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Dizem que a história gosta de se repetir, tal como se fosse um folhetim barato. O mesmo enredo, os mesmos capítulos a mesma conclusão; tudo muito igual, só mudando o cenário e os personagens. Uma dessas histórias que vem se repetindo – já está até perdendo a graça – é o conto da democracia do povo que se transforma em ditadura sem nenhum povo sem que o próprio povo se dê conta disso. Ou como prefiro chamar, "Quando a democracia é corrompida até virar ditadura". Essa fábula sem moral está acontecendo exatamente agora e em vários lugares ao mesmo tempo. Mas há um porém: em cada um desses lugares, o enredo está num ponto distinto de desenvolvimento. Há cenários onde a novela ainda está em seus primeiros capítulos; noutros bem no meio; enquanto em alguns, já está no auge, como na Nicarágua.
Num trágico lembrete de que ditaduras podem ser criadas a partir da distorção de instituições democráticas, a Nicarágua usou um arremedo de reforma constitucional para decretar definitivamente o fim de qualquer resquício de democracia ou garantia de direitos que ainda pudesse existir no país. O novo texto constitucional foi aprovado pela Assembleia Nacional da Nicarágua – por unanimidade, como costuma ocorrer nas ditaduras – na última semana e retira qualquer freio ao poder do ditador Daniel Ortega.
Trechos fundamentais do texto constitucional, como o que estabelecia o respeito à dignidade da pessoa humana como um princípio da nação nicaraguense, foram suprimidos. A partir de agora, o país passa a ser definido como um Estado "revolucionário" e "socialista" – embora seus governantes, o ditador Daniel Ortega e sua esposa, Rosario Murillo, tenham alcançado um status compatível ao dos antigos monarcas absolutistas.
A consolidação da ditadura na Nicarágua e o avanço do autoritarismo na Venezuela de Maduro – que, seguindo os passos de Ortega, também pretende “reformar” a constituição do país – mostram o quão real e possível é o risco de distorcer as instituições democráticas até fazer delas o alicerce das ditaduras
Autodeclarados “copresidentes”, os dois agora têm poderes irrestritos para controlar “os órgãos legislativo, judicial, eleitoral” e de fiscalização, antes reconhecidos como independentes na constituição nicaraguense, além de exercerem controle sobre a sociedade civil, incluindo a imprensa. Um dos pontos incluídos na nova constituição prevê até o monitoramento da imprensa sob o pretexto de combate às fake news. Já o trecho que proibia explicitamente a censura no país foi retirado do texto constitucional.
A Lei Especial sobre Crimes Cibernéticos, que já previa desde 2020 a prisão de quem promovesse a disseminação de notícias falsas e/ou distorcidas que causassem “alarme, medo ou ansiedade entre a população” e que tem sido usada por Ortega para condenar opositores, agora também se aplica a crimes cometidos dentro ou fora do território nacional, por pessoas físicas ou jurídicas.
De acordo com a nova constituição, “os meios de comunicação deverão garantir que não estejam submetidos a interesses estrangeiros e que não divulguem fake news”. Como a legislação não traz uma definição do que seria uma notícia falsa, caberá ao Judiciário – controlado pelos “copresidentes” ditadores – decidir o que é ou não uma informação falsa ou se a informação causa alarme, medo ou ansiedade. Na prática, os veículos de comunicação - os poucos que ainda não foram fechados por Ortega - ficarão à mercê do governo, podendo ser criminalizados a qualquer momento.
No poder ininterruptamente há quase duas décadas, Daniel Ortega, antigo guerrilheiro da Frente Sandinista de Libertação Nacional, foi eleito presidente do país em 1985, perdendo as eleições seguintes em 1990, 1995 e 2001. Após uma campanha em que escondeu suas raízes comunistas para conseguir apoio popular – onde até as cores da bandeira sandinista, o preto e o vermelho, foram substituídas pela cor rosa em nome da eleição – Ortega conseguiu voltar ao poder em 2006, desta vez disposto a não deixar mais a presidência.
Com o gradativo emparelhamento dos poderes Legislativo e Judiciário, Ortega conseguiu implodir o sistema de pesos e contrapesos no país, acabando com a independência entre os poderes, reformando a constituição e a legislação, e abrindo espaço para moldar uma ditadura perfeita, da qual a população nicaraguense dificilmente conseguirá se livrar facilmente, a partir do que antes era um Estado democrático.
É um erro acreditar que apenas ações intempestivas ou violentas levam ao fim do Estado Democrático de Direito. Muitas vezes, ele definha sem alarde, sem que a população seja capaz de perceber o avanço sorrateiro do autoritarismo. A consolidação da ditadura na Nicarágua e o avanço do autoritarismo na Venezuela de Maduro – que, seguindo os passos de Ortega, também pretende “reformar” a constituição do país – mostram o quão real e possível é o risco de distorcer as instituições democráticas até fazer delas o alicerce das ditaduras. Você conhece essa história, e sabe que ela está se repetindo em vários outros lugares.




