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Famílias da capital Porto Príncipe buscam refúgio após fugirem da violência dos bairros onde moravam
Famílias da capital Porto Príncipe buscam refúgio após fugirem da violência dos bairros onde moravam| Foto: EFE/Johnson Sabin

Uma nova onda de violência entre gangues no Haiti neste mês resultou na morte de aproximadamente 300 pessoas e deixou cerca de 160 feridas na megafavela de Citè Soleil, segundo a mídia local. Cinco anos após o fim da missão de paz da ONU, liderada militarmente pelo Brasil, o país teve um presidente assassinado, está com seu Parlamento inoperante, eleições atrasadas e já passou por pelo menos outras duas escaladas de violência como a atual.

Quando a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah) deixou o país, em 2017, três eleições e transições democráticas de poder presidencial consecutivas haviam sido realizadas com sucesso. O Legislativo funcionava dentro de padrões aceitáveis.

O sistema jurídico havia sido reestruturado e a Polícia Nacional do Haiti teve seu efetivo elevado de 2,5 mil para pouco mais de 14 mil agentes. Os principais líderes de gangues e movimentos revolucionários haviam sido presos, mortos em combate contra tropas da ONU ou fugido do país.

A missão durou 13 anos e custou às Nações Unidas aproximadamente US$ 7 bilhões. Mas, cerca de um ano após a saída do último capacete azul, o cenário da segurança no país começou a se degenerar.

“É possível fazer um paralelo com a retirada dos Estados Unidos do Afeganistão no ano passado. A diferença é que no Haiti não há conflitos motivados por religião e ideologia, e no Afeganistão estamos falando de gastos de trilhões e não bilhões de dólares”, disse o general da reserva Paul Cruz, ex-comandante da Minustah e consultor da ONU.

“Eu achei que a segurança no Haiti iria demorar mais tempo para se deteriorar, mas houve uma crise econômica e o fim, na prática, do PetroCaribe (aliança que permitia a compra de combustível subsidiado da Venezuela)”, afirmou o antropólogo Pedro Braum, que lidera as ações sociais do Viva Rio no Haiti há mais de uma década.

A ONG brasileira se estabeleceu no Haiti durante a Minustah e continua no país até hoje, liderando projetos de melhorias urbanas em favelas da capital haitiana.

Após a saída dos militares das Nações Unidas em 2017, dezenas de gangues começaram a se reestruturar e se organizaram em duas coalizões com conotação e objetivos políticos: a G9 (pró-governo) e a G-Pèp (pró-opositores).

Segundo Braum, policiais que haviam sido treinados com apoio da ONU passaram a se organizar em gangues similares às milícias que atuam no Rio de Janeiro. Esses grupos passaram a dominar favelas e bairros com o pretexto de protegê-los contra criminosos e começaram a extorquir pagamento de taxas de comerciantes, empresários e moradores.

Esse é o caso de um dos maiores líderes de gangue da atualidade, o ex-policial Jimmy Chèrizier, conhecido como “Barbecue”, chefe da coalizão ou “família” G9. Seu grupo entrou em choque no início deste mês com o bando G-Pèp, do criminoso Ti Gabriel, sucessor de Evens Jeune - criminoso cujo grupo foi desarticulado pelas tropas brasileiras durante a Minustah.

Os dois deflagraram um conflito armado pelo controle da favela de Citè Soleil, que resultou em centenas de mortos e feridos desde o último dia 8, segundo a mídia local. E não é a primeira vez que isso acontece. Segundo Braum, ocorreram ao menos dois outros episódios de explosão de violência semelhantes no Haiti desde o fim da missão da ONU.

Além das extorsões, as gangues realizam crimes como sequestros e roubos de carga. Mas elas também têm conexões com políticos do país. Negociam, por exemplo, o acesso a eleitores das regiões que controlam e organizam manifestações populares a pedido desses líderes políticos. Por isso, os grupos criminosos frequentemente entram em conflito para tentar ampliar seu controle territorial.

