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Presidente da Rússia cita valores como família, religião e conservadorismo, mas seu verdadeiro objetivo é minar o apoio internacional à Ucrânia
Presidente da Rússia cita valores como família, religião e conservadorismo, mas seu verdadeiro objetivo é minar o apoio internacional à Ucrânia| Foto: EFE/EPA/MEKHAIL METZEL/SPUTNIK/KREMLIN

O discurso anual sobre política externa do presidente Vladimir Putin, proferido na última quinta-feira (27), deixou claro que agora o alvo internacional da propaganda de guerra russa é a direita conservadora - em particular, os parlamentares do Partido Republicano dos Estados Unidos.

Putin tenta associar artificialmente à imagem do Kremlin valores como família, religião e conservadorismo. Seu objetivo não é promover esses valores ou apoiar os países que os praticam, mas sim minar o apoio internacional à Ucrânia para tentar vencer a guerra.

Atualmente, a ajuda financeira e militar ocidental é o ponto de equilíbrio da estratégia ucraniana, que já passa de US$ 60 bilhões só dos Estados Unidos. Sem ela, dificilmente Kyiv teria conseguido resistir a maiores avanços russos e lançar uma contraofensiva que tem chance consistente de obter sucesso.

No discurso, Putin sinalizou também para uma possível desescalada da tensão nuclear na Ucrânia, afirmando que não teria a intenção de detonar bombas nucleares no campo de batalha.

Ele tomou o cuidado de dizer que sua batalha não é contra o Ocidente (ou contra os próprios Estados Unidos), mas sim contra “elites ocidentais”. Segundo ele, haveria dois Ocidentes, um supostamente parecido com a Rússia - tradicional e seguidor de valores cristãos - e outro agressivo, neoliberal e cosmopolita, que atuaria a serviço de uma elite e não do povo.

Esse discurso foi cuidadosamente fabricado para cativar republicanos e partidários do ex-presidente Donald Trump. O “inimigo” descrito por Putin é muito parecido com o que Trump chamava de “Deep State”, termo em inglês que significa “Estado Profundo”. O conceito designaria um grupo de funcionários públicos e empresários que teriam agido de forma orquestrada contra os interesses do ex-presidente americano.

O discurso foi elaborado agora porque em 8 de novembro os americanos irão às urnas para eleger deputados e senadores. Se os republicanos obtiverem maioria no Congresso, em teoria, o apoio americano à Ucrânia poderia se arrefecer.

O parlamentar Kevin McCarthy, líder da minoria republicana na Câmara dos Representantes, equivalente à Câmara dos Deputados no Brasil, disse em outubro que um Congresso republicano não assinaria um “cheque em branco” para Kyiv.

Contudo, a declaração ocorre em um momento em que 73% dos americanos são a favor da assistência continuada à Ucrânia, segundo pesquisa deste mês da Reuters/Ipsos. Por isso, analistas políticos divergem ao opinar se o apoio americano à guerra poderia ser diferente caso os republicanos ganhem maioria no Congresso.

Mas o que isso tem a ver com o Brasil?

A relação é indireta, pois o Itamaraty vem tentando manter uma postura de equilíbrio em relação à guerra na Ucrânia.

Ao direcionar sua propaganda - guerra de informação, na verdade - para os conservadores americanos, Putin pode acabar influenciando também a opinião pública de alguns países do chamado Sul Global, o grupo de países em desenvolvimento que inclui o Brasil.

Apoiadores do presidente Jair Bolsonaro, por exemplo, podem ser erroneamente induzidos a pensar que Brasil e Rússia são países parecidos, por supostamente comungar de valores semelhantes - como apreço pela família, religião, propriedade privada, entre outros.

Mas isso é pura propaganda, e os países são muito diferentes, a começar pelos regimes de governo. O Brasil, apesar de ter defeitos como insegurança jurídica extrema e corrupção, é uma democracia. A Rússia é liderada de fato por Putin há 22 anos. Lá há liberdades individuais, desde que essas liberdades não entrem em choque com os interesses do governo.

Ao invadir a Ucrânia neste ano, Putin criou 7,7 milhões de refugiados - a grande maioria mulheres e crianças, pois os homens não podem sair do país devido à lei marcial. Ou seja, famílias foram separadas aos milhões. Sem falar nos mais de 6 mil mortos civis, segundo estimativas muito conservadoras da ONU. Ainda hoje são encontradas valas comuns com centenas de corpos de civis em cada uma das cidades que ficaram sob domínio russo, entre elas Bucha e região, Mariupol e Izyum.

