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O escape da psicopolítica
| Foto: natureaddict/Pixabay

“A arte de viver como prática da liberdade deve assumir a forma de uma despsicologização.” (Byung-Chul Han)

O paradoxo da liberdade contemporânea é a dor ao redor da qual se formou o argumento de Byung-Chul Han em seu livrinho Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder, circulando desde 2018 em português, mas ainda subutilizado, em minha opinião.

Mas que paradoxo seria esse? Em poucas palavras, que a liberdade tenha se tornado a própria matéria prima da dominação; quanto mais aumenta a “liberdade”, mais completa é a dominação da vida moderna.

A psicologização da contradição

Byung-Chul Han não esconde a inspiração marxiana em sua crítica da modernidade; um dos lugares-comuns que ele admite é o caráter predatório e contraditório do capitalismo. Mas ele não compartilha do historicismo e da escatologia marxiana – é como se o seu Marx fosse parcialmente “desmitologizado”.

Assim, segundo o filósofo coreano, a contradição no modo capitalista de produção, com seu conflito entre exploradores e explorados, e a necessidade de disciplina externa e rígida das massas exploradas não levaram à sua superação, como esperava Marx. O sistema se mostrou muito mais inteligente, encontrando um meio de abolir a divisão de classes e introjetar sua irracionalidade predatória na subjetividade do indivíduo contemporâneo. Cada indivíduo foi assim tornado empreendedor e explorador de si mesmo. Onde havia luta de classes, há agora uma luta interna, subjetivada, em que o próprio indivíduo se impõe padrões de desempenho e se autoexplora, para desfrutar dos bens de consumo em seu lazer (igualmente colonizado pelo capitalismo), e então se queima, se esgota e entra em sofrimento psicológico.

A psicopolítica manipula as emoções e a imaginação do indivíduo, de modo que ele livremente se entregue à máxima autoexploração

Quando ele fracassa, apresentando baixo rendimento, burnout, ataques de pânico, ansiedade crônica e depressão, de quem é a culpa? Dele mesmo, não do sistema – é o que somos levados a crer. Afinal, terapias, remédios e recursos para expandir a produtividade não faltam. E assim, juntamente com a expansão da exploração, se expande o mercado da “cura” da exploração, que na verdade apenas recondiciona as peças ainda reaproveitáveis.

Temos, então, uma nova “técnica de poder”. Não mais a velha biopolítica, não mais o uso da força e a vigilância externa, não mais a opressão de classe, mas a psicopolítica, que manipula as emoções e a imaginação do indivíduo, de modo que ele livremente se entregue à máxima autoexploração, em benefício do “neoliberalismo”.

Mas o que Han quer dizer com “neoliberalismo”? Algo mais do que um modelo macroeconômico no sentido estrito, como o que foi cristalizado no Consenso de Washington. Dado o seu poder sistêmico e sua universalidade, o conceito de Han parece se confundir com a totalidade do sistema capitalista moderno na fase atual, correspondendo, talvez, ao “capitalismo de hiperconsumo” de Gilles Lipovetsky. Além disso, trata-se de um regime de poder, cujo gênio reside em dominar com a máxima eficiência e o mínimo de força.

Um “capitalismo da emoção”

Confesso-me hesitante quanto a essa escolha terminológica (“neoliberalismo” é uma descrição ou um xingamento?), que parece ter mais relação com o poder de mobilização política do que por sua força explicativa. Prefiro a expressão de Eva Illouz, “capitalismo emocional”.

De fato, Han nomeia um de seus capítulos com o título “O capitalismo da emoção”, mas sem pagar respeitos à socióloga israelense. No mesmo capítulo, ele critica a socióloga com um argumento um pouco vago e bastante idiossincrático sobre ela não distinguir entre “emoções”, “afetos” e “sentimentos”. O ponto principal parece ser que emoções e afetos são intencionais, subjetivos e fugazes. Alguém ama ou detesta de modo específico, e vive isso episodicamente. Já o sentimento seria algo mais durável, objetivo e não intencional. Os sentimentos do luto, da angústia, da indiferença e da culpa, por exemplo, seriam duráveis e menos sujeitos à exploração capitalista.

Han parece acusar na emoção e no afeto uma vulnerabilidade à manipulação capitalista da qual o sentimento estaria livre. Talvez por isso ele não aproveite a expressão “Homo sentimentalis” que Illouz emprega para descrever o indivíduo contemporâneo. Mas seu argumento falha a olhos vistos; é evidente que a vergonha, a culpa, a ambição e a insatisfação são sentimentos ininterruptamente explorados pelo capitalismo de consumo, tanto quanto emoções específicas como a raiva, o alívio e a empatia. Eles são apenas processados diferentemente nas refinarias do consumismo.

Seja como for, o importante é que Han chega, ainda que atrasado e tentando ser original, ao mesmo lugar já amplamente explorado por Eva Illouz:

“Illouz claramente ignora que a conjuntura atual da emoção se deve, em última instância ao neoliberalismo. O regime neoliberal emprega as emoções como recursos para alcançar mais produtividade e desempenho. A partir de certo nível de produção, a racionalidade, que representa o médium da sociedade disciplinar, atinge seus limites. Ela é percebida como uma restrição, uma inibição. De repente, a racionalidade atual de forma rígida e inflexível. Em seu lugar, entra em cena a emocionalidade, que está associada ao sentimento de liberdade que acompanha o livre desdobramento do individual. Ser livre significa deixar as emoções correrem livres. O capitalismo da emoção faz uso da liberdade. A emoção é celebrada como expressão da subjetividade livre. A técnica neoliberal de poder explora essa subjetividade livre.”

