para não dizer anticultural, nos termos de Patrick Deneen –, temo que a voz de Becker seja quase inaudível.

A Negação da Morte é um livro singular; fluido, com um quê de jornalismo erudito, de uma honestidade penetrante, mas, acima de tudo, com uma tese genial: o problema central do homem moderno não é, ao contrário do que Freud nos fez acreditar, o desejo reprimido e a necessidade de ajustá-lo ao princípio da realidade. Nosso problema não é, fundamentalmente, uma questão de economia libidinal, segundo alegava o gênio austríaco, mas algo mais fundamental: a negação da finitude.

De fato, sem saber o que fazia, Édipo matou seu pai Laio e se casou com a mãe Jocasta, tornando-se rei em Tebas; mais tarde furaria os próprios olhos ao descobrir a verdade. Não obstante, o que movia o herói não era primariamente o desejo sexual pela mãe, mas sempre a fuga do pai, para evitar o cumprimento da profecia segundo a qual ele deveria matá-lo. E esse era o “projeto edipiano”: viver sem pai, ser o pai de si mesmo, causa sui. Isso seria impossível, no entanto; ele só pode existir sem pai na medida em que o mata. Pois ninguém foi nem jamais será pai de si mesmo.

Esse era o “projeto edipiano”: viver sem pai, ser o pai de si mesmo, causa sui

Becker vai encontrar essa interpretação em Otto Rank, o discípulo apóstata de Freud e renegado pelo mestre, que buscou no ideal heroico a explicação de uma poderosa dinâmica da psicologia humana: a busca de transcendência, imortalidade e autoafirmação contra a finitude e a morte. Para Rank, Freud evitou esse assunto e fugiu do tema da morte porque se via, ele mesmo, como um redentor e uma espécie de herói, um “novo Moisés” guiando as almas dos homens modernos num mundo secularizado e sem Deus. Isso explicaria seus ataques de angústia, o pavor de viagens de trem, e por que ele teria desmaiado duas vezes quando o tema da morte foi levantado – fato testemunhado pessoalmente por Carl Jung.

Mas o que é o ideal heroico? Uma crença fantástica, já presente na consciência infantil, de que ela não será um objeto passivo do destino, uma ferramenta dos outros, um escravo de forças cósmicas. “O projeto edipiano é a fuga à passividade, à eliminação, à contingência: a criança quer vencer a morte tornando-se pai de si mesma, o criador e o sustentador de sua própria vida”, diz Becker. E citando com aprovação outro psicanalista, Norman O. Brown, classifica esse complexo edipiano como “o projeto de se tornar Deus – na fórmula de Spinoza, causa sui”.

E daí viriam as muitas mentiras e desonestidades que a cultura e o indivíduo contam para si mesmos; mentiras sobre a sua própria originalidade, sobre o poder que tem sobre a história da sua vida, sua mente, seu corpo, suas coisas, e seu futuro. As histórias de heróis nos inspiram, em parte, porque nos fazem sentir vicariamente o que queremos acreditar sobre nós mesmos. E de algum modo essas mentirinhas nos ajudam a seguir em frente, ignorando os fatos terríveis da precariedade da nossa existência e de nosso fim iminente.

Uma contribuição singular de Becker foi traçar a supressão sistemática desse problema dentro da tradição psicanalítica ortodoxa, que se esforçava para reduzir os problemas ao complexo de Édipo freudiano, e então mostrar o surpreendente alinhamento da reviravolta introduzida por Otto Rank com a tradição agostiniana e luterana, representada por Soren Kierkegaard, o filósofo cristão dinamarquês.

Em Kierkegaard temos a clara exposição do problema central do ser humano como o problema da criaturidade. Há algo disso também em Freud, que se aproxima de Agostinho na visão do ser humano como finito e caído, embora num sentido secularizado; mas Kierkegaard o supera entendendo a consciência como a síntese de finito e infinito, de natureza e liberdade, mas uma síntese que não se completa sem a fé. Pois sem ela o que resta são formas de desespero, nas quais de um modo ou de outro queremos negar a finitude e voar para o céu com asas, em última instância, imaginárias. E mesmo Freud, com todo o seu esforço para negar a transcendência, nada pôde fazer para se libertar dos sonhos heroicos. Diz Becker:

“Tal como Rank, [Paul] Roazen compreendeu que o movimento psicanalítico como um todo era o característico projeto causa sui de Freud; ele era o veículo pessoal para o heroísmo, para a transcendência de sua vulnerabilidade e suas limitações humanas... foi Rank quem mostrou que o verdadeiro gênio tem um imenso problema que outros homens não tem. Ele tem de conquistar o seu valor como pessoa com o seu trabalho, o que significa que o seu trabalho carrega o ônus de justificá-lo. E o que é que ‘justificar’ significa para o homem? Significa transcender a morte ao habilitar-se à imortalidade.”

A transcendência só existe num pacote completo: ou Deus existe e me concede a imortalidade, ou não existe e nenhuma realização heroica será capaz de remediar a situação. Ou Deus tem um destino para cada indivíduo, ou a “autenticidade” não passa de um mito

E é aqui que a ruptura fundamental da cultura moderna com a civilização cristã e com outras sociedades se mostra mais evidente. Becker recorrerá a outros nomes recorrentes nessa coluna, como o antropólogo Philip Rieff, para destacar que o projeto moderno do homem psicológico, voltado para sua própria autenticidade, empoderamento e autoafirmação individual, elimina a possibilidade de resolver a sede de transcendência e de infinitude por meio de uma união com os outros, o cosmo e com Deus. Essa é a tragédia do liberalismo expressivo e sua terapêutica secularizada: ele deve, de modo necessário e irremediável, desencantar o mundo, atomizar a sociedade, e firmemente acorrentar narciso a si mesmo.

