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“Natureza” para além do senso comum
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Queria começar por um agradecimento especial a você, leitor que me acompanha. Recebo uma lição visível semanal: comentários quase sempre diretos, muitos claramente posicionados contra ou a favor. Leio ambos com igual respeito. E compreendo rapidamente e com total clareza a temperatura do que escrevi para os que têm a gentileza de gastar seu tempo registrando os resultados da leitura.

Esta resposta pronta é ainda mais direta que a mais próxima experiência de feed back que conhecera anteriormente, nos tempos em que comentava ao vivo no jornal de uma rede nacional de rádio. Ainda assim havia mais barreiras: para chegar até mim era preciso passar pelo filtro do telefone ou da leitura de um e-mail. Agora a coisa é direta: cada um expõe e edita sua opinião. Assim se forma um conjunto que tem texto e ideias sobre ele.

Aprendo revendo o conjunto. Com ele tento melhorar, fazendo o que faço agora. Duas semanas atrás empreguei o termo “Bíblia” num título. Fiz isso pensando num contexto muito específico, aquele dos séculos 16 e 17. Neste tempo a interpretação dominante na cultura ocidental era a de que o texto sagrado fundava a razão (ou seja, servia de marco para separar homens racionais dos irracionais).

Quem leu o texto da última semana pode perceber que este contexto mudou no século 18, com o pensamento iluminista impondo a crença de que todo ser humano é igualmente dotado de razão e por isso merecedor da fruição de direitos.

Mas os comentários me levaram a perceber que talvez não tenha sido claro o suficiente sobre os limites temporais da avaliação que estava fazendo. Sem eles poderia parecer que, no lugar de tentar mostrar o pensamento de um tempo, eu estaria defendendo posições sobre religião.

Longe de mim ter a pretensão de fazer afirmações sobre fé. Não tendo formação em Teologia nem muito menos a capacidade de orientar qualquer pessoa sobre as palavras sagradas. Que dirá então daquela de emitir qualquer espécie de julgamento sobre elas.

Mas leio e releio o livro há mais de cinquenta anos, sem nunca me sentir capacitado a mais do que continuar lendo e buscando. Tenho respeito absoluto por cada palavra que ouço dos fieis, seja aquelas vindas de quem sente em si mesmo a capacidade de interpretar publicamente quanto dos que falam em privado visões do coração.

Sabia que estava tocando num ponto delicado. Mas precisava. Queria apenas indicar, mostrando na História (e não na Teologia) que o termo “natureza” tem mais uma dimensão de significados. Também procurava enquadrar a apresentação no contexto histórico brasileiro, mostrando que a crença dominante ocidental, o cristianismo, viveu momentos que tiveram significado cultural ao se confrontar com as crenças dos nativos da América. Tudo isso num texto em que buscava dar ênfase à noção de “natureza”.

Ainda que dentro desse contexto que imaginava estar bem delimitado, tentei tomar o máximo cuidado. Sei que este registro de interpretações teológicas toca, para além da fé, numa das sensações que nos é mais cara, a do conforto. Por isso começo com cuidado. Exponho o caso pessoal relativo à noção de “natureza”.

Por muitas e muitas décadas de minha vida jamais precisei perder um segundo para tentar definir “natureza”. Crescido parcialmente numa fazenda, amante das caminhadas pelas matas, pessoa que se aninha nesta situação, era quase sinônimo de bem estar. Noção de senso comum, inteiramente separada de qualquer problema, me parecia pacífica e inteligível para qualquer um.

Para minha muita tristeza, este conforto idílico vivido no universo das sensações teve de ser progressivamente abandonado. Isso aconteceu a partir de alertas vindos inicialmente de meus filhos. Quando os levava a cenários ainda intocados pelo homem, tive respostas que me surpreenderam.

Por mais que quisessem se permitir as mesmas sensações, nunca deixaram de me alertar para o fato de que tal paz provocava também um sentimento menos positivo. Para eles, a realidade que meus sentidos identificavam como positiva, trazia outra coisa: agonia. Medo de tudo acabar pela ação humana. O que era aceito como senso comum virou problema.

Assim perdi meu estado de inocência e fui ler e reler. Sair do senso comum para pensar pela consciência. Em diversas dimensões. Como já estava na maturidade, fui apenas tentando compreender as diversas visões que me surgiam. Muitas delas foram divididas com os leitores. Revendo os textos já publicados, agora pensando em tentar ajudar os leitores que me alertaram na quinzena passada, faço aqui um sumário desta diversidade, selecionando trechos de textos já publicados.

Começo pelo mais difícil para mim, que é exatamente o terreno da religião. Apresentarei duas concepções totalmente opostas de entendimento do tema “natureza” na cristandade. Sou obrigado a dar as fontes. Mas antes que o leitor comece, peço que respire e pense.

