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Tim Keller, em foto de 2006. O pastor presbiteriano morreu em 19 de maio de 2023, aos 72 anos.
Tim Keller, em foto de 2006. O pastor presbiteriano morreu em 19 de maio de 2023, aos 72 anos.| Foto: Frank Licorice/Wikimedia Commons

Eu ouvi falar em Tim Keller mais ou menos como boa parte do mundo o conheceu, logo depois dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001. Quando a tragédia aconteceu, eu era um jovem professor de Teologia e estava me preparando para entrar em classe, mas ninguém conseguiu assistir às aulas. Ficaram todos vidrados nos televisores do seminário. Fiquei pensativo sobre os planos de Deus naquilo tudo.

Poucos meses depois, li uma reportagem sobre a corrida em massa de novaiorquinos às igrejas nos dias que se seguiram à tragédia, e sobre uma igreja em particular, de um pregador chamado Timothy Keller. Aparentemente ele vinha dizendo coisas muito relevantes em Manhattan, como se fosse o homem certo no lugar certo e na hora certa.

Anos mais tarde eu conheceria os detalhes da história. Keller estudou Teologia, completando seu doutorado no Seminário Teológico Westminster, e se casou com Kathy Kristy, também estudante de Teologia, em 1975, no mesmo ano em que foi ordenado como ministro presbiteriano (na Presbyterian Church of America). Depois de uma longa experiência missionária e pastoral em ambientes blue-collar, mais provincianos, e de uma temporada como professor de Teologia em Westminster, Tim Keller e sua esposa Kathy deram em 1989 o corajoso passo – contra o conselho de vários amigos – de fundar uma igreja em Manhattan, um ambiente pós-cristão, extremamente cosmopolita e hostil ao cristianismo ortodoxo. Keller contaria depois que não teria dado esse passo sem o suporte de sua esposa Kathy. Penso que foi por essa experiência – e talvez por uma paixão mútua pelas Crônicas de Nárnia, de C. S. Lewis – que ela foi parar na dedicatória de um de seus best-sellers: “Para Kathy, a Destemida”.

Tim Keller se tornaria um dos escritores cristãos mais amados pelo público evangélico brasileiro, e especialmente por jovens líderes e pastores, desejosos de encontrar orientação sobre como cultivar igrejas sadias, fiéis ao evangelho e culturalmente relevantes

O fato é que a igreja se desenvolveu de modo impressionante, alcançando uma juventude instruída e ambiciosa que vinha invadindo a cidade com a faca nos dentes – a mesma tribo descrita por Richard Florida como a “Classe Criativa”, e por um tempo celebrada pelo analista cultural David Brooks. Não era um público fácil; seu cosmopolitismo não se dava bem com as formatações típicas do cristianismo conservador. Mas de algum modo Keller e sua equipe conseguiram se comunicar com eles. No fim de 1990 a assistência já havia alcançado 600 pessoas; ao fim de 1992, eram mil pessoas.

Apenas dez anos depois, a Redeemer Presbyterian Church se tornaria o que chamamos de “megaigreja”, e isso se deu justamente após o ataque às Torres Gêmeas. Na semana seguinte à tragédia, mais de 5 mil pessoas apareceram na igreja, que decidiu abrir outro culto. Nos meses seguintes a assistência dominical aumentaria em quase mil pessoas. Por volta de 2009 – 20 anos depois da sua fundação –, a igreja oferecia cinco cultos dominicais em três lugares diferentes, com assistência de 5 mil pessoas. Keller observaria depois que “pelos próximos cinco anos, se eu perguntasse às pessoas quando elas se juntaram à igreja, elas diriam: logo depois de 11 de setembro”.

