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Troca de comando desperta temor de “venezuelização” do Exército
| Foto: André Borges/EFE

Os militares da ativa decidiram não intervir nas instituições da República após a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). A cúpula das Forças Armadas segurou o ímpeto de oficiais, principalmente da reserva, que equivocadamente queriam uma intervenção militar baseada no artigo 147 da Constituição. Mas isso não foi reconhecido pelo governo Lula. A substituição do recém-nomeado comandante do Exército, Júlio César de Arruda, tornou muito difícil conter os ânimos e lidar com o descontentamento na caserna.

Os militares temem um possível processo de interferência política nas Forças Armadas, semelhante ao processo que ocorreu na Venezuela. Lá, o chavismo escolheu oficiais para a cúpula das Forças Armadas em troca de apoio armado à perpetuação indefinida do regime no poder. Esse não é o caso do substituto de Arruda, mas a troca precoce do comandante do Exército abriu a porta para temores sobre o futuro das Forças Armadas sob Lula.

A queda do comandante do Exército foi interpretada por militares como o resultado de uma guerra de narrativas. Enquanto os comandantes militares vinham assegurando a Lula que não há politização (pró-Jair Bolsonaro) na caserna, assessores do presidente criaram a imagem distorcida de que as Forças Armadas seriam uma ameaça para o governo.

Lula substituiu Arruda devido a uma suposta crise de confiança após os acampamentos e os atos de vandalismo na Praça dos Três Poderes no dia 8 de janeiro.

O ministro da Defesa José Múcio Monteiro afirmou que houve uma “fratura num nível de confiança” para justificar a exoneração. Múcio, que vem sofrendo críticas de alas mais radicais do PT, disse que a substituição foi um investimento para aproximar as Forças Armadas do presidente Lula.

Mas o efeito parece ter sido inverso. A tropa foi informada da demissão de seu comandante no início da tarde de sábado por um boletim jornalístico na TV (o que é considerado no mínimo deselegante). Arruda estava no cargo há menos de um mês. A tentativa do presidente de mostrar autoridade pegou muito mal e colocou em risco o processo de pacificação dos ânimos nos quartéis.

Assim como uma grande parcela da população, individualmente, muitos militares estão indignados com a lamentável normalização da candidatura de Lula, com os inquéritos ilegais e abusivos do Supremo Tribunal Federal e com a omissão do Congresso.

Institucionalmente, porém, as Forças Armadas nunca deixaram de agir como órgãos de Estado e reprovaram os atos de vandalismo praticados no dia 8 de janeiro.

Mesmo as motivações mais nobres não podem servir de justificativa para vandalismo ou interrupção do funcionamento das instituições.

Narrativa contra Arruda

Na semana passada, "aliados do Planalto” teriam dito a Lula que o general Arruda teria sido conivente com manifestantes que participavam de um acampamento em frente ao quartel general do Exército em Brasília, segundo o colunista Paulo Cappelli, do portal Metrópoles.

Esses assessores afirmaram que Arruda teria dado ordens para que suas tropas impedissem a polícia do Distrito Federal de prender manifestantes no acampamento após os atos de vandalismo do dia 8.

Mas essa era uma versão distorcida dos fatos. Militares disseram sob anonimato à coluna Jogos de Guerra que o Exército impediu que as prisões fossem realizadas no período noturno especificamente. O objetivo era evitar um confronto violento entre policiais e manifestantes. Havia mulheres e crianças no grupo. Pesou ainda na decisão o fato de que o comportamento de uma multidão é sempre imprevisível.

A operação policial aconteceu em uma área militar, a Praça dos Cristais. Por isso, o Exército tinha não só jurisdição, mas o dever de garantir a integridade física de todos os envolvidos. As detenções acabaram ocorrendo pela manhã do dia 9 de janeiro, pacificamente e com a colaboração do Exército.

Após os atos de vandalismo, a ordem do STF para o desmonte do acampamento em Brasília foi perfeitamente compreensível, correta e necessária. Mas a classificação dos manifestantes como “terroristas” não corresponde à realidade e só colabora para justificar uma repressão mais ampla contra qualquer um que manifeste seu desagrado com Lula ou com o Supremo.

Além disso, a “criminalização no atacado” feita pelo STF não se sustenta tecnicamente e foge ao bom senso.

Os rumores criados pelos assessores de Lula pareciam ter se dissipado. Na sexta-feira (20), um dia antes da demissão, o presidente se reuniu com Múcio, Arruda e com os comandantes da Marinha e da Aeronáutica. Após a reunião, Múcio disse em entrevista que não havia ligação entre o vandalismo e as Forças Armadas.