Durante as eleições, é relativamente comum que gangues sejam usadas por partidos políticos para atacar redutos de eleitores de partidos rivais ou incendiar centros eleitorais e urnas, segundo relata o general da reserva Ajax Porto Pinheiro em seu livro “No olho do furacão - de El Salvador ao Haiti, memórias de um Boina Azul” (Ed. Europa). Assista aqui a uma live com o último comandante da Minustah no Haiti:

Foi nesse contexto de política relacionada à violência armada que o presidente Jovenel Moïse foi assassinado por um bando de homens armados em julho de 2021. O principal suspeito é um senador haitiano que fazia oposição a Moïse.

Mas quais são os fatores que levaram a uma deterioração tão rápida da segurança no Haiti? Os analistas ouvidos por Jogos de Guerra levantaram questões estruturais.

Confusão política

O Haiti possui ao menos 40 diferentes partidos, que têm apresentado dificuldades para entrar em acordo e formar coalizões. Além disso, o país herdou da colonização francesa um complexo sistema administrativo. Pare se ter ideia, cada município é dirigido por três diferentes prefeitos e, no parlamentarismo haitiano, o premiê escolhido geralmente faz oposição ao presidente.

De acordo com Paul Cruz, uma legislação complexa, baseada em conceitos marxistas, também tem engessado o governo e dificultado a atração de investimentos internacionais.

Além disso, o uso da violência como ferramenta política não é novidade no Haiti. Desde a independência, em 1804, o país é palco de uma sucessão de golpes de Estado e crises políticas. Desde 1986 (fim da ditadura Duvalier no Haiti), apenas três presidentes conseguiram completar seus mandatos.

A ONU ainda mantém uma pequena missão política no país, o Escritório Integrado das Nações Unidas no Haiti (Binuh), que visa ajudar na estabilização do processo político e proteger os direitos humanos. Porém, ela tem efetivo limitado e não possui militares ou policiais.

Mas há ainda uma questão ética no debate sobre a ineficiência do sistema político haitiano: a ONU pode fornecer apoio, mas em tese não pode deliberar sobre o futuro e a organização política da nação. Qualquer tentativa nesse sentido seria uma forma de intervenção, semelhante a estabelecer um governo títere no país.

Justiça e polícia

A parte militar da Minustah, liderada pelo Brasil, tinha entre suas principais missões estabilizar o país lutando contra rebeldes e membros de gangues e garantir a realização de processos eleitorais.

Já o componente civil da missão (não gerido pelo Brasil) tinha entre suas metas reestruturar o Judiciário e a Polícia Nacional do Haiti - para que essas instituições reassumissem o papel de segurança que vinha sendo realizado pelas tropas internacionais.

Em 2014, o sistema judiciário operava sem um sistema de registros criminais ou protocolos de investigação. Também era usado como ferramenta política. Durante os 13 anos de missão, a ONU criou uma escola de magistrados e ajudou o Judiciário a adotar medidas de independência e combate à corrupção. Também enviou propostas de legislação ao Parlamento para a criação de protocolos e melhorias.

Na parte policial, a ONU trabalhava com a meta de contratar e treinar cerca de 14 mil policiais haitianos. Eles assumiriam as funções de polícia ostensiva e judiciária, guarda de fronteira e guarda costeira. Na época, o Haiti não tinha Forças Armadas.

Quando a missão foi encerrada pela ONU, essa meta tinha sido atingida. Porém, segundo Paul Cruz e Ajax Pinheiro, a qualidade dessa formação foi deficiente e fatores de progressão de carreira, logísticos e de manutenção de equipamentos comprados não foram levados em consideração de forma adequada.

Os dois analistas citaram como exemplos a criação de uma polícia portuária e a compra de carros de polícia. Lanchas e viaturas foram doadas por países como o Canadá e os Estados Unidos. Mas não foram criados protocolos de treinamento de pessoal, manutenção e substituição de peças e materiais.

Como consequência, antes mesmo do fim da Minustah, as lanchas canadenses estavam afundadas ou inutilizadas.

Os carros de polícia que sobraram rodavam de forma deteriorada pelas ruas das cidades haitianas. Mecânicos chegaram a ser formados, mas como não havia plano de carreira na polícia, eles acabaram indo para a iniciativa privada.

