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Fakenews e liberdade de expressão
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Como o brasileiro usa as mídias sociais? Como se informa sobre política e sociedade? Em quem ele confia, e por quê? Se desejamos ir além do denuncismo e encontrar soluções efetivas para o desafio das fake news, é salutar uma melhor inteligência, não apenas do maquinário das fake news, mas de suas condições de reprodução. E esse conhecimento não deve ser possuído apenas por especialistas, mas por todos os cidadãos.

Na coluna de hoje prosseguimos com a colaboração de Eric Fernandes de Mello Araújo, professor do Departamento de Ciência da Computação da Universidade Federal de Lavras (UFLA), e Doutor pela Vrije Universiteit Amsterdam. No artigo anterior do Dr. Eric, "Inquérito das fake news: ameaça à liberdade de expressão ou combate à manipulação cognitiva?", já oferecemos uma introdução ao tema, destacando que a ameaça das fake news não é fake news, e que o problema da manipulação cognitiva para gerar dinheiro é um grave fenômeno global. O artigo de hoje põe o foco sobre o padrão de consumo de informações praticado pelo brasileiro. Boa leitura!

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Há poucos meses atrás, tive um debate extremamente longo sobre um assunto que antes considerava trivial: os hábitos de uso de WhatsApp pelo brasileiro. Conversando sobre o assunto com uma amiga e, após expor os estranhos comportamentos que temos por aqui, ela levantou as sobrancelhas e soltou a pergunta que me pegou no pulo: "mas não é assim lá fora também?".

A pergunta me levou, então, a refletir sobre como o brasileiro usa a internet. Para entender esse hábito, apresentaremos dados sobre o assunto. Prepare o seu viés de confirmação para alguns fatos que, talvez, te trarão um pouco de desconforto, mas que são necessários serem aprendidos.

O Reuters Institute Digital News Report 2019, relatório preparado pelo Instituto Reuters, buscou conhecer como se dá a busca por notícias usando mídias sociais em vários países. No Brasil, 53% das pessoas buscam notícias por meio do WhatsApp. Ou seja, mais da metade dos usuários de internet se informam sobre as notícias do dia via aplicativo. Perceba que o uso dos brasileiros de outras mídias, como Messenger e Viber é quase insignificante.

Até aí, podemos afirmar que é apenas uma questão de mercado. Porém, o estudo vai além. Ao fazer o mapeamento das ferramentas usadas ao redor do mundo, o estudo detecta que o WhatsApp é mais utilizado em países do hemisfério sul, coincidentemente nas regiões onde o nível de confiabilidade das informações é menor e as instituições públicas são mais frágeis. A difusão de rumores infundados via WhatsApp levou, por exemplo, a uma onda de violência na Índia. O relatório divulgado pela Reuters também mostra que políticos passaram a usar a rede para espalhar histórias negativas sobre seus adversários de forma dificilmente replicável em uma rede aberta. Somente no Brasil, aproximadamente, 1 milhão de grupos de WhatsApp foram criados nas eleições recentes para promover candidatos, entre eles, Jair Bolsonaro, que tinha pouco tempo de TV para promover sua campanha. Informações divulgadas durante a campanha eleitoral mostram que valores para promoção de campanha chegaram a 12 milhões de reais.

Para entender melhor o porquê da escolha do WhatsApp como plataforma de campanha, precisamos entender também o papel dos grupos públicos criados para mobilização de base política. Grupos criados especificamente para debate político permitem que desconhecidos interajam em uma frequência jamais experimentada em outros contextos no passado. E, neste ponto, o relatório da Reuters nos ensina o quanto o comportamento do brasileiro no WhatsApp corrobora para a propagação de fake news com maior alcance. Enquanto 51% dos usuários do Facebook passaram a fazer parte de algum grupo público em 2019, apenas 14% desses usuários se apoiam nesses grupos para se informar sobre notícias e política. No Brasil, esse número é de 22% e de 29% na Turquia. A maior parte dos grupos públicos do Facebook é voltada para esportes, comunidades locais e educação dos filhos. Guarde essa informação.

Voltando à conversa com minha amiga, busquei na memória os quatro anos que passei vivendo na Europa e como usava o WhatsApp no dia a dia. Grupos de trabalho eram para trabalho. Grupos de amigos eram para marcar eventos sociais. Grupos de família para combinar visitas e informar quando um evento fosse acontecer. E aí o contraste me chocou. Mais uma vez, a pesquisa da Reuters confirmou a minha percepção inicial: apesar do WhatsApp servir para fins pessoais em outros lugares do mundo, no Brasil, nos apropriamos da ferramenta e criamos um novo uso: aquele para fins de informação sobre os eventos do dia e da política.

