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Italo Marsili

Italo Marsili

Italo Marsili é médico psiquiatra, casado e pai de oito filhos, fundador da Atlântico Holding, um dos maiores grupos de empreendedorismo educacional digital do Brasil, com atuação em educação, saúde mental, audiovisual e impacto social. Criador do Guerrilha Way, o maior programa de desenvolvimento pessoal por assinatura do país, também idealizou a Certificação Italo Marsili®️ e é autor de best-sellers como Terapia de Guerrilha, Elogio aos Quatro Temperamentos e O Chapéu do Mago.

Memória e ficção

Prisão russa

Imagem ilustrativa. (Foto: MAXIM SHIPENKOV /EPA)

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Nós, que já estivemos no Sabará, mais precisamente na dobra do Rio das Velhas, e pisamos no espírito que nasce nas Andorinhas (cachoeiras, nas cachoeiras) e deságua no Velho Chico, não notamos imediatamente a diferença. A água turva, a margem baixa, o reflexo verde-acinzentado poderiam confundir o mais atento soldado. Não éramos soldados na altura; éramos Bianca (uma velha enrugada, ex-bailarina de Tolstói, cujo nome verdadeiro – descobri anos depois – era Svetlana), Stepánka (uma espécie de guia local, homem jovem, destes que ainda têm avó viva) e eu.

Por insistência da velha bailarina enrugada, passamos dois dias margeando a pé (não estava frio) o Reka (rio) Sura. A saudade das apresentações a fez confundir o jovem Stepanka, que se deixou envolver e não nos conduziu de imediato ao destino. Precisávamos chegar no sistema prisional da Mordóvia, ДОЛ Лесная Поляна (também conhecido como Dentadura de Ferro).

Depois de dois dias caminhando nas margens do Sura, saímos da margem baixa do rio, nas imediações da cidade de Penza, onde o curso serpenteia entre campos planos e bosques ralos. A estrada segue rumo nordeste (acho), cruzando pequenas aldeias com casas de madeira pintadas de verde e branco (mais cinza do que branco, efeito da sujeira e do tempo) e hortas de subsistência fechadas por cercas de ferro fino e enferrujado. O asfalto é irregular, ora cortado por trilhos de trem, ora encoberto por uma poeira fina de terra que o vento arrasta do campo e suja as botas e entra pelas frestas até alcançar nossas frieiras dentro das meias.

Ao longe, começavam a aparecer placas escritas em cirílico: Зубова Поляна (Zubova Polyana). Cruzamos a divisa entre o oblast de Penza e a República da Mordóvia, sem marcos, nem portais, nem fronteiras físicas, nem alfândega, nem nada (quase nada); apenas o silêncio e a mudança súbita no relevo: mais floresta, mais pinheiros, mais sombra. Na verdade, havia um acampamento. Carroças, tendas, mais tendas e algumas casinhas improvisadas. Coisa que não encontramos no Brasil. Paus enterrados, cordas estendidas e peles esticadas, deitadas por cima das cordas, formando telhadinhos retos. Abrigos improvisados. Quantas pessoas havia ali? Não sei. Não contamos. Stepanka, nosso guia, avançou em direção ao assentamento. Bianca e eu acompanhamos. Falávamos, na ocasião, sobre a Morte de Ivan Ilicht. A velha bailarina enrugada insistia não haver nenhum motivo explícito para a inscrição “memento mori” no relógio. Afirmava ter ouvido da boca do próprio romancista esta afirmação.

Bianca dizia ter nascido em Moscou, em 1895, filha única de um comerciante de tecidos persas e de uma pianista asmática. Sua mãe morrera cedo, deixando-lhe a música e um retrato oval em sépia, e o pai (ausente, devoto das caravanas e dos preços e das loiras eslavas) decidira que a filha teria instrução decente, sem excessos. Foi assim que Bianca começou a estudar no Conservatório de Moscou e, mais tarde, passou a ter aulas particulares de balé com Vera Andreievna Mirova, uma mulher gostosa, elegante e fraturada por dentro, ex-bailarina do Bolshoi, que falava pouco e fumava muito. Dizia-se que Vera fora amante de Tolstói na juventude de ambos. “Ele me chamava de pássaro ferido.” Foi essa mesma professora que levou a menina, em 1909, até Yasnaya Polyana, para uma apresentação literária. Bianca dançou um fragmento de Giselle no salão de madeira, entre samovares e mantas. Tolstói observou tudo com encanto. Quando terminou a apresentação, ele se aproximou: “As asas invisíveis dos que amam o sofrimento são as únicas que não se veem cair”. “Que bobeira”, pensou a menina, “poesia de velho”.