No cristianismo, no entanto, essa solução para paradoxo de finitude/infinitude é muito clara: no amor agápico a pessoa serve, se entrega, aceita a morte, ama e encontra a paz; mas ao mesmo tempo, por meio desse mesmo ato recebe de volta a sua individualidade e o infinito, na forma de uma comunhão permanente com o Deus que pode todas as coisas. É, de fato, contraintuitivo: “quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á”, disse Jesus, “mas quem perder a sua vida por amor de mim e do evangelho preservá-la-á para a vida eterna”. E foi assim que Jesus se tornou o herói dos heróis: tornando-se o servo de todos, em vez de se entregar à neurose narcísica da autoafirmação. Jesus Cristo é, por isso mesmo, a antítese de movimentos modernos como MGTOWs e cultores de Thomas Shelby (de Peaky Blinders), por um lado, e da Disneylândia identitarista, por outro.

A síntese beckeriana reforça as observações de Philip Rieff sobre a cultura terapêutica e o liberalismo secular, e aumenta muito o poder analítico da crítica conservadora ao Self moderno. Ela explica muito bem, por exemplo, toda a cultura queer e trans, como um esforço hercúleo de negar a determinação natural, biológica e corporal. A ascensão das pessoas plásticas, como coloca Carl Trueman, é um voo de imaginação narcisista, um sistema de negação da finitude, da morte e dos deveres com o passado, o presente e o futuro. Assim também é com a revolução sexual e a negação de seus efeitos doentios sobre a afetividade humana, e a batalha de feministas radicais contra as determinações naturais, como a maternidade; mas também, num outro polo das experiências culturais, assim é com o sonho tecnocientífico de libertar a espécie humana do planeta Terra, em vez de concentrar os esforços em cuidar dele.

Não é que o ser humano deva negar o infinito e enfiar a cabeça na areia, naturalmente; não temos de ser meros escravos da natureza e de determinismos históricos. Mas o ponto não é esse; é que a transcendência só existe num pacote completo: ou Deus existe e me concede a imortalidade, ou não existe e nenhuma realização heroica será capaz de remediar a situação. Ou Deus tem um destino para cada indivíduo, ou a “autenticidade” não passa de um mito. Mas, se Deus existir, a autenticidade também não poderá ser atingida pelos métodos psicológicos de nossa sociedade de consumo. E aqui, claramente, Kierkegaard e a tradição cristã superam a tradição psicanalítica. Volto a Becker:

“Kierkegaard diria que Freud ainda tinha orgulho, que lhe faltava a consciência de criatura do homem verdadeiramente analisado, que não tinha completado seu aprendizado na escola da angústia. Na compreensão que Kierkegaard tinha do homem, o projeto causa sui é o complexo de Édipo, e para ser um homem o indivíduo tem de abandoná-lo por completo... Kierkegaard tinha uma fórmula própria para o que significa ser um homem. Ele a expôs naquelas páginas admiráveis nas quais descreve o que chama de ‘cavaleiro da fé’... O cavaleiro da fé representa... aquilo que poderíamos chamar de ideal de saúde mental, a continuada abertura da vida, liberta dos estertores do medo da morte.”

Superam, mas isso não significa que não possam incorporá-la, do que a própria obra de Becker é um exemplo. E, incorporando algo dela, poderíamos adequadamente descrever a moderna cultura do Self como neurótica; vitimada por uma neurose narcísica coletiva. Mais do que o sofrimento psíquico, no entanto, trata-se de uma patologia de natureza espiritual. É uma manifestação moderna da grande alienação espiritual que a Bíblia chama de pecado.

A cultura do empoderamento pela via da negação dos piores aspectos do patriarcado, por si só, não derrota o seu espírito neurótico, de negar os pais e afirmar a própria originalidade

Se essa explanação estiver próxima da realidade, e a neurose moderna consista mesmo em um sonho de cada indivíduo (e de inúmeros coletivos) de ser o seu próprio pai ou causa sui, está claro que a fuga da paternidade é a contrapartida da negação da morte. A cultura do empoderamento pela via da negação dos piores aspectos do patriarcado, por si só, não derrota o seu espírito neurótico, de negar os pais e afirmar a própria originalidade.

E esse é um ponto de importância: o que essa cultura faz, entre mulheres por exemplo, é tão somente “democratizar” e universalizar o estilo de masculinidade tóxica centrado na mesma autoafirmação heroica, sem Deus e sem amor, que sempre reinou no patriarcalismo. Quem é Anitta, quando escolhe um dançarino para a sua equipe usando publicamente, como critério de seleção, o desejo de transar com ele, a não ser um espelho do pior que há no patriarcalismo? “Sempre que quero transar com alguém, chamo para gravar um clipe...”, foi o que disse a empoderadíssima.

Evidentemente a voz de um Becker só poderia ser inaudível na cultura do empoderamento, da autenticidade e da autoafirmação. Quase todos os aspectos da luta por justiça se psicologizaram e se fundiram com o ideal do homem psicológico, e ele se espalhou por todos os cantos, do entretenimento à sala de aula, infiltrando-se até nas igrejas. Em um mundo de pais-de-si-mesmos, do coaching e das Anittas, no qual até mesmo as mulheres se tornaram seus próprios pais e os pais abdicaram da paternidade, há pouca disposição para humilhar-se como criatura e honrar a paternidade de Deus.

Mas saibam, todos os empoderadíssimos: quem quiser empoderar a sua alma irá certamente perdê-la.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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