Lembre-se que cerca de 22% dos brasileiros utilizam grupos públicos no Facebook para esses fins. Esse fenômeno se repete no WhatsApp. Enquanto apenas 12% de usuários do aplicativo participam de grupos com desconhecidos no Reino Unido, esse número sobre para 58% no Brasil. Cerca de 18% das pessoas discutem a política e o noticiário no Brasil via grupos públicos de WhatsApp, enquanto esse número é de 2% no Reino Unido, aumentando potencialmente as chances de espalhamento de desinformação em massa. Não menos surpreendente, pessoas que usam grupos no WhatsApp e Facebook confiam menos na mídia, e buscam com mais frequência sites com conteúdo partidário.

Em resumo: o brasileiro tem maior exposição do que boa parte do mundo (especificamente, países democraticamente mais avançados), diariamente, a informação vinda de grupos onde a maioria dos membros são desconhecidos, para se informar sobre notícias e política. E quem faz o maior uso dessas ferramentas são exatamente os políticos, em maior volume, nos tempos de campanha. Não por coincidência, temos registros claros de investimentos financeiros altos para as campanhas nesse tipo de plataforma durante as eleições passadas e, atualmente, para a manutenção do clima de período eleitoral e de mobilização da base do governo. Não seria apenas uma coincidência que, pela primeira vez na história do país, tivemos um presidente eleito sem tempo de televisão para campanha. A necessidade faz com que alternativas sejam buscadas. E novas alternativas geram novos problemas.

Minha amiga ficou um pouco chocada quando eu disse que não recebia gatinhos e flores de bom dia no meu WhatsApp quando morava na Europa. E eu fiquei muito chocado por não ter percebido ainda como a forma que o brasileiro passou a usar a ferramenta facilita a propagação de informações de baixa qualidade, agressivas e que tornam a opinião pública contrária à mídia profissional, bloqueando qualquer incentivo à checagem do conteúdo compartilhado por estranhos.

A democracia brasileira precisa ser protegida

O Índice de Percepção da Democracia (DPI) 2020, recém lançado em 15 de Junho, contém dados relevantes para entendermos as percepções da população mundial em relação ao sistema democrático. Segundo a pesquisa, 78% da população mundial diz que é importante ter democracia em seu país. No Brasil, 83% da população pesquisada afirma que a democracia é importante, um índice maior do que a média mundial, porém apenas 51% (aumento de 8% em relação a 2019) consideram que o país é democrático. O motivo maior está no fato de que 71% da amostra afirma que o governo age em favor de grupos minoritários.

Outro dado levantado pelo DPI 2020 diz respeito à percepção do uso das mídias sociais e o impacto positivo/negativo destas na democracia do país. Entre os entrevistados brasileiros, 77% afirmam que as mídias sociais trazem impacto positivo, mas 52% concordam que é necessário haver mudanças na regulamentação do conteúdo postado pelas pessoas nas diversas plataformas.

O uso de fake news nas eleições de 2018, certamente, afetou a percepção da democracia brasileira. A tese de doutorado da estudante Tatiana Dourado mapeou um corpus de 346 fake news usadas contra os vários candidatos à presidência entre agosto e outubro de 2018, visando quantificar a quem as notícias falsas mais ajudaram e a quem elas mais prejudicaram. Segundo a própria pesquisadora:

Essa análise (…) lança luz ao fato de que a quantidade de fake news que potencialmente favoreceu direta e indiretamente Jair Bolsonaro (72,54%) foi superior ao conjunto de mentiras noticiadas para prejudicar direta e indiretamente a imagem de Fernando Haddad e Lula juntos (48,26%).

Entre as peças analisadas, estão notícias falsas como "Aluna foi expulsa de sala de aula por apoiar Bolsonaro" (07/08/2018), "Delação bomba: Lulinha embolsou R$ 317 milhões" (13/08/2018), "Marido de Marina Silva é um dos maiores desmatadores da Amazônia" (28/08/2018), atingindo a todos os candidatos. Desta forma, não é de se surpreender que mais da metade dos entrevistados brasileiros que compõem o DPI 2020 demonstrem a preocupação de que haja regulamentação deste tipo de prática.

Em um país onde o índice de analfabetismo funcional chega a 29%, e onde 97% do acesso à internet se dá via celular para fins de comunicação (95,5%), há de se temer que a difusão de fake news cause movimentos ilegítimos para fins escusos, uma vez que, o ambiente contém todas as condições necessárias para tal. Tudo nos leva a crer que, se Bolsonaro tentasse a mesma estratégia em um país do hemisfério norte, dificilmente atingiria os mesmos resultados.

Conectados para o bem, conectados para o mal

Em pesquisa desenvolvida recentemente, desenvolvi um modelo para compreender como as pessoas se influenciam no incentivo ao isolamento social durante a pandemia da COVID-19. O modelo proposto visa compreender como a cognição humana e o contágio social afetam um grupo de pessoas conectadas entre si e sua motivação para aderir ao isolamento social ou não. Dentre os fatores utilizados, foram consideradas as afinidades entre os indivíduos, a força da conexão entre eles, suas opiniões e decisões quanto a se isolar ou não, e o quanto as agências públicas de saúde se esforçam em conscientizar a população sobre a importância de agirem coletivamente de modo a manter as pessoas em casa.