Tolstói disse a Bianca, certa vez, que o “memento mori” inscrito no relógio de Ivan Ilitch não significava nada. Tolstói, assim como Marx, tinha uma afeição ao anarquismo de Prudhon. “Propriedade é roubo”, dizia o francês. Vera e Tolstói conversavam, Bianca assistia: “Não há aviso". “A morte? Ela vem como vem o silêncio.” “Nem sempre.”

Mais tarde, Vera (a amante carnal de Tolstói) explicou: ele dizia isso desde Paris, desde que vira a guilhotina funcionar; compreendera que nenhuma morte pública é verdadeira, e que nenhuma moral extraída da morte pública pode ser confiável. Aquela inscrição no relógio era, para Tolstói, um eco falso da sabedoria romana. (O leitor sabe o que aconteceu em 1848 por toda a Europa? Sobre a Primavera das Nações, e como isso impactou os intelectuais da época e como este impacto molda a percepção política contemporânea).

Bianca, a velha, contava-me sobre sua relação com Tolstói e com Vera, enquanto caminhávamos pela margem errada do Rio (reka) Sura. Não falou, no entanto, uma única palavra sobre seu ex-marido. Homem que íamos visitar no complexo prisional da Mordóvia, o Dentadura de Ferro (sim, o ex-marido de Bianca emprestava seu nome para o complexo prisional).

Bianca, o ex-marido e o lindo bebê moribundo dormiram como mendigos em frente à catedral. Não pensavam em mais nada, apenas na cura miraculosa

Eu não acreditei em nada. Bianca não tinha idade para ter conhecido Tolstói. A velha delirava. Continuei com minha tese: o relógio de bolso era guardado no bolso, naqueles bolsos de coletes antigos, abertos na altura da última costela flutuante, ao lado direito. Na topografia de um órgão inútil, chamado “ceco”. Ivan Ilicht caiu da escada, bateu com o abdômen, afetou o ceco, levando-o à morte. A pancada ocorreu precisamente no lugar onde se guardava o relógio, na altura do tal órgão ceco, no lugar onde devia estar o “memento mori” — mas não estava, e não trazia nenhum “memento”, nenhuma lembrança, porque Ivan (o personagem do conto de Tolstói) não era lá muito reflexivo acerca do sentido das coisas. Era socialmente ajustado e perfeitamente medíocre.

De Zubova Polyana, tomamos uma estrada menor, reta como uma sentença, que seguia por cerca de 40 km ao norte, em direção à localidade de Yavas. Ali, entre árvores retorcidas e torres de vigilância, nos apareceu o complexo prisional. Feio demais. Não, não era tão feio assim; eu gosto do brutalismo; e havia neve ao redor da edificação. Não fazia frio, como já disse.

O ex-marido de Bianca não havia feito mais do que um filho na bailarina. Apenas um. Diziam (antes de todos os acontecimentos): “Uma enxadada, uma minhoca”. Não sei. Svetlana é o verdadeiro nome de Bianca. Era comum bailarinas da época adotarem nomes artísticos. Svetlana adotou um nome italiano: Bianca. Apesar de russa, não era loira. Era branca, não muito, com cabelos pretos e cheios. Também não era alta como uma camponesa, era pequena e magra, “balanceada”, diziam (não sei, quando a conheci, já era velha e enrugada e torta, como quem está sempre chupando caju).

O ex-marido de Bianca estava preso há trinta anos. Homicídio. Todos os anos, a 20 de dezembro, Bianca o visitava; era a primeira vez que me convidara para acompanhá-la. Minto. Havia sido a primeira vez que eu atendera ao pedido.

O casal havia tido um filho na juventude. Um menino lindo. Gordo. Com a cara branquinha e os olhinhos pestanudos. Eu não o conheci. No aniversariozinho de quatro anos, o pequeno Rodka não conseguiu sorrir. Nos dias seguintes, tampouco. Na semana seguinte, já não comia. Notaram um caroço crescendo por dentro da gargantinha. Tadinho. O neném foi emagrecendo. Em menos de um mês, recebeu uma sentença do médico. O pai não se conformou. A mãe não se conformou. Era um casal de fé. Desceram até Kronstadt e entraram na catedral de Santo André. Procuraram a mulher do padre, a casta Elizaveta. Não a encontraram. Naqueles dias, o padre Ivan Sergiev tinha fama de curandeiro. Milhares de penitentes, doentes físicos, doentes espirituais, marginais, príncipes (inclusive o czar Alexandre III) dirigiam-se à catedral de Santo André em busca de prodígios. O sangue de Ivan tinha poderes mágicos. Quem tocasse em uma gota de seu sangue era milagrosamente curado. O padre, no entanto, tinha o mau hábito de sangrar apenas quando se cortava.