Lula havia dito dias depois dos eventos da Praça dos Três Poderes que suspeitava que policiais e militares haviam aberto as portas do Palácio do Planalto para a entrada dos manifestantes. Uma das hipóteses para a demissão de Arruda é que Lula não teria ficado satisfeito com as medidas do Exército em relação às suas suspeitas pessoais. Outra hipótese seria uma suposta recusa de Arruda de demitir um militar a pedido do PT.

Polêmica com oficiais da reserva

O general escolhido para substituir Arruda foi o então comandante militar do sudeste, Tomás Miguel Ribeiro Paiva. Ele participou da missão de paz da ONU no Haiti e das operações de Garantia da Lei e da Ordem nas favelas do Alemão e da Penha no Rio de Janeiro. É um militar de reputação inquestionável e dias atrás defendeu o respeito ao resultado das eleições.

O Presidente da República tem a prerrogativa de escolher o comandante do Exército. Lula havia escolhido Arruda seguindo a tradição da instituição, pela qual o oficial mais antigo deve ser o escolhido para o comando.

A escolha do general Tomás também está de acordo com o critério de antiguidade, que é muito prezado pelos militares.

Contudo, a escolha é considerada polêmica entre parte dos oficiais da reserva do Exército que estão descontentes com o fato de a instituição não ter acatado o pedido de manifestantes pela intervenção militar na política após a eleição de Lula. Parte deles lançou uma equivocada campanha de difamação contra diversos oficiais na esperança de incentivar uma intervenção.

Sem se identificar ou apresentar provas, eles afirmaram que Tomás seria partidário de Lula e por isso contrário a uma intervenção militar. Mas não há evidências de partidarismo no Alto Comando do Exército.

O suposto fator de ligação apontado pelos oficiais da reserva entre o general e o presidente seria a amizade de Tomás com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Ele cuidou da segurança da mulher do ex-presidente na década de 1990. Porém, nenhuma ligação direta entre Tomás e Lula ou o PT foi apresentada.

O que significa trilhar o caminho da Venezuela?

Militares ouvidos por Jogos de Guerra sob anonimato elencaram pontos que podem significar a interferência política do Partido dos Trabalhadores na estrutura das Forças Armadas.

Os principais fatores de interferência seriam: a intervenção política na promoção de oficiais graduados, a interferência nas missões constitucionais das Forças Armadas e a reestruturação das escolas militares para promover o revisionismo histórico.

Promoções

As escolhas dos militares que ocupam os postos mais altos da hierarquia do Exército, da Marinha e da Aeronáutica é feita hoje através de processos internos das três forças, baseados em critérios de antiguidade e meritocracia.

A princípio, o que o Executivo pode fazer é exatamente o que ocorreu no sábado com Arruda. A lógica da manobra havia sido descrita antes da demissão do general pelo professor Francisco Teixeira, da Universidade Federal do Rio de Janeiro em entrevista ao jornal "Valor".

“Militar é funcionário público que cumpre ordens, não representa nada, ninguém. Isso tem que ser estabelecido. E é fácil: é só mandar para a reserva e nomear generais mais jovens. A ideia de 'poder militar' é a fonte de todos os enganos”, disse Teixeira na entrevista.

Em 2021, Jair Bolsonaro trocou seu Ministro da Defesa e os três comandantes das Forças Armadas por falta de alinhamento com o governo. Mas ele acatou as indicações do Exército, da Marinha e da Aeronáutica ao escolher os substitutos.

O ex-presidente do PT, José Genoino, afirmou na sexta-feira (20) em uma entrevista ao canal DCM esperar que o governo Lula promova o que chamou de “aparelhamento democrático” por meio de reformas como a criação de uma nova Política Nacional de Defesa. Nela, por exemplo, a escolha dos comandantes seria feita não pelo critério de antiguidade, mas por sim pelo fato de o oficial aceitar a autoridade do presidente e da Constituição.

“Nos temos a chance de fazer as reformulações democráticas sobre o papel das Forças Armadas, da relação com o poder civil, produto da soberania popular. Mudar essa estrutura, como o Lula definiu, desse poder moderador, como eles [militares] acham que representam desde o período do Império até agora”, disse Genoino.

O receio na caserna agora é que o Partido dos Trabalhadores tente exercer influência sobre as Forças Armadas para favorecer a promoção de oficiais específicos – não necessariamente para o comando, mas para a cúpula das instituições, usando critérios políticos. Há ainda a possibilidade de surgimento de pressão política para enviar determinados militares para a reserva.

Tanto a destituição de um comandante quando eventuais pressões relacionadas a promoções podem ser encaradas como ataques à coesão das Forças Armadas.

