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Cerimônia de entrega dos Oscars, em 27 de março de 2022.
Cerimônia de entrega dos Oscars, em 27 de março de 2022.| Foto: EFE/EPA/Etienne Laurent

Pobre Oscar. Ninguém quer saber mais dele. Eis a tese de incontáveis artigos publicados antes da premiação. O ibope do show tem sido miserável. Os filmes indicados não fazem sucesso na bilheteria. Como explicar esse naufrágio?

Fiz uma experiência. Perguntei a amigos, familiares e até colegas qual foi o melhor filme a que assistiram nesse último ano. Quase ninguém deu a mesma resposta – e, entre as respostas, nenhuma foi indicada ao Oscar principal. Eu próprio, em momento de autoanálise, concluí que a melhor colheita do meu 2021 foi, provavelmente, A Crônica Francesa, de Wes Anderson. Escusa de procurar, leitor. Não foi indicado ao Oscar de melhor filme.

A fragmentação de gostos é imensa, eis o meu ponto. Nos alvores da adolescência, era o contrário. Sim, havia sempre um coleguinha que tinha um gosto particular por cinema albanês ou música da Polinésia. Mas era artigo raro e, aposto, falacioso. Tenho a certeza de que o desgraçado passava horas assistindo aos filmes do Indiana Jones e escutando as músicas do Queen às escondidas.

Nos verdes anos, havia uma cultura geral e partilhada. Não por escolha; por ausência de escolha

Os restantes falavam das mesmas coisas porque só havia as mesmas coisas para falar. A televisão privada só chegou a Portugal na primeira metade da década de 1990. A internet, pelo menos para as famílias, na segunda metade. E as plataformas de streaming, lógico, nasceram ontem. Resultado: nos verdes anos, havia uma cultura geral e partilhada. Não por escolha; por ausência de escolha.

Há quem lamente essa perda civilizacional. A litania é conhecida: a modernidade foi deslaçando os indivíduos, que deixaram de ter uma linguagem comum – religiosa, cultural, política, até simbólica – e se atomizaram para lá do tolerável. A fragmentação do consumo cultural é apenas uma expressão desse hiperindividualismo, em que cada um persegue solitariamente os seus interesses, sem estabelecer pontes de contato com ninguém.

Por mais atraente que seja o diagnóstico, sobretudo para almas nostálgicas que sentem o apelo imemorial da tribo, não compro essa viagem. Por dois motivos. Primeiro, esse mundo de uniformidade cultural era uma tristeza de meter dó. Sem possibilidade de consumir e comparar obras diversas, uma pessoa até acreditava que Oliver Stone era um grande diretor.

Mas o diagnóstico também está incorreto porque o fim da tribo não acabou com as tribos. Elas apenas se multiplicaram e segmentaram. Anos atrás, o sociólogo francês Michel Maffesoli já tinha cartografado o fenômeno no seu O Tempo das Tribos. Contra a ideia comum de que a sociedade de massas conduz ao individualismo, Maffesoli propunha o contrário: cada vez mais procuramos aqueles que sentem e pensam como nós, formando comunidades afetivas e estéticas (ou, melhor dizendo, afetivas porque estéticas). É uma procura essencial, e não instrumental, porque o fim dessas “tribos” não é obter um ganho que lhes seja exterior ou ulterior. O ganho é pessoal, existencial, identitário. E, excetuando os casos patológicos, produto da escolha individual e não da coerção da escassez.

A internet só veio acelerar essa dinâmica, às vezes de forma nociva (na política), mas também de forma benigna (nas “afinidades eletivas” de gosto). Pessoas que apreciam genuinamente cinema albanês ou música da Polinésia devem existir em qualquer canto do ciberespaço, sem necessidade de fazerem pose. E sem estarem condenadas à solidão.

O Oscar era um sucesso porque não existiam as alternativas culturais de hoje

Na sua coluna do New York Times, Ross Douthat sugere que o problema do Oscar está no fato de já não existirem filmes “middlebrow” que congregam o gosto médio das massas. Errado, companheiro. Esses filmes existem e, olhando para os dez indicados ao Oscar de melhor filme, quase todos encaixam no perfil.

O problema é que o sucesso planetário do Oscar implicava uma certa homogeneidade de opções e gostos, por falta de alternativas. As pessoas consumiam os mesmos filmes, discutiam sobre eles e, na hora da premiação, até torciam pelos seus eleitos. Não mais: os seguidores do Oscar são hoje uma tribo entre várias tribos, sem um estatuto majoritário ou especial. É um caminho sem retorno – e ainda bem.

P.S.: Escrevi a coluna antes de assistir à agressão de Will Smith a Chris Rock. É um momento histórico, que pode significar uma de duas coisas: ou a decadência do show é irreversível; ou Hollywood encontrou aqui uma forma de ressuscitar a cerimônia, obrigando os atores a imitarem os personagens da Marvel na vida real.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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