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Tom Cruise posa em frente a um avião militar do tipo caça na promoção de seu novo filme Top Gun Maverick
Tom Cruise posa em frente a um caça, em Londres, para promover seu novo filme Top Gun: Maverick.| Foto: EFE/EPA/Tolga Akmen

Algo se passa com Tom Cruise. Quando o conheci, no primeiro Top Gun, ele parecia um irmão mais velho. Hoje, parece meu filho, embora a tentação fosse dizer meu neto. Será que o verdadeiro Tom Cruise vai envelhecendo no retrato, como o personagem de Oscar Wilde, enquanto o Tom público mantém a aparência dos verdes anos? Talvez. A hipótese é ainda mais perturbadora quando falamos do novo Top Gun: Maverick. É excelente. É horrível. Alguém foi ao ano de 1986 e trouxe o passado para 2022, inclusive os acordes de guitarra elétrica (infelizmente, Kelly McGillis não veio junto).

Alguns pormenores, admito, são produto da nossa circunstância: a ameaça, agora, não são MiGs soviéticos, mas apenas porque o filme foi rodado antes da invasão da Ucrânia. Os roteiristas e produtores optaram por programas nucleares subterrâneos e clandestinos, em óbvia referência ao Irã. Mas a nostalgia é tão intensa que os méritos do filme, às vezes, são submergidos pela sensação de irrealidade que ele desperta, como se fosse um objeto de um outro planeta.

Não é caso único: se existe fenômeno que tem crescido nos últimos anos é a quantidade de filmes ou séries que nos levam de volta para as décadas de 1980 e 1990. Tempos atrás, o Wall Street Journal explicava que esse revivalismo pode vir de duas formas. A primeira, visível em qualquer plataforma de streaming, é o sucesso de séries como Friends ou Sabrina, Caçadora de Vampiros, que continuam conquistando velhas e novas plateias. A esses dois exemplos podemos acrescentar obras-primas como Frasier ou Seinfeld, e casos terminais como Alf ou Barrados no Baile.

O mundo de hoje não se recomenda – pandemia, guerra, polarização política. Um portal para o passado sempre consola as almas assustadas

Mas o passado também pode surgir com remakes que não lembram ao Diabo. Antes de assistir a Top Gun, um dos trailers que passaram na tela da sala prometia um novo Jurassic Park – Parque dos Dinossauros para breve, com todos os atores que estrelaram o primeiro. É a metáfora perfeita para a febre nostálgica: ir à pré-história buscar o DNA de um dinossauro e recriá-lo no presente. Como explicar essa febre?

Sem surpresas, os especialistas falam na tentação escapista: o mundo de hoje não se recomenda – pandemia, guerra, polarização política. Um portal para o passado sempre consola as almas assustadas. Concordo, até certo ponto. No passado, as ameaças também existiam. Só que eram reconhecíveis e previsíveis, até mensuráveis: na Guerra Fria, a destruição nuclear poderia ser mútua e assegurada, mas era, ao mesmo tempo, antecipada e impensável. O 11 de Setembro destroçou essa previsibilidade: as ameaças vinham agora de uma caverna medieval, algures no Oriente Médio, e não do interior do Kremlin.

A crise financeira de 2008 aprofundou o quadro: por razões insondáveis ao cidadão comum, empregos e poupanças de uma vida desapareciam da noite para o dia – e a ruína, como nas tragédias gregas, descia inexoravelmente sobre os mortais. A pandemia só piorou essa sensação de vulnerabilidade: nada assusta mais os homens modernos do que a “tirania da contingência”, ou seja, a evidência dolorosa de que não controlam tudo. Muito menos um bicho microscópico que, em dois anos e meio, terá matado tanto como os nazistas nos campos de extermínio. Para fechar o cortejo, a guerra na Ucrânia. Não pela guerra em si; mas pela banalização da ameaça nuclear, como se o uso da bomba, mil vezes admitido por Putin e seus capangas, fosse agora um passeio no parque.

Perante essas brutalidades, como resistir ao charme dos anos heroicos? Como resistir a um universo em que o destino está nas nossas mãos e a vitória sobre as forças do mal é uma questão de tempo? Eu não resisti: naquele sábado, enquanto amaldiçoava o rosto de Tom Cruise, soltei a minha “masculinidade tóxica” e ela lá foi, abanando a cauda, a centenas de quilômetros por hora. Bebi, praguejei, disparei, destruí.

No fim do filme, tão exausto como os personagens da história, ainda pensei em rumar até o aeroporto de Lisboa, só para sequestrar um avião e continuar a festa. Mas a idade não perdoa. No dia seguinte, nas primeiras horas da manhã, o indomável capitão Little Couto acordou derreado, gemendo, com dores no corpo e a cabeça mais pesada do que um caça F-35. Era Covid.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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