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A Negra, de Tarsila do Amaral (1923) -  
(Imagem: Reprodução)
A Negra, de Tarsila do Amaral (1923) - (Imagem: Reprodução)| Foto:

Em algum momento de 1923, em Paris, aconteceu uma virada. Tarsila do Amaral começou na pintura pelo caminho acadêmico tradicional: fazer cópias, desenhar objetos fixos, passar para paisagens, desenhar pessoas e seres em movimento. Reproduzir o que está fora. O apelo às lembranças da infância foram importantes para uma mudança no traço. As linhas ficam mais firmes, sintéticas. Os planos não seguem mais a perspectiva tradicional. E veio o dia.

Primeiro um esboço em grafite. Logo em seguida algumas versões em nanquim, com as linhas mais precisas e uma forma que se assenta em torno de um grande seio. Era um retrato que começava, mas não os retratos de pessoas assentadas na frente da artista para os quais fora treinada a fazer. Tampouco se tratava de alguém que conhecera pessoalmente.

Mas tinha história, assim relembrada pela própria Tarsila: as empregadas negras da fazenda contavam, quando era pequena, casos terríveis dos tempos da escravidão. Mães obrigadas a trabalhar na enxada com filhos pequenos amarrariam pedras aos seios para alonga-los e assim poderem amamentar os filhos presos por panos às costas enquanto labutavam.

Notem: a menina não viu a cena, não conheceu modelos. A artista madura que ia dando forma à tela em 1923 transformava o imaginário em objeto de um quadro a óleo. O modo como fez isso foi peculiar. Um fundo chapado, composto por linhas geométricas abstratas e uma folha de bananeira estilizada. Contra ele, a figura da negra, figura nascida da imaginação interna, onírica – antes do surgimento do surrealismo, que seria lançado logo depois. Vera Pugliese escreveu sobre a construção inusitada:

“É quase inadmissível e insuportável a figura centralizada num primeiro plano destacado do fundo, que ocupa grande parte do plano pictórico, de uma mulher numa pose deselegante segundo os padrões acadêmicos do nu feminino. Ela não está reclinada, nem aparece numa pose lânguida, sensual, permissiva, nem disfarça o olhar para que não nos sintamos invasores de sua intimidade e nem invadidos em nosso olhar voyeurista. Ela está nua, mas não se encaixa em nem um padrão de intimidade postulado pela tradição, nem tampouco em signo de impudência graciosa. No plano de conteúdo da obra, já verificamos que a Negra não pratica nenhuma ação a não ser olhar para nós. Ela não é prostituta – nem feliz nem triste –, não exerce nenhum trabalho braçal como escrava ou camponesa, assim como não é uma nativa ou caipira descansando. Não é musa, vênus ou ninfeta, não é santa ou socialite. Num primeiro momento, ela ainda não parece ser arquitexto de nada, pois não é fácil encontrar algum gênero que ela possa estar citando enquanto nos vê. A Negra está. Ela simplesmente está”.

Pela descrição fica difícil saber quem vê quem: se a observadora do quadro ou a observadora no quadro. Há uma fusão, uma identidade. E não deixa de ser curioso o método da escrita. Chega-se à conclusão com a progressiva eliminação, com a recusa de sucessivas hipóteses sobre quem seria A Negra: não, está reclinada, não é … – até chegar ao “arquitexto do nada”. Então se afirma um ser que é sujeito sem predicado, um ser que “simplesmente está”.

A sensação despertada pelo quadro leva a um universo que sugere algo para além das referências a Freud feitas na semana passada, ou seja, para além do inconsciente definido em termos da repressão pela consciência de pulsões de natureza sexual e sua reelaboração quando as barreiras são vencidas. Tarsila do Amaral viveu esta ruptura – mas arrancou de dentro de suas lembranças uma imagem que ia além dela. Para entender a diferença, talvez seja apropriado empregar as definições que Carl Jung fez para uma esfera do inconsciente:

“Existe um segundo sistema psíquico, de caráter coletivo, para além de nosso consciente e do inconsciente pessoal. O inconsciente coletivo não se desenvolve individualmente, mas é herdado. Ele consiste de formas preexistentes, arquétipos, que só secundariamente podem tornar-se conscientes”.

A afirmação desta camada mais profunda do inconsciente foi o motivo central das divergências que afastaram os dois grandes desenvolvedores da moderna psicologia. Jung resumiu a diferença da seguinte forma:

“A psicologia médica insiste na natureza pessoal da psique. Refiro-me principalmente às concepções de Freud e Adler. Trata-se da psicologia da pessoa e seus fatores etiológicos e causais são considerados quase sempre pessoais por sua natureza. Para isso se baseia em afirmar certos fatores biológicos universais, como o instinto sexual ou a necessidade de afirmação como causas. É forçada a isso porque se pretende uma ciência capaz de explicar. Entretanto os instintos são fatores impessoais, universalmente difundidos e hereditários, de caráter mobilizador. (…) Além disso não são vagos e indeterminados, mas forças motrizes especificamente formadas, que perseguem metas imanentes antes de toda consciência e independentes do grau de consciência. Por isso eles são analogias rigorosas dos arquétipos, tão rigorosas que há boas razões para supormos que os arquétipos sejam imagens inconscientes dos próprios instintos; em outras palavras, representam o modelo básico do comportamento instintivo”.