As interpretações exatamente contrárias a estas que virão a seguir podem ser encontradas com sinais trocados em relação aos que aparecerão em seguida: católicos que odeiam a natureza como pecado e protestantes que escrevem textos ecológicos maravilhosos.

Por que então citar? Pelo único e razoável motivo de que são duas expressões teológicas claras e diretas sobre duas percepções fundamentais. Primeira: como o cristão deve considerar o lugar da natureza? Segunda: como deve se portar com relação às sensações que recebe da natureza?

A primeira visão é a publicada em “A Santa Natureza”. Bastante recente, o argumento foi desenvolvido pelo papa Francisco na encíclica ‘Laudato si’:

“A maior parte dos habitantes do planeta se declaram como pessoas que acreditam; por isso as diversas religiões devem entrar em diálogo entre si, orientado para o cuidado com a natureza, a construção de redes de respeito e fraternidade.”

A identificação de “natureza” com “cuidado”, “respeito” e “fraternidade” seria fundada no modo como São Francisco de Assis interpretava as sensações passadas pela Terra:

“Em seus cânticos ele nos recordava que nossa casa comum é também como uma irmã com quem compartilhamos a existência, como uma terna mãe que nos acolhe em seus braços: ‘Louvado sejas, Senhor, por nossa irmã a mãe terra, que nos sustenta, governa e produz frutos diversos, flores coloridas e folhagens suaves’.”

A versão teológica oposta que citei é do século 16 – um tempo em que a Inquisição não se dedicava exatamente à construção de redes de respeito e fraternidade. Foi publicada na coluna “Os três paraísos”. Nela, João Calvino identifica a natureza como corrompida pela queda de Adão:

“Dado que, em vista de sua culpa, afluíra de baixo ao alto e de alto a baixo a maldição que grassa por todos os recantos do mundo, não seria estranho que fosse propagada por toda sua descendência. (…) Tal corrupção é hereditária e os antigos a chamam de pecado original, entendendo pela palavra ‘pecado’ a depravação da natureza, até então pura e boa”.

Calvino emprega uma citação do apóstolo Paulo para mostrar como esta relação deve governar as sensações entre o cristão e a natureza:

“A carne é tudo o que temos desde a natureza. (…) Paulo, ao nos descrever o velho homem, diz que ele estava corrompido pela concupiscência do erro, e convida-nos à renovação de nossa mente pelo espírito. Vê que ele não sustenta cupidezes ilícitas e depravadas apenas na parte sensitiva, mas na própria mente, e por isso exige sua renovação”.

Repito: não tenho a menor capacidade para julgar o texto sagrado. Acrescento: também não acho que as citações sirvam para sustentar qualquer julgamento sobre os teólogos que escrevem a partir dele. Apenas justapus tais palavras de dois grandes intérpretes para que o leitor possa perceber que não é fácil, nem mesmo para teólogos de monta, chegarem a uma interpretação unânime sobre um tema a partir da leitura do livro.

Reconheço em ambos os trechos um sentido de profundidade, uma vivência significativa. Tal valor deriva do fato de que ambos reconhecem o mesmo texto como sagrado, divergindo apenas em interpretação. Também reconheço a integridade deste ato em ambos, que pensam na totalidade da vida humana, sem escamotearem sua responsabilidade de indicar um caminho para separar o bem do mal, pensando em “natureza” como critério.

Frente a isso, tento deixar claro: minha posição anterior, aquela de imaginar uma noção universal de senso comum para “natureza”, se mostra agora, comparada a qualquer das duas interpretações, como apenas ingênua. A possibilidade de fundar nela uma posição universal, um valor capaz de mobilizar pessoas para levar em consideração noções como aquelas de meus filhos, mostra-se assim muito limitada.

A situação não melhorou quando fui buscar fundamentos em certas áreas especializadas. Quando entramos na esfera da economia, por exemplo, surgem inesperadas similitudes no modo de pensar “natureza”. Adam Smith tinha a seguinte concepção (mostrada em maior detalhe nos textos que a ele dediquei nesta coluna):

“A divisão do trabalho é a consequência necessária, embora muito lenta e gradual, de uma certa tendência ou propensão existente na natureza humana que não tem em vista esta utilidade extensa: a propensão a intercambiar, permutar ou trocar uma coisa pela outra. Não é nossa tarefa investigar aqui se esta propensão é simplesmente um dos princípios originais da natureza humana, sobre a qual nada mais restaria a dizer ou se – como parece mais provável – é uma consequência necessária das faculdades de raciocinar e falar. De qualquer maneira, esta propensão encontra-se em todos os homens, não se encontrando em nenhuma outra raça de animais, que não parecem conhecer nem esta nem qualquer outra espécie de contratos.”