Foi a emergência do capitalismo emocional o que possibilitou instrumentalizar ainda mais profundamente a liberdade para destruir a própria liberdade

Onde Illouz vê esse desdobramento como um resultado histórico da fertilização mútua entre o capitalismo e o campo afetivo, Han se contrapõe postulando uma lógica dominadora e perversa do neoliberalismo. Mas, se ignorarmos essa mania marxista, o que resta, como dissemos, é a sua anuência com a tese muito bem desenvolvida de Eva Illouz: há um capitalismo de consumo que molda emoções para maximizar o consumo, vendendo experiências psicológicas e estados emocionais.

A psicopolítica das vísceras

Isso nos leva ao ponto principal: foi a emergência do capitalismo emocional o que possibilitou instrumentalizar ainda mais profundamente a liberdade para destruir a própria liberdade. O neoliberalismo não domina “através da proibição e da suspensão, mas através do agrado e da satisfação. Em vez de tornar as pessoas obedientes, tenta deixá-las dependentes”. E daí a força inédita do sistema; ele nos cativa com prazeres e recompensas, nos torna sedentos por reconhecimento e por autoexposição no grande panóptico digital, nos faz devotos do smartphone.

Em outras palavras, o que a psicopolítica neoliberal faz é tomar o controle remoto das nossas vísceras. Isso é o que o torna uma forma de tão eficiente de manipulação:

“A aceleração da comunicação também favorece a transformação emotiva, porque a racionalidade é mais lenta que a emotividade. Em certo sentido, ela não tem velocidade. Por isso a pressão da aceleração leva a uma ditadura da emoção... As emoções são controladas pelo sistema límbico, no qual também se assentam os impulsos. Eles formam o nível pré-reflexivo, semiconsciente e corporalmente impulsivo da ação, do qual frequentemente não se tem consciência de forma expressa. A psicopolítica neoliberal se ocupa da emoção para influenciar ações sobre esse nível pré-reflexivo. Através da emoção, as pessoas são profundamente atingidas. Assim, ela representa um meio muito eficiente de controle psicopolítico do indivíduo.”

Esse, meus amigos, é o verdadeiro problema: não meramente o sistema do capitalismo emocional, mas sua conquista de uma tecnologia digital para coletar informações e encontrar meios de interpretar nossas vulnerabilidades emocionais. Com isso o sistema ganha supremacia psicológica sobre a nossa consciência, sendo capaz de explorar a nossa liberdade para garantir a sua própria sustentabilidade.

“Se os big data oferecessem acesso ao inconsciente de nossas ações e inclinações, então seria possível imaginar uma psicopolítica que intervirira profundamente em nossa psiquê para explorá-la.”

De certo modo isso já é um fato corriqueiro; a computação afetiva, desenvolvida a partir de centros de alta tecnologia como o MIT, nos EUA, vem trabalhando nisso há bastante tempo. Além disso, as mídias sociais nos exploram o tempo inteiro, manipulando emoções e capturando horas de trabalho imaginativo com o fim de manter ou elevar os níveis de consumo. Mas há ao mesmo tempo um trabalho formativo e pedagógico, por meio do qual somos educados sobre bons e maus sentimentos.

O escape da psicopolítica

Mas como enfrentar tal sistema? Han defende a necessidade de despsicologizar, no sentido de um esvaziamento da subjetividade, um processo de ruptura espiritual e existencial que liberte o indivíduo “para aquela forma de vida que ainda não tem nome”. Mencionando Nietzsche e Foucault, ele põe suas expectativas na produção de novos espaços de liberdade.

Confesso meu ceticismo; não sobre a ideia geral, mas sobre a possibilidade de essa tradição intelectual ser capaz de produzir qualquer coisa a não ser o mesmo desenraizamento espiritual que nos torna tão vulneráveis ao capitalismo emocional. Não há “liberdade” como mera negação de “x”, como lugar vazio e desocupado. A não ser que sua ideia de “esvaziamento” fosse uma forma oblíqua de se referir ao primeiro passo da conversão, o perder todas as coisas ao pé da cruz.

A resistência à psicopolítica passará, então, por resistir tanto ao sistema que vicia quanto ao discurso que embeleza o vício como se fora virtude

Aqui me parece localizar o maior erro de Byung-Chul Han, o marxiano: ele quer fazer a crítica do sistema de produção e consumo que escraviza a liberdade, mas não quer fazer a crítica da ideologia da liberdade. No entanto, parte do poder que o “neoliberalismo” tem sobre as pessoas reside nas concepções modernas de liberdade, que abandonaram a visão clássica e cristã. E assim Han não menciona a resposta mais óbvia e antiga de todas: a única barreira contra o vício é a virtude.

A resistência à psicopolítica passará, então, por uma resistência aos discursos e hábitos que legitimam o estilo de vida do homem psicológico; resistir tanto ao sistema que vicia quanto ao discurso que embeleza o vício como se fora virtude. Isso poderia nos levar a uma “despsicologização”; mas num sentido distinto: a vitória do caráter sobre as vísceras.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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