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Bianca, o ex-marido e o lindo bebê moribundo dormiram como mendigos em frente à catedral. Não pensavam em mais nada, apenas na cura miraculosa. Impressionante. Antes de nascer o sol, acordaram e já havia uma fila em frente ao portão fechado de Santo André. Três mil pessoas. “Talvez quatro mil”, pensou Bianca. Abriram-se os portões. A multidão afluiu para dentro da nave. Ivan, o padre demiurgo, e sua esposa já estavam trajados e de pé na frente do altar, distribuindo bênçãos piedosamente. Bianca, com seu filho semimorto nos braços, e seu ex-marido aproximaram-se do padre Ivan. Receberam uma bênção. Olharam para o pequeno Rodka e não viram nada acontecer. Nenhum milagre. A fé, quando assaltada pelo desespero, ganha uma carinha maluca. Foi o que ocorreu com o ex-marido. Um pensamento assaltou nosso papai-herói: “Basta uma gotinha de sangue”. Lançou-se em direção ao padre, derrubou-o; ambos se debatiam como dois animais, como presa e predador. O predador despiu as vestes sacras da presa na altura do abdômen e mordeu com violência (esperança e fé). Mordeu até arrancar sangue. Largou a hiena ferida no altar e levantou-se como um leão vitorioso. Alcançou sua fêmea e sua prole doente. Deu-lhes um beijo na boca, um na boca de Bianca e outro na de Rodka. Os três, com a boca ensanguentada, agradeciam ao miraculoso sacerdote: “Basta uma gotinha de sangue”. Todos os fiéis, os cinco mil, incluindo a esposa de Ivan, louvavam maravilhados: “O menino está curado, o menino está curado, o menino está curado”. E realmente estava. Ganhou cor e peso imediatamente. Saiu dos braços da mãe e correu por entre os bancos como as crianças correm em igrejas. Que grande maravilha. Todos, exceto Ivan, louvavam. O padre ficou, digamos, puto. Levantou-se e acertou a cabeça do ex-marido de Bianca com um murro. O ex-marido sorria, cantava. Levantou-se e abraçou o padre.

Bem, não sabemos exatamente como, mas o padre desenvolveu uma infecção na bexiga depois da mordida. Por quatro anos, experimentou um calvário de complicações médicas que lhe tiraram a saúde e, por fim, a vida. Tudo por causa da mordida, da fé e de seus superpoderes miraculosos e messiânicos.

O jovem Rodka ficou completamente curado. Instantaneamente. Foi curado do caroço. Graças a Deus. Morreu dias depois, afogado num poço aberto.

O casal viveu um luto profundo. Quatro anos mais tarde, com a notícia da morte do padre, a polícia czarista foi atrás do ex-marido. Levou-o preso. Trinta anos preso. Não sairá jamais.

Chegamos ao complexo prisional brutalista. Entramos. Sentamo-nos os três: Bianca, o ex-marido e eu, e começamos a conversar:

“Os demônios criaram os pensamentos, não são coisas naturais da mente: o homem que pensa é o homem doente.”
“O estado natural da mente é a contemplação constante da divindade; seu animal, este é o estado adâmico original.”
“Depois de a alma ter ficado viúva, como a de Naim, viúva da própria Palavra de Deus, desacoplada de seu marido, nossa natureza tornou-se viúva. O marido é quem governava a vontade... sem o governo, depois da viuvez, sozinha, sem a graça de Deus, a alma perde ainda o seu filho. Além de viúva, vê morto seu filho.”
“Nossa alma é a viúva de Naim que convive com estes demônios chamados pensamentos... (que não são maquinações ou operações naturais, mas os próprios demônios vivos dentro da caixola). Alma viúva com filho (a mente) morto. Fraca e sem marido e sem filho, a alma tem sua porta invadida por estes ladrões que arrastam móveis, vasculham as gavetas, escravizam-na em prisão domiciliar: cozinha, lava, passa, se despe, é sodomizada por estes ladrões dia e noite.”

Conversamos muitas outras coisas, mas o meu russo está enferrujado. Não sou fluente. O que tenho, aprendi num curso básico oferecido na Igreja Ortodoxa Russa da Mártir Santa Zinaída, na Rua Monte Alegre, no charmoso bairro de Santa Teresa/RJ, próxima à antiga casa do Alex Catharino.

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