Foi durante essa década “explosiva” da Redeemer que eu tomei consciência das dimensões de Tim Keller, mas por meio de outra iniciativa: a fundação, juntamente com o teólogo Donald Carson e o pastor-teólogo John Piper, da organização The Gospel Coalition, ou “Coalizão pelo Evangelho”, em 2005. A TGC é uma rede de igrejas e pastores reformados e evangélicos, comprometidos com uma exposição clara e sistemática do evangelho da graça de Deus. Logo após a sua fundação, a TGC se tornou um dos mais poderosos motores do assim-chamado “novo calvinismo”, um reavivamento do cristianismo calvinista que se alastrou pelas mais diferentes denominações cristãs, promovendo um compromisso ardente com a teologia e a espiritualidade reformada, e com a revitalização ou plantação de igrejas de modo contextualizado, para um mundo pós-moderno.

Foi logo depois disso que começaram a chegar ao Brasil vídeos legendados e textos de Tim Keller. O primeiro com o qual tive contato foi seu best-seller The Reason for God, de 2008, um sucesso estrondoso, lançado em português no ano seguinte com o título A Fé na Era do Ceticismo. Curiosamente, a essa altura, por uma editora “secular” (a editora Campus), com baixíssimo impacto entre leitores religiosos brasileiros. Só mais tarde, com republicação pela Editora Vida Nova, o livro vingaria no Brasil. No mesmo ano saiu O Deus Pródigo, outro sucesso impressionante.

Daí em diante Tim Keller se tornaria um dos escritores cristãos mais amados pelo público evangélico brasileiro, e especialmente por jovens líderes e pastores, desejosos de encontrar orientação sobre como cultivar igrejas sadias, fiéis ao evangelho e culturalmente relevantes. E nisso a contribuição de Keller foi generosa, com obras excelentes sobre missões urbanas e desenvolvimento eclesiástico, sobre o ministério da pregação, sobre a oração, sobre questões prementes da vida, como o nascimento, o casamento e a morte, sobre o problema do sofrimento, sobre questões de justiça social e racial, sobre cristianismo e política, sobre fé e ciência, sobre diversos livros e trechos da Bíblia, e sobre análise cultural cristã. Segundo o obituário publicado pela igreja, Keller escreveu 31 livros e vendeu mais de 6 milhões de cópias em 29 línguas.

A qualidade do engajamento cultural e intelectual de Keller era realmente excepcional, por sua capacidade de integrar a boa e velha ortodoxia cristã com saberes e interrogações na linha de frente do processo cultural. Foram várias as suas influências teológicas; ele foi ajudado pelo ministério de Francis Schaeffer e de L’Abri, pelo pensamento missiológico de Orlando Costas, pela teologia de Jonathan Edwards, pelo neocalvinismo de Abraham Kuyper e de Herman Bavinck, e pelo pensamento social de James Davison Hunter, e pela mitopoiese de Tolkien, para citar uns poucos; mas na articulação entre evangelho e mente moderna seu mestre principal foi C. S. Lewis, o famoso literato e apologista cristão. Keller gostava de dizer que Lewis era o seu “santo padroeiro”, e foi ele mesmo considerado uma espécie de C. S. Lewis contemporâneo.

A qualidade do engajamento cultural e intelectual de Keller era realmente excepcional, por sua capacidade de integrar a boa e velha ortodoxia cristã com saberes e interrogações na linha de frente do processo cultural

Vale citar aqui, para os leigos do mundo kelleriano, alguns exemplos representativos de sua atividade como apologista cultural: no campo de fé e ciência, Keller publicou uma excelente série de artigos (“Criação, evolução e cristãos leigos”) na qual mostra como uma fé cristã ortodoxa e fiel às Escrituras é compatível com uma visão moderna da ciência e da evolução biológica; no campo de fé e política, ele se esforçou para mostrar que o cristianismo não pode ser sequestrado por nenhum lado no debate político contemporâneo (“Como os cristãos se encaixam no sistema bipartidário? Eles não se encaixam”); no campo da crítica cultural, ele apresentou, em um encontro de oração do Parlamento britânico, em 2016, uma análise perspicaz da crise cultural contemporânea (“O que o cristianismo pode oferecer à sociedade do século 21?”); no tocante à sua formação, ele reconheceu a profunda influência de C. S. Lewis.