Missão

José Genoino afirmou no passado ao canal Opera Mundi que gostaria de retirar das Forças Armadas a atribuição constitucional de atuar em crises relacionadas à segurança pública.

Isso ocorre hoje por meio das chamadas GLO (Operações de Garantia da Lei e da Ordem), previstas na Constituição e empregadas mais de 150 vezes desde 1988. A ideia dele é criar uma espécie de Guarda Nacional, supostamente em moldes diferentes da atual Força Nacional.

Os militares se dividem em relação às missões de GLO. Muitos as enxergam como uma fonte de problemas jurídicos. O ex-comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, defendeu em 2017 a aprovação de uma série de leis para proteger os militares de processos judiciais por mortes de civis em operações de segurança pública.

Há, porém, aqueles que dizem achar que a sociedade não pode ser privada de uma GLO em um cenário de calamidade só porque o governo não quer dar prestígio às Forças Armadas.

Os militares também questionam a viabilidade da criação de uma Guarda Nacional a partir de uma “canetada”. Isso porque se leva muitos anos para formar quadros para uma força dessa natureza.

A eventual participação brasileira em missões de paz da ONU, como a do Haiti (2004-13), também pode sofrer influência de atritos entre governo e Forças Armadas, segundo militares ouvidos pela coluna. Na opinião deles, assessores de Lula veriam esse tipo de missão como uma forma de prestigiar os militares que deveria ser evitada.

"O Brasil tem que se afastar dessas operações chamadas ‘humanitárias’. Primeiro porque elas funcionam como um laboratório de um conhecimento em garantia da lei e da ordem, que era lá, o Haiti era garantia da lei e da ordem, não tinha sentido. Segundo, porque você possibilita ao Brasil um intercâmbio com a inteligência americana (…) Repetir a operação do Haiti será um grande equívoco”, disse Genoino.

Educação e revisionismo histórico

Uma das bandeiras de teóricos e apoiadores de Lula que causam preocupação às Forças Armadas é a ideia de que as escolas de formação militar passem a ser comandadas por civis.

Essa visão da esquerda foi explicada pelo professor da Universidade Federal de São Carlos João Roberto Martins Filho em entrevista ao jornal "Valor" no último dia 18. Segundo ele, existe a possibilidade de se adotar modelos de gestão civil de escolas militares, como ocorre na Espanha ou na França. Porém, ele disse que esse é um objetivo que “ainda estamos longe de conseguir”.

As escolas militares são consideradas hoje um dos principais fatores de coesão das Forças Armadas. Elas fazem com que os oficiais que um dia chegarão aos postos mais altos da hierarquia militar convivam com seus pares desde os bancos escolares, recebendo uma educação unificada e completa.

Militares da ativa dizem que seria muito prejudicial às Forças Armadas se os currículos dessas escolas fossem modificados. Eles temem, por exemplo, um revisionismo histórico que tente reinterpretar para os jovens cadetes episódios históricos do país.

A preocupação está focada principalmente nos eventos históricos nos quais os militares intervieram ou tentaram intervir em crises políticas profundas do Brasil. A esquerda costuma associar tais eventos com o que repudia como “tutela militar” da política.

Alguns exemplos desses episódios vêm do período imperial, nas campanhas lideradas pelo marechal Luís Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias, na Balaiada (1838-1841), nas Revoltas Liberais de 1842 e na Revolução Farroupilha (1835-1841). Elas garantiram a integridade territorial do Brasil.

A própria República foi instaurada em 1889 por um movimento em parte militar, que instituiu o marechal Deodoro da Fonseca como primeiro presidente do Brasil.

Há ainda as convulsões do século 20, como as revoluções de 1922, 1924, a Intentona Comunista de 35 e, principalmente, o episódio que os militares e parte da população chamam de Revolução de 64 e que outra parcela da sociedade, composta por diversos espectros políticos, chama de Golpe de 64.

Despolitização do Exército?

A substituição precoce do comandante do Exército somada aos posicionamentos de Lula em relação às Forças Armadas nos primeiros dias de mandato soam para os militares como um discurso de despolitizar uma instituição que não tem politização nenhuma. Eles avaliam que o presidente está dando ouvidos a perigosas sugestões de assessores que, na melhor das hipóteses, pouco entendem de Forças Armadas.

Até agora, o Exército tem fornecido repetidas provas de que a espada de Caxias não tem partido e que a instituição tem capacidade de manter sua estabilidade e defender a legalidade, a democracia, as liberdades e a pátria.

Mas, depois do que ocorreu neste sábado, o que os comandantes dirão para apaziguar a indignação de suas tropas?

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