“O governo haitiano não continuou investindo na polícia. No final da missão, eu participei de uma patrulha com policiais haitianos e cada um tinha recebido só três cartuchos de munição. O que eles iam fazer se começasse um tiroteio?”, disse Ajax Pinheiro.

Ele foi o último comandante militar da Minustah e afirma ter alertado a ONU de que a polícia haitiana não estava totalmente pronta para assumir as funções de segurança. Mas analistas das Nações Unidas concluíram à época que a preparação era suficiente.

A missão foi encerrada em um contexto político em que a ONU precisava reduzir seu número de missões por questão de economia.

Já Braum afirmou que a missão foi sendo encerrada porque a agenda dos países que colaboraram com tropas era diferente da agenda da ONU. “Havia um cansaço, até por parte da sociedade haitiana. As bases militares foram desaparecendo da noite para o dia. Acho que a saída poderia ter sido mais estruturada”, afirmou.

O Brasil foi um dos últimos países a deixar o Haiti. Um contingente de policiais da ONU ainda ficou no país por mais dois anos em uma missão de suporte judiciário (Minusjusth).

“Os policiais haitianos até tiveram uma boa formação e o Estado haitiano fez muito esforço para manter o padrão”, afirmou Braum. Porém, o país foi acometido por uma série de crises econômicas e políticas que dificultaram a continuidade dos investimentos.

Segundo Paul Cruz, um modelo de reestruturação da polícia que teria potencial de ter funcionado melhor no Haiti foi o adotado durante o ano de 2018 no Rio de Janeiro, durante a Intervenção Federal.

Nele, a polícia carioca foi treinada e reequipada por forças federais. Mas o lado mais inovador foi a criação de planos para a continuidade do treinamento e a manutenção das armas e equipamentos policiais.

Sugestões de mudanças em planos de carreira e escalas de trabalho chegaram a ser enviadas para o Legislativo carioca, mas não foram implementadas.

Limitações do país

O Haiti também possui fatores geográficos e históricos que trazem dificuldade à manutenção da segurança e ao desenvolvimento.

O país não possui fontes de energia ou recursos minerais significativos. Apenas 2% de sua cobertura vegetal está intacta, o que dificulta a manutenção de nascentes e rios. Por isso, a captação de água para consumo e agricultura fica prejudicada. Com rios quase secos, também não é possível explorar totalmente o potencial da única usina hidrelétrica do país.

De acordo com Ajax Pinheiro, há ainda fatores históricos e populacionais. O desenvolvimento do país foi prejudicado pela política francesa, que cobrou uma indenização “impagável” decorrente do processo de independência. Os recursos naturais foram sendo então consumidos de forma predatória - como a madeira, usada para fazer fogo para cozinhar - e hoje não são suficientes para sustentar o crescimento da população.

“Não é sustentável nesse país uma família que ganha dois dólares por dia ter dez, 12 filhos, como é comum acontecer lá”, disse o general.

Os analistas ouvidos por Jogos de Guerra dizem que, apesar da situação de segurança deteriorada, é pouco provável que a ONU envie uma nova missão do tamanho da Minustah para o Haiti a curto prazo - a menos que a iniciativa seja costurada pelos Estados Unidos. Seria a sexta da história do Haiti.

Por ora, a ONU está mais voltada para ameaças de segurança no continente africano. Veja uma live sobre o futuro das missões de paz:

Segundo Paul Cruz, uma melhor solução seria ajustar a legislação haitiana para que o país possa receber investimentos em sua economia - para que a transformação da nação seja estrutural.

A localização do Haiti no Caribe vocaciona o país para uma economia de serviços, baseada em turismo e transportes. Por exemplo, a nação tem praias excelentes, mas o ramo hoteleiro não tem segurança jurídica para investir. Investimentos também poderiam ser feitos nos 14 portos haitianos, para que o país se transforme em um hub logístico, beneficiado pela proximidade com os Estados Unidos e o canal do Panamá.

Contudo, por ora, o Haiti parece estar preso em um ciclo vicioso de ondas de violência e crises políticas, intercalado por períodos de calmarias periódicas.

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