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Memorial do Holocausto (Imagem Pixabay)
Memorial do Holocausto (Imagem Pixabay)| Foto:

por Igor Sabino

De acordo com Marc Weitzmann, autor de Hate: The Rising Tide of Anti-Semitism in France (and What It Means for Us), o francês é a língua universal do ódio. Uma evidência disso seria o aumento dos crimes antissemitas na França, causados principalmente por dois grupos em posições bastante opostas no espectro ideológico: nacionalistas de extrema-direita e radicais islâmicos. Ambos, embora tenham ideias completamente diferentes e vejam um no outro ameaças existenciais, têm em comum o ódio pelos judeus.

A percepção de Weitzmann é, de certo modo, confirmada pelos dados da Anti Defamation League (ADL). Segundo uma pesquisa realizada pela organização no ano passado, em mais de 100 países, 17% da população francesa tem opiniões antissemitas, o equivalente a mais de oito milhões de pessoas. Por mais que esse seja um número expressivo, a França não está presente no ranking dos dez países com a maior porcentagem de pessoas com crenças antissemitas. Embora a Bélgica represente a francofonia, ocupando a nona posição na lista, o ranking é composto por países bastante diversos, situados em vários continentes.

Ainda segundo a ADL, estima-se que cerca de um bilhão de pessoas ao redor do mundo tenha opiniões antissemitas. As principais causas para isso, segundo a organização, são movimentos de extrema-direita, grupos de extrema-esquerda e radicais islâmicos, atores cujas táticas são muito bem descritas por Bari Weiss, em seu livro How to Fight Anti-Semitism. Embora o ódio aos judeus seja fluente em francês, ele também domina outros idiomas, inclusive o português.

O Brasil é o oitavo país com maior número de pessoas com ideias antissemitas. Segundo a pesquisa da ADL, 25% dos brasileiros têm algum tipo de opinião contrária ao povo judeu. 70% deles acreditam que os judeus são mais leais a Israel do que aos países em que vivem, e 38% desconfiam que os judeus exercem influência demais no mundo dos negócios e na economia internacional. Diferentemente da França, nos países latino-americanos as principais formas de antissemitismo predominante são de extrema esquerda e extrema-direita.

No primeiro caso, o antissemitismo geralmente se traveste de antissionismo e é justificado por meio de críticas à política do Estado de Israel. Está bastante presente no meio acadêmico brasileiro e nos discursos de líderes de alguns partidos políticos de extrema-esquerda. Uma das principais formas de expressão desse ódio aos judeus é o apoio ao movimento de Boicotes, Desinvestimentos e Sanções contra Israel, e tentativas de equiparar as políticas israelenses em relação aos palestinos com o Nazismo ou o apartheid sul-africano.

Isso tem se intensificado ainda mais durante o atual governo de Jair Bolsonaro, que, a fim de agradar seu eleitorado evangélico, estreita relações com Israel. Dessa forma, no intuito de se opor à agenda bolsonarista, sobretudo em questões de política externa, muitos críticos têm se valido de estereótipos antissemitas para atacar o Estado judeu. Um exemplo disso foi em janeiro de 2019, quando soldados das Forças de Defesa de Israel vieram ao Brasil para prestar ajuda humanitária às vítimas do rompimento da barragem de Brumadinho, em Minas Gerais. Na época, circulou na internet boatos de que a vinda dos militares israelenses era motivada por interesses escusos, como o controle da Amazônia ou uma tentativa de intervenção na Venezuela.

A propagação de teorias da conspiração contra os judeus, porém, não é um monopólio da extrema-esquerda, sendo comum também em alguns setores da extrema-direita. Este grupo é bem mais propenso a apoiar Israel, pois enxerga no Estado judeu um exemplo de nacionalismo bem-sucedido a ser imitado por outros países. Porém, em algumas ocasiões acabam fazendo referências a elementos típicos de movimentos antissemitas, como conspirações semelhantes aos “Protocolos dos Sábios de Sião” e até mesmo a discursos nazifascistas. O caso recente mais claro desse tipo de antissemitismo foi o discurso do ex-Secretário Nacional de Cultura, Roberto Alvim, em janeiro deste ano. Nele, Alvim afirmou que a arte brasileira da próxima década seria “heroica” e “imperativa”, parafraseando Joseph Goebbels, ministro de propaganda de Adolf Hitler na Alemanha nazista.

No comunicado da exoneração de Alvim, o presidente Bolsonaro pediu desculpas à comunidade judaica e condenou o antissemitismo. Nota-se, porém, a existência de uma má compreensão no Brasil acerca desse tema, em particular, e de outras questões relativas ao povo judeu. O próprio presidente do país, apesar de inúmeras demonstrações de apoio a Israel, já afirmou que o Holocausto não poderia ser esquecido, mas poderia ser perdoado. A declaração foi muito mal recebida pela comunidade judaica ao redor do mundo e condenada até mesmo pelo presidente israelense, sendo mais tarde esclarecida por Bolsonaro.

