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Jornalista na Guerra da Ucrânia
Jornalista holandês cede seu kit de primeiros socorros para ajudar vítimas de um bombardeio russo em Kharkiv, Ucrânia. 26 de maio de 2022.| Foto: EFE / Esteban Biba

Nesta semana a Ucrânia mergulhou na escuridão - e essa frase não tem nada a ver com os ataques de mísseis russos à infraestrutura elétrica do país. O Parlamento e o Executivo aprovaram uma lei de regulação da imprensa que abre as portas para a censura no país.

Isso acontece em um cenário em que partidos de oposição ao governo de Volodymyr Zelensky já haviam sido colocados na clandestinidade desde o início da invasão russa, em fevereiro.

Partidos de esquerda não existem oficialmente há anos na Ucrânia. Aos leitores apressados, lembro que não se trata aqui de defender direita ou esquerda, mas de proteger a liberdade.

Na quinta-feira, 29 de dezembro, Zelensky ratificou uma lei que expande os poderes do Conselho Nacional de Rádio e Televisão. Na prática, o órgão regulador de mídia da Ucrânia vai passar a ter jurisdição sobre a imprensa escrita do país.

A lei também dá ao Estado o poder de aplicar multas, fechar temporariamente órgãos de imprensa sem processo judicial, revogar concessões de rádio e TV e solicitar às gigantes da tecnologia e das mídias sociais a remoção de conteúdo contrário ao governo.

A decisão lembra uma lei aprovada pelo presidente Vladimir Putin, no início do ano, segundo a qual qualquer comunicador ou cidadão pode ser preso por até 15 anos se divulgar opinião contrária à do regime. Isso inclui até chamar a guerra na Ucrânia de guerra — e não de operação militar especial, como determinou o Kremlin.

Um dos casos mais emblemáticos foi o do blogueiro Ilya Yashin, condenado a oito anos de prisão por “disseminar informações falsas sobre as forças armadas da Rússia”. Ele era um conhecido analista de conflitos e escrevia sobre a guerra, inclusive com visões pró-Moscou.

Porém, Yashin foi preso ao divulgar o que nós jornalistas chamamos no jargão de “outro lado”. Ele escreveu sobre os crimes de guerra praticados pela Rússia contra civis na cidade de Bucha, nos subúrbios de Kyiv.

A proposição e aprovação da lei de censura da imprensa ucraniana ocorreu em meio à elaboração de uma série de leis que visam proteger minorias e adaptar a legislação do país para a possível entrada na União Europeia.

Porém, os poderes concedidos ao Estado por essa lei extrapolam muito as exigências europeias sobre regulação da imprensa, segundo analistas ucranianos. Em julho, quando o assunto já começava a ser discutido, a Federação Europeia de Jornalismo pediu que a Ucrânia abandonasse o projeto de lei. Para a entidade, a lei é coercitiva e está de acordo com “os piores regimes autoritários”.

Publiquei a notícia da censura ucraniana na última sexta-feira em minha conta no Twitter e recebi uma série de críticas, tanto de leitores partidários da Ucrânia como da Rússia.

O resumo dos comentários é: na guerra valeria tudo…

Mas, não vale. Os fins não justificam os meios. “Morrer no combate não é uma desonra, mas abrir mão da liberdade é” — respondi.

Leitores mais pacifistas podem pensar que estou radicalizando, ou que meses no conflito afetaram meu julgamento. Dessa vez escrevo da segurança de terras brasileiras.

Mas esse assunto é maior que a questão da imprensa. Estamos tratando de liberdade.

Vi diversos combatentes e voluntários de praticamente todo o Ocidente correrem para a Ucrânia para defender ideias de liberdade, contra o autoritarismo russo. É claro que houve quem viajou para ganhar dinheiro, mas esses se frustraram — pois a Ucrânia nem pagou a totalidade dos salários que prometeu (isso merece uma coluna à parte, no futuro).

Essa visão da guerra resume o que parece ser o principal motivo da ajuda ocidental aos ucranianos, tanto de indivíduos como de Estados: a luta para preservar uma democracia do avanço do autoritarismo russo por meio da anexação territorial.

É certo que a indústria bélica e potências como os Estados Unidos lucram muito com a guerra. Mas, o cenário é muito diferente de guerras passadas, injustificáveis do ponto de vista moral, como a busca por armas de destruição em massa que justificou a invasão do Iraque. Ou inúmeras aventuras ocidentais para impor eleições a países com histórias e culturas muito diferentes.

Assim, se a Ucrânia começa a se parecer cada vez mais com a Rússia, por que manter o apoio ao governo ucraniano?

Logo no início da invasão, no centro de imprensa de Lviv, questionei diversas autoridades ucranianas sobre a contradição entre democracia e lei marcial (que possibilitou o banimento de partidos de oposição afirmando que eles eram pró-Rússia). A resposta padrão era que a democracia ucraniana é forte o bastante para ser retomada plenamente após a guerra. Agora, a questão seria de sobrevivência.