O resultado principal mostrou que o papel das agências de saúde é extremamente relevante no processo de motivação e de penetração no tecido social para promoção do bem comum. Uma baixa adesão da agência de saúde fragiliza muito o movimento e torna a quebra do isolamento a regra geral do grupo. Vários estudos mostram a forma com que movimentos pequenos, como o de doze apóstolos no primeiro século, se tornaram grandes e promoveram grandes alterações na sociedade mundial. Esses movimentos podem tornar-se catalisadores na derrubada de impérios, na promoção de genocídios ou no rompimento de ideias que ferem os princípios básicos de humanidade, como foi no fim do apartheid na África do Sul, por exemplo, ou a abolição do tráfico de escravos pela Inglaterra no século 19.

O fato de vermos um movimento originalmente pequeno, mas abastecido com dinheiro de procedência duvidosa, levantando bandeiras como o fechamento de instituições pilares do país, as ameaças diretas a figuras públicas e aos seus parentes, o incentivo de intervenção por parte das forças armadas para a resolução de conflitos criados por vias políticas (ou pela inabilidade política de alguns líderes se expressarem apropriadamente) deveria gerar preocupação em qualquer cidadão brasileiro que não esteja subjugado por uma idolatria política. O modo como as informações se espalham e distorcem a realidade, hoje, causam um dano muito mais amplo, tanto geograficamente quanto temporalmente. Mais pessoas distantes geograficamente são desvirtuadas em suas ideias em um menor espaço de tempo. E quem sangra é a democracia, aleijada por uma percepção distorcida da realidade por parte dos cidadãos.

Ex nihilo nihil fit (nada surge do nada)

A sentença atribuída a Lucrécio afirma que "nada surge do nada". Os movimentos individuais refletem nos eventos sociais. Os eventos sociais têm consequências na política, que por sua vez afetam as mudanças individuais. É um ciclo que deve ser sempre avaliado sob pena de destruir o tecido social de forma grave. A forma como interagimos com a internet e as redes sociais deve ser levada em consideração quando percebemos que há um mau uso direcionado e coordenado para fins políticos escusos.

O Bot Sentinel é uma ferramenta para detecção de contas inautênticas muito presente no Twitter. Uma conta inautêntica é aquela onde pessoas pretendem ser algo que não são, enganando seus seguidores ou audiência, ou contas automatizadas, conhecidas como bots. Entre os dias 1 e 25 de junho (até o momento da conclusão desse texto), 74 hashtags promovidas por contas inautênticas figuraram nas top-20 do mundo, muitas vezes em primeiro lugar. Foram 14.550 tuítes propagando informação duvidosa contra e a favor de Jair Bolsonaro, Abraham Weintraub, contra os comunistas, contra os deputados Alexandre Frota e Joice Hasselmann, contra a Globo, STF, TSE, ministros Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso, MBL, contra a vacina chinesa, pedidos para que Bolsonaro reaja, contra Rodrigo Maia, a favor de Moro, pedidos para a libertação de Sara Giromini, entre várias outras manifestações direcionadas a eventos do dia.

Todos esses movimentos, aparentemente, coordenados por contas criadas com o único propósito de insuflar as redes sociais, passam a ideia de que existem mais defensores da pauta do dia do que de fato existem. Todas no mesmo direcionamento: brincando com a cognição do brasileiro, que já não tem mais a mesma confiança na mídia profissional e que agora se permite beber das águas de uma mídia enviesada, que não deve satisfação a ninguém. Além, claro, do "tio do zap".

Um possível caminho

Diante de tal cenário, é notória a necessidade de ações que permitam a redução ou mesmo cessação das fake news. Porém, aparentemente, o parlamento agora se utiliza de uma sensibilização maior da população em relação aos efeitos dessas notícias, atrelados a ameaças pessoais constantemente recebidas, para mais uma vez tentar emplacar uma lei para controle do uso da internet. É perceptível, como já foi exposto no primeiro artigo que escrevi nesta coluna, a falta de conhecimento dos parlamentares e a total falta de diálogo com especialistas da área de segurança e tecnologia na proposição de leis para a internet. Movidos por um sentimento talvez de medo, agora querem facilitar o rastreamento das informações de TODOS os internautas a fim de resolver o problema de vez. Vão matar o paciente de superdosagem.

O caminho é compreender os fenômenos sociais e, por meio do conhecimento, construir leis e mecanismos que sejam adequados ao problema. No próximo artigo, iremos falar com mais profundidade sobre o problema do viés de confirmação e como podemos usar o conhecimento para reduzir o impacto da propagação de fake news em massa. Para um problema complexo, não podemos aceitar soluções prontas e fáceis. O brasileiro precisa urgentemente abandonar o comodismo e deixar de comprar pacotes prontos e simplificados que prometem resolver o problema do universo, mas que só criam problemas maiores.

Por Eric Araújo, UFLA. Siga o Eric no Twitter.

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