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Dmytro Raskevich reencontrou a família após ser libertado numa troca de prisioneiros: “A minha alma não cabia no meu corpo de tanta felicidade”
Dmytro Raskevich reencontrou a família após ser libertado numa troca de prisioneiros: “A minha alma não cabia no meu corpo de tanta felicidade”| Foto: Arquivo pessoal

Dmytro Raskevich, de 25 anos, é um engenheiro militar do exército da Ucrânia. No início de fevereiro deste ano, a Rússia tinha entre 130 mil e 200 mil tropas estacionadas ao longo da fronteira ucraniana, não só no território russo, mas em Belarus e na península da Crimeia - solo ucraniano que havia sido ocupado por Moscou em 2014.

A invasão era iminente, segundo a inteligência britânica, mas publicamente o presidente Vladimir Putin negava a intenção de enviar suas tropas ao país vizinho. Dizia que tudo não passava de um exercício militar.

Raskevich e seus companheiros de armas foram enviados ao porto de Berdiansk, no litoral ucraniano, para instalar minas, com o objetivo de retardar uma eventual invasão anfíbia russa.

O povo ucraniano, assim como a maioria dos analistas, apostava que uma ação militar russa se restringiria ao leste do país, na região de Donbas. Berdiansk era um alvo pouco provável. Mas em 24 de fevereiro, após uma chuva de mísseis sobre as principais cidades ucranianas, tropas russas iniciaram a invasão de larga escala sobre o país vizinho.

Militares russos partiram da Crimeia para Kherson, Melitopol e Berdiansk. Da cidade russa de Taganrog, militares avançaram sobre Mariupol. Em pouco tempo, Berdiansk foi dominada pelo Kremlin e o pelotão de Raskevich se viu cercado. Não era mais possível chegar a Zaporizhzhia, a região mais próxima ainda sob controle ucraniano.

Ele e seus companheiros receberam ordens para viajar até a vila vizinha de Primorsk, se livrar de seus uniformes militares e se misturar à população civil. Eles entraram em contato com colaboradores que viriam a se transformar na resistência ucraniana. Foram então levados a uma casa segura, onde permaneceram por uma semana.

Após dias nas sombras, o jovem e impetuoso soldado começou a pensar em um plano para tentar retornar secretamente ao território ucraniano não ocupado. Ele retornou então para a cidade de Berdiansk.

“Comecei a ajudar outros colegas militares a se estabelecer em Berdiansk, mas logo a polícia militar russa começou a nos procurar. Começamos a mudar constantemente de endereço para evitar a captura”, disse Raskevich a este colunista.

Disfarçado como um estudante local, o soldado fez contato com as forças especiais ucranianas, que tentavam organizar um movimento partisan de resistência nos territórios ocupados.

“Eu passei a ajudar os ‘especialistas’. Comecei a tirar fotos de policiais ucranianos que mudaram de lado”, disse. Entre as tarefas de membros da resistência em áreas ocupadas, estavam fazer sabotagens em linhas férreas, promover atentados contra autoridades russas e, no caso de Raskevich, localizar e identificar os “vatnik”, gíria que designa os cidadãos ucranianos que mudaram de lado e começaram a apoiar os russos invasores.

Tudo ia bem na nova missão de Raskevich, até que seus colegas em Primorsk foram capturados pela polícia secreta russa. Mas ele não sabia disso. Seus companheiros foram obrigados a telefonar e dizer a Raskevich que precisavam encontrá-lo em Berdiansk. Ele forneceu sua localização e marcou um encontro. Em questão de horas, foi cercado.

“Não sei quem eram, porque colocaram uma máscara na minha cara e eu não vi nada. Depois me levaram para um local que não sabia onde era, depois vi que era uma delegacia. Tentaram descobrir quem eram as pessoas de operações especiais que trabalhavam comigo”, disse.

“Queriam os mapas das minas que nós instalamos, das fortificações que construímos e as identidades dos civis que nos ajudaram.”

Raskevich tentou manter o disfarce de estudante. “Eu disse que não sabia de nada que estavam me falando e o que estava acontecendo. Houve vários tipos de tortura, a principal era o uso de eletricidade”, disse.