Mas o homem não era bom apenas na escrita e nas ideias; no púlpito ele foi absolutamente formativo para mim. Seu estilo “professoral”, segundo a descrição do New York Times, capturou minha atenção, e ainda mais quando ele admitiu que não era uma pessoa muito carismática – com o que me identifiquei, por razões óbvias. Sua comunicação clara e objetiva, com exemplos simples, mas brilhantes, e seu engajamento cuidadoso e perspicaz com as perguntas do público eram fascinantes. Uma extraordinária combinação de leitura profunda da tradição, leitura profunda do público, e precisão retórica. É como se ele encarnasse um paradigma de pregação, uma espécie de tipo ideal.

O púlpito da Redeemer era, como se costuma dizer em conversas eclesiásticas, muito “forte”. A igreja, com vários locais de culto na cidade, dezenas de serviços assistenciais de vários tipos, como o aconselhamento, misericórdia, artes ou desenvolvimento profissional, e milhares de voluntários anuais, se beneficiava bastante dele, a ponto de isso gerar certa preocupação. Quando Keller precisou tratar de um câncer de tireoide em 2002, a assistência dominical caiu temporariamente. Isso é frequentemente uma armadilha para algumas igrejas, que entram em crise e até em colapso quando perdem seu principal pregador.

Mas, aludindo à parábola de Jesus em Mateus 25, Tim Keller não “enterrou o talento”. Em seus estudos teológicos ele fora profundamente influenciado por um campo de estudos teológicos denominado “missiologia”, que trata da vocação evangelizadora e testemunhal da igreja cristã no mundo. Já em 2001, o ano crítico na história de Manhattan e da Redeemer, o pastor Keller foi cofundador da organização Redeemer City-to-City, dedicada a parcerias de plantação de novas igrejas, primeiro em Nova York, e depois mundo afora. A iniciativa ajudou a plantar 50 igrejas em sua cidade e mais de mil igrejas em outras 150 cidades, alcançou 75 cidades globais em todos os continentes, e treinou mais de 79 mil líderes. Há um braço da iniciativa City-to-City no Brasil. Em 2017 Keller deixou a liderança da igreja – dando o bom exemplo a pastores longevos que se apegam à posição – para se dedicar à formação de novos pastores. A essa altura consigo discernir com mais clareza esse outro aspecto da vida e obra de Keller: ele apresentava um caráter centrífugo; em vez de concentrar as coisas, as distribuía, passava adiante. Muito de acordo com a “economia” do evangelho ensinada nas parábolas de Jesus.

Enfim, sou um admirador confesso do pastor Keller. Não tive a oportunidade de interações maiores com ele, como alguns amigos tiveram em eventos especiais, mas nos encontramos pelo menos uma vez, num evento de City-to-City em São Paulo, no Mackenzie, em maio de 2019. Por uma coincidência providencial nos hospedamos no mesmo hotel que ele, e por obra e graça da minha esposa Alessandra conseguimos ter uma breve conversa no café da manhã, que guardamos com carinho na memória. Eu costumava brincar dizendo que ele era o pastor titular da minha esposa, e que eu era só o pastor-auxiliar; mas já começo a sentir o peso da sua ausência.

Timothy Keller faleceu nessa sexta-feira, 19 de maio, pela manhã, em sua casa, aos 72 anos, depois de uma luta com um câncer pancreático, deixando três filhos, uma irmã, sete netos e milhares de alunos e “pastores-auxiliares”. Ele foi um grande pastor de pastores, um modelo de ministério urbano, como o foram Richard Baxter ou Charles Spurgeon em eras passadas. E se ele, um presbiteriano da gema, brincava sem culpa que C. S. Lewis seria seu “santo padroeiro”, penso que ele não se incomodará de ser o “santo padroeiro” de alguns pastores evangélicos. O fato é que, gostando ou não disso, ele já é.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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