Realmente espero que isso seja verdade e não mais um episódio da guerra de propaganda. Isso porque devemos proteger a cultura democrática, segundo a qual mesmo as melhores ideias não podem ser impostas pela força. A democracia é o melhor sistema, mas não é um sistema fácil.

Obviamente, viver em um país em tempos de guerra tem particularidades. Vivenciei uma caça aos russos neste ano na Ucrânia. Mas não era só uma questão de vingança: havia espiões em território ucraniano “iluminando alvos” (usando aparelhos eletrônicos para calibrar os bombardeios do Kremlin) e passando informações sobre resultados de ataques para Moscou. Fui parar diversas vezes nas mãos da polícia sob essa suspeita.

Por vezes, agentes de inteligência se disfarçam de jornalistas para ter acesso a pessoas e informações estratégicas no governo em guerra. Não era o meu caso, mas como diferenciar? Por isso, não tenho rancor das detenções pelas quais passei.

As próprias transmissões ao vivo de ataques são proibidas pela lei marcial ucraniana. Isso porque a Rússia assiste televisão para ter ideia do estrago que seu último ataque causou. Ao proibir as transmissões, a Ucrânia acreditava dificultar o trabalho da inteligência russa.

Contudo, mesmo durante uma guerra, a ação do Estado precisa ter limites. Excluídas as exceções táticas que mencionei acima, a liberdade de expressão deve ser preservada a qualquer custo. Mesmo um governo enfrentando uma questão de vida ou morte deve ser submetido ao escrutínio da imprensa. Tanto acertos como erros devem ser apontados.

A popularidade do governo de Zelensky é inegável dentro da Ucrânia — a ponto de causar até apreensão. E ela tem fundamento: o presidente não abandonou o país quando a vitória russa parecia inevitável.

O serviço de inteligência ucraniano vem pedindo aos críticos do governo uma “moratória de críticas” durante a guerra. Esse acordo vinha sendo respeitado sem a necessidade do peso da lei.

Então, por que o endurecimento do regime agora? O que será das eleições ucranianas, previstas para 2024, sem liberdade de imprensa e sem partidos de oposição? Por ora é difícil prever. Não se sabe nem mesmo até quando vai a guerra e em quais circunstâncias ela terminará.

A essa altura do texto, o leitor de Jogos de Guerra já deve ter feito um paralelo com a realidade brasileira.

Há diferenças fundamentais: o Brasil não está sendo invadido por um exército estrangeiro, não houve dezenas de milhares de mortes em ataques e bombardeios, não há ondas de refugiados deixando o território para escapar dos combates e do frio. Não, não é a mesma coisa, caro leitor. A guerra não é aqui, o Brasil tem aflições, mas não está em guerra.

Porém devemos admitir que o país vive uma onda sem precedentes de insegurança jurídica, onde a liberdade de expressão é atacada e cerceada diariamente por meio da ação de magistrados. Enquanto escrevia esta coluna recebi uma mensagem do coronel da reserva Fernando Montenegro, colaborador frequente de nossas lives de Jogos de Guerra às terças-feiras no YouTube. Sua conta na rede social Twitter foi desativada por determinação do Tribunal Superior Eleitoral.

O que aconteceu com Montenegro é apenas um exemplo em meio a dezenas de casos similares no Brasil. Pessoalmente, eu não acompanhava de perto a conta dele na mídia social. Também discordo de muitas coisas defendidas por Montenegro (concordo com certos pontos, isso é normal em qualquer debate). Mas ele tem o direito de se expressar e argumentar, independentemente de suas opiniões.

O leitor, telespectador, cidadão, tem o maior poder de todos: a liberdade de mudar de canal se não gostar de um conteúdo. Nenhuma “Big Tech”, servidor, órgão público ou poder constituído tem o direito de tutelar essa liberdade, sob nenhum argumento.

Quando isso começa a acontecer, nós brasileiros também nos aproximamos do abominável modelo da Rússia autoritária. O governo que assume nesta semana no Brasil não traz perspectivas de avanços positivos neste campo, muito pelo contrário. Mas espero estar errado.

Quando eu ainda estava na Ucrânia, me lembro de uma conversa com o editor-chefe do jornal ucraniano Odesa Daily, Leonid Shtekel. Ele queria defender seu país da invasão russa e dizia entender a necessidade de regulação da mídia por causa da guerra. Mas admitia, no fundo, seu temor: "a nova lei de imprensa no país é muito nociva à liberdade". Conversamos em novembro, antes da aprovação da lei, e ele dizia: “isso não vai ser aprovado, não é possível, ainda somos uma democracia”.

Como jornalista brasileiro, espero não vivenciar aqui no meu país nos próximos anos o que aconteceu com Shtekel na Ucrânia.

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