O antissemitismo em língua portuguesa, no entanto, não é um fenômeno recente, tampouco é uma exclusividade brasileira. Pelo contrário, é também, de certa maneira, uma herança da colonização portuguesa. A Península Ibérica tem um sangrento histórico de antissemitismo, marcado por vários episódios de perseguições aos judeus. Em 1446, o rei D. Manuel decretou a expulsão de todos os judeus de Portugal. Quase cinquenta anos depois, em 1497, a ordem foi transformada para conversão forçada ao cristianismo, culminando, em 1536, com a criação do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição, que atuou não apenas na Europa, mas também em território brasileiro.

O objetivo da Inquisição era principalmente vigiar e punir os judeus, sendo considerado pela professora Anita Novinsky (Os judeus que construíram o Brasil) como o episódio mais negro da história judaica antes do nazismo. Durante quase três séculos, os judeus de língua portuguesa, tanto no Brasil como em Portugal, foram forçados a praticar sua fé em silêncio, renunciando-a publicamente. Os que se recusavam a fazê-lo eram torturados e mortos. Esse ódio antijudaico era promovido principalmente pelo clero católico, tendo forte justificativa teológica que remetia ao catolicismo medieval.

Anos depois, a maioria dos brasileiros desconhece esse episódio de sua história. Contudo, persistem muitos dos preconceitos fomentados neste período. Em Portugal, a situação não parece ser tão diferente. Apesar de os índices de antissemitismo no país lusitano serem modestos – se comparados a outros países europeus –, ainda assim merecem atenção. Uma pesquisa realizada pela ADL, em 2014, apurou que 21% dos portugueses ainda sustentam opiniões antissemitas, com 49% dos entrevistados afirmando que os judeus falam demais sobre o Holocausto. Recentemente, com o anúncio da proposta de paz entre palestinos e israelenses, feita por Donald Trump, desenhos antissemitas passaram a circular na mídia portuguesa. Um deles, feito pelo cartunista Vasco Gargalo, em novembro de 2019, na revista Sábado, exibe Netanyahu empurrando um caixão com uma bandeira palestina em uma câmara de gás no campo de extermínio em Auschwitz. O cartoon, intitulado “Crematório”, claramente equipara o Estado judeu à Alemanha nazista. Ao ser questionado sobre a obra, Gargalo afirmou que trabalha em prol dos Direitos Humanos e que estava sofrendo violações à sua liberdade de expressão ao ser acusado de antissemitismo.

Tudo isso demonstra o quanto o ódio aos judeus é poliglota e ambidestro, manifestando-se de diversas maneiras, em várias línguas e espectros ideológicos; exigindo, portanto, um esforço coletivo para combatê-lo. No caso brasileiro, uma das principais maneiras de fazê-lo é por meio da educação. Muitos brasileiros sabem pouco sobre o Holocausto e desconhecem as complexidades dos conflitos do Oriente Médio, e tentam enquadrar as duas questões em uma visão míope de esquerda e direita.

É preciso deixar claro, por exemplo, que os judeus, como qualquer povo, têm direito à autodeterminação. Logo, o Estado de Israel é tão legítimo quanto qualquer outro, inclusive um futuro Estado palestino, caso venha a existir. Isso, no entanto, não significa que todas as críticas às políticas israelenses são antissemitas; elas o são apenas quando se é imposto ao Estado judeu um padrão que não é aplicado a nenhum outro país. Fala-se muito, e com certa razão, sobre o prolongado controle israelense dos territórios palestinos. Porém, quase nada é dito sobre outras ocupações estrangeiras que existem no mundo e até mesmo no próprio Oriente Médio, como é o caso da parte turca da ilha de Chipre.

Ao mesmo tempo, apoiar Israel em nível internacional não significa necessariamente um empenho no combate ao antissemitismo. Países do leste europeu, como Polônia e Hungria, têm relações cada vez mais estreitas com o governo israelense, mas, de acordo com a ADL, abrigam muita gente com preconceitos aos judeus. Esse, inclusive, é um ponto que tem sido constantemente ressaltado por judeus brasileiros de orientação mais à esquerda.

Nesse sentido, uma sugestão ao governo federal seria a criação de campanhas educativas e de combate ao antissemitismo. Aparentemente, isso não seria um problema, tendo em vista a atual aproximação com Israel na política externa e a defesa da liberdade religiosa como um item prioritário na agenda com organismos internacionais. Nesse sentido, seria necessário buscar um maior diálogo com a comunidade judaica brasileira, em toda a sua pluralidade ideológica, até mesmo com aqueles que fazem oposição a Bolsonaro. Essa, talvez, fosse uma boa tarefa para o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, já que lutar contra o ódio aos judeus é, sobretudo, lutar pela democracia e pelos direitos humanos.

Igor Sabino é Bacharel e Mestre em Relações Internacionais pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), e alumnus do Philos Project Leadership Institute. Realizou trabalhos humanitários em ONGs de Direitos Humanos ligadas à American University of Cairo, no Egito, e pesquisas de campo na Polônia, Israel, Territórios Palestinos, Líbano e Jordânia relacionadas a migrações forçadas e perseguição religiosa.

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