Para o iluminista Adam Smith, a natureza teria criado homens iguais – e iguais por sua propensão natural para trocar objetos entre si. Por isso ele investiga a “natureza humana”, aqueles que raciocinam e falam. A “natureza” para além do homem aparece apenas como o vasto campo de matérias extraídas pelo trabalho, não tendo valor algum – o que nos leva diretamente a Karl Marx (também rememorado em várias colunas), que dizia:

“A terra em geral, bem como todas as forças naturais, não têm um valor, porque não representam nenhum trabalho materializado nelas”.

Sem ter qualquer sentido econômico, “natureza” seria apenas um objeto a ser moldado pela racionalidade produtiva de homens “livres” de seus encantos:

“A liberdade só pode consistir em que o homem socializado, ou os produtores associados, regulem racionalmente o intercâmbio de matérias com a natureza, e o coloquem sob seu controle comum em vez de deixar-se dominar por ele como um poder cego, e façam isso com o menor gasto possível de forças e nas condições mais adequadas e dignas de sua natureza humana.”

Tanto para Adam Smith como para Karl Marx a “natureza” é definida como oposto ao “valor”. A primeira seria externa à atividade econômica, alheia à produção. O segundo seria puramente resultado do trabalho.

Caso o leitor compare qualquer uma das duas visões teológicas com esta unanimidade econômica, poderá perceber uma diferença: nas primeiras há diferenças de sinais no entendimento do que seria virtude ou vício. Nestas visões econômicas não há moralidade senão entre os produtores – a questão simplesmente não se coloca quando o objeto do entendimento é a produção social, para a qual “natureza” simplesmente “não tem valor”.

O regime da liberdade, para Marx, seria o da extensão do mundo racional dos contratos entre seres livres por sobre o domínio irracional do mercado. Mais contratualista ainda que Adam Smith, com que partilhava completamente sua noção de “natureza”. Assim, no caso da economia, a atribuição de valor a “natureza” exige uma ruptura de monta com o pensamento iluminista. Citei na coluna “O Canto da Sereia”, uma crítica de Theodor Adorno tanto a Adam Smith e Marx:

“Os homens sempre escolheram entre a submissão à natureza ou a submissão da natureza e eles. Com a expansão da economia de mercado burguesa, o que era o antigo horizonte obscuro do mito foi iluminado pelo sol da razão formal, do cálculo, sob cujos raios gélidos germinam os brotos de uma nova barbárie”.

No lugar da grande liberdade prevista por Marx com o controle racional das trocas com a natureza, Adorno sugere que as trocas aumentadas sem limite pela capacidade humana de ampliar cada vez mais a produção estão gerando uma nova barbárie. É uma sugestão próxima ao sentimento de meus filhos – mas eventualmente indicativa de que um teólogo está mais próximo desta percepção que um economista ilustrado.

O problema não aparece da mesma forma quando visto da óptica da ciência política. Em textos recentes trouxe modos opostos de pensar “estado de natureza”. Thomas Hobbes, citado na coluna da semana retrasada, dizia dele:

“Quando não existe um poder comum capaz de manter os homens numa atitude de respeito, temos a condição do que denominamos guerra; uma guerra de todos contra todos. (…) Alguém pode pensar que não existiu um tempo ou condição de guerra semelhante; entretanto há lugares em que o modo de vida é esse. Os povos selvagens de vários lugares da América, com exceção de pequenos grupos cuja concórdia depende da concupiscência natural, não possuem um governo geral e vivem, em nossos dias, na forma embrutecida acima referida”.

Já Rousseau, citado na semana passada, dizia do mesmo “estado de natureza”:

“A maioria de nossos males é obra nossa e teríamos evitado quase todos se tivéssemos conservado a maneira simples, uniforme e solitária de viver prescrita pela natureza. Se ela nos destinou a sermos sãos, ouso quase assegurar que o estado de reflexão é um estado contrário à natureza e que o homem que medita é um animal depravado”.

Aqui existe uma combinação de “natureza” como fundamento tanto da lógica do sistema de poder quanto do valor moral – e visões opostas tanto da avaliação da soberania popular quanto da virtude e do vício. Também, ao modo dos exemplos religiosos, “natureza” é parte essencial da construção.

Enfim, este pequeno inventário de grandes pensadores afirmando noções contraditórias sobre o que vem a ser “natureza” mostra que não é nada fácil passar do senso comum onde a noção esteve para mim por muitos anos para a consciência. Juntei essas visões para que talvez você, caro leitor, possa me ajudar a encontrar um caminho pelo qual consiga dar este passo adiante. Desde já peço desculpas por possíveis más formulações e agradeço pelo comentário eventual.

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