“Eu foi colocado em uma cadeira de metal. Não podia me mexer e eles usaram eletricidade para me torturar e pegar informações. Também usaram cassetetes para me bater e tentaram me asfixiar usando sacos plásticos. Quebraram meu nariz”, disse.

O soldado foi colocado em uma cela com outras quatro pessoas que não conhecia. Um dos prisioneiros começou a dizer que os russos cortavam os órgãos sexuais de quem não fornecesse informações. Ele disse que viu pessoas que teriam sido mutiladas durante a tortura. O que não sabia é que havia russos infiltrados como prisioneiros.

“Eu fui levado para a sala de tortura e tiraram minhas calças. Pensei que tudo estava perdido. Começaram a colocar alguma coisa na minha genitália e não entendi o que era. Então, começaram a dar choques”, relatou.

No dia seguinte a essa sessão de tortura, os captores de Raskevich lhe apresentaram seu telefone celular, que havia sido apreendido. Ele estava relativamente tranquilo, pois havia apagado todas as informações comprometedoras. Mas os russos acessaram uma pasta do aplicativo Telegram que salvava fotos e conversas. Raskevich não sabia da existência do recurso.

“Eles mostraram fotos minhas usando meu uniforme militar, provando que eu não era um estudante. Meu disfarce acabou naquele momento.”

O soldado então entregou aos russos os nomes dos membros de sua equipe e informações sobre suas missões. “Tenho muita vergonha disso”, afirmou.

Mesmo tendo dado informações aos russos, o jovem foi submetido a várias outras agressões, entre elas a simulação de execução.

“O momento em que me quebraram foi quando disseram que iam atirar em mim e me colocaram em fila. Naquele momento, morri em meus pensamentos”, lembrou.

Segundo ele, todos os prisioneiros ficavam vendados e era possível ouvir estampidos semelhantes a tiros. “Eu percebia que cada vez mais havia menos pessoas na fila”, disse.

Porém, Raskevich percebeu em certo momento que não seria assassinado. Os estampidos eram fogos de artifício e não tiros. “Aquilo foi como uma vacina para mim, desde então, comecei a pensar que não iria morrer ali.”

Dmytro Raskevich com a esposa, Diana Bezrukova, em Odesa. Foto: Luis Kawaguti
Dmytro Raskevich com a esposa, Diana Bezrukova, em Odesa. Foto: Luis Kawaguti

O soldado foi levado para a base naval russa de Sevastopol, onde o tratamento começou a melhorar. Lá, os russos perguntaram se ele queria fazer parte das trocas de prisioneiros. Contudo, para participar, precisava assinar documentos sem ler. Ele soube mais tarde que os papéis continham declarações de que ele testemunhava que as tropas ucranianas cometeram crimes de guerra e genocídio em Luhansk, uma província do leste da Ucrânia. Tudo mentira.

Raskevich se lembra de um grupo de 50 prisioneiros que foi levado para uma suposta troca de prisioneiros - fato que injetou ânimo em todos os demais. “Mas depois cinco deles foram trazidos de volta com várias fraturas. Eles tinham sido levados para Taganrog, na Rússia. Não sei o que houve com os outros”, disse.

“Chegavam muitos relatos de pessoas que viram nossas militares serem violentadas sexualmente. Eu mesmo falei com uma delas, mas depois nunca mais a vi. Espero que esteja bem, se é que isso é possível”, lembrou.

Após mais de quatro meses em prisões russas, Raskevich foi selecionado para ser trocado por prisioneiros russos.

“Não acreditei até o último momento que haveria uma troca. Vi primeiro um homem cruzando uma ponte em nosso uniforme. Havia um civil e militares. É impossível descrever a emoção. É como se alguém te sacudisse ao máximo para tirar algo do seu corpo”, relatou.

O soldado foi levado então para um centro de reabilitação em território ucraniano. “Lá foi a primeira vez em meses que vi alguém sorrindo para mim, não estavam indiferentes”, disse.

Dias depois, ele encontrou a esposa e familiares em uma cerimônia de recepção. “A minha alma não cabia no meu corpo de tanta felicidade”, afirmou.

Desde o início da guerra, cerca de mil ucranianos retornaram ao seu país em 30 trocas de prisioneiros.

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