As próprias famílias de 300 mil conscritos russos tiveram que se despedir de filhos, pais e maridos, enviados em alguns casos à força para o campo de batalha - o maior indício disso é que dezenas de milhares de homens deixaram a Rússia quando começou a “mobilização parcial”.

Talvez esses sejam os valores cristãos que Putin deseja partilhar com o Sul Global. A Igreja Ortodoxa Russa provavelmente vê a questão de forma diferente, mas é controlada pelo Kremlin.

Ou seja, Putin não parece querer promover valores cristãos, mas unir o máximo possível de aliados sob bandeiras com forte apelo conservador, como combate a políticas de gênero e a paradas gays.

Aliás, pintar inimigos e bandeiras imaginárias parece estar no manual de operações da Rússia. O aliado de Putin e líder da Chechênia Ramzan Kadyrov disse na semana passada que agora um dos objetivos da guerra é livrar a Ucrânia do satanismo. Isso soa tão irreal quando a propaganda russa que fez lavagem cerebral em seus soldados para acreditarem que estavam caçando nazistas na Ucrânia.

Em termos de respeito à propriedade, autoridades invasoras de Zaporizhzhia - uma das quatro províncias ucranianas parcialmente ocupadas pela Rússia - determinaram que bens e propriedades de ucranianos que tiverem sido abandonados serão entregues a russos.

Multilateralismo

Putin também acena para a direita conservadora do Sul Global com uma ideia de mundo multipolar - na qual Moscou se oporia à ordem mundial marcada pela hegemonia americana. Em outras palavras, ele tenta formar uma coalizão global anti-Ocidente.

“Eu estou convencido de que cedo ou tarde os novos centros da ordem mundial multipolar e o Ocidente terão que começar uma conversa entre iguais”, disse Putin.

A fala tem um poder incontestável. Mas o que isso realmente quer dizer? Países que ficam na periferia das decisões globais, como o Brasil, vão passar a ter voz, certo?

Não necessariamente, aliás, longe disso. Putin não está falando de igualdade entre países, está falando de seu desejo de restaurar o status de superpotência da Rússia - se possível retomando os territórios que formavam a Rússia czarista, imperial. Ele parece basear a política externa russa em sua própria interpretação da história.

O presidente russo publicou um ensaio no ano passado insinuando que a Rússia teria direito de proteger russos étnicos que vivem em países como Ucrânia, Moldávia, Polônia, Eslováquia, além de ex-repúblicas soviéticas da Ásia. Só para lembrar, a Segunda Guerra teve parte de sua gênese da mesma forma, com Hitler reivindicando o direito de mandar tropas para a Tchecoslováquia a fim de proteger alemães étnicos.

O leitor vê alguma relação dos dias de hoje com o Pacto de Munique de 1938 (quando Reino Unido, França e Itália entregaram uma parte da Tchecoslováquia para a Alemanha tentando evitar uma guerra)?

Bom, nesta semana vou me antecipar a um segmento de comentários sobre as análises de Jogos de Guerra. Algum leitor pode argumentar que o multipolarismo é uma reação à expansão “predatória” da OTAN (aliança militar ocidental).

Outro leitor, mais suscetível à propaganda russa, pode dizer que esse é o momento do Brasil se defender dos Estados Unidos se aliando a Moscou. Se esse leitor se identificar com a direita, vai falar em globalismo. Se for simpático à esquerda, usará o termo imperialismo. Essas são as palavras da moda para uma velha máxima que encanta governos populistas no mundo todo há anos: “Se tudo der errado aqui, vamos culpar a América”.

Aprecio essa eventual contestação e digo a esses leitores - a maioria companheiros de mais de um ano de debates nas caixas de comentários de Jogos de Guerra - que o objetivo desta análise não é comparar desmandos de Rússia e Estados Unidos.

Poderíamos fazer uma lista enorme de ações no mínimo moralmente questionáveis de Washington, como a segunda invasão do Iraque em busca de armas de destruição em massa, ou a imposição de eleições e cultura a dezenas de nações ao redor do mundo. Poderíamos debater inúmeras revoluções ou desestabilização de eleições provocadas pela Casa Branca e pelo Kremlin ao longo da história.

Mas o que ganharíamos ao recorrer ao niilismo e tentar justificar ações abomináveis de hoje com práticas tão questionáveis do passado?

A ideia desta coluna é analisar da forma mais pragmática possível o discurso e a propaganda de Putin. E também alertar especialmente o leitor conservador de direita para não cair no canto da sereia. A guerra também é de propaganda e nesse contexto sempre é saudável lembrar que quem recorreu à violência primeiro foi a Rússia, em 24 de fevereiro deste ano.

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