Essas citações de “Os arquétipos e o inconsciente coletivo” mostram uma diferença com relação à definição de Freud mostrada na semana passada, segundo a qual a linguagem do inconsciente, especialmente a do sonho, é “arcaica e regressiva”. A afirmação de um inconsciente coletivo permite a identificação da linguagem de expressão nobre, capaz de falar muito através de símbolos:

“O símbolo é sempre um produto de natureza altamente complexa, pois se compõe de dados de todas as funções psíquicas. Não é de natureza racional nem irracional. Possui um lado que fala à razão e outro inacessível à razão, pois não se constitui apenas com dados racionais mas também com dados irracionais fornecidos pela percepção. A carga de pressentimento e de significado afeta tanto o pensamento quanto o sentimento e, quando apresentada de modo perceptível aos sentidos, toca à intuição e a sensação. O símbolo vivo não pode surgir num espírito obtuso e pouco desenvolvido, que sempre se contenta com os símbolos oferecidos pela tradição”.

O texto de Vera Pugliese mostrado acima mostra um modo de descrever o pressentido, a soma de dados racionais e irracionais, os muitos pontos em que “A Negra” toca pensamento, sentimento, intuição e sensação. Sem esgotar seu sentido de símbolo, sem apresentar algo que já está morto e faz parte da tradição. Fala de uma obra que olha e impressiona.

Esta reação aconteceu desde o primeiro momento. Uma das primeiras pessoas a ver o quadro foi o grande pintor Fernand Léger, em cuja atelier Tarsila do Amaral estava estudando. A reação dele ao olhar o quadro foi a de chamar todos os alunos e amigos para verem também o que já dizia ser “uma obra de arte excepcional”.

Com reações como esta ao longo do tempo o quadro foi tocando sensações e despertando noções simbólicas. Em 2002 mereceu o seguinte comentário de Maria Alice Milliet:

“Para se entender o mítico em Tarsila há uma obra-chave: ‘A Negra’. O quadro antecede à fase pau-brasil, prenunciando o movimento antropofágico que Oswald de Andrade lançaria em 1928. Essa antevisão irrompeu solitária, ousadamente heterodoxa se confrontada aos ensinamentos formais de Andre Lhote e Gleizers, e à poderosa influência de Léger. A sexualidade ostensiva desta figura feminina, sua impávida, monumental e solene presença sobrepuja a lógica cubista e nos remete simultaneamente ao mito primitivo do matriarcado (referência etnográfica) e à herança brasileira da mãe preta (referência histórica)”.

As referências à fase pau brasil e o movimento antropofágico já remetem ao que aconteceu imediatamente em seguida à conclusão do quadro e a viagem ao Brasil. Começando pelo mais importante, Tarsila do Amaral era quase outra artista. Seus cadernos de desenho podem ser divididos num antes e num depois de “A Negra”. O traço firme e sintético, a busca de detalhes muito claros daquilo que para ela agora significava “Brasil caipira” em arte. Nas telas fixa-se o estilo das imagens de forte efeito simbólico, colocadas contra um fundo que é mais abstração que perspectiva. Uma paleta de cores muito pessoal, com azuis, rosas (até hoje as cores do gosto popular brasileiro e ainda hoje consideradas combinação de mau gosto) e o verde das matas dominando.

Do ponto de vista pessoal passou a ser a figura central, a inspiradora de um grupo, a abridora de caminhos. Atrás dela foram os viajantes de 1924 em busca de um Brasil “ainda não estragado pelas academias”. Para todos foi uma viagem de revelações. Blaise Cendras criou um livro de poemas intitulado “Feullies de Route” – com um dos desenhos preparatórios de “A Negra” na capa. Oswald de Andrade publicou o manifesto pau brasil, uma longa defesa da opção de fundar o conhecimento elevado e a arte na cultura popular já existente. Mario de Andrade abandona a Pauliceia conhecida e vai atrás do material para ver o país de dentro para fora – “Macunaíma” sai em 1926.

Enquanto a linguagem que dependia de consciência e pensamento engatinhava em torno de “Brasil”, os pincéis de Tarsila do Amaral iam produzindo uma obra própria e pessoal, firme e segura. Tinha pouco a ver com os tempos acadêmicos, alguma coisa a ver com os mestres modernistas – e tudo a ver com uma peculiar mistura entre um passado pessoal e algo que identificamos até hoje como da cultura popular brasileira.

Mas note-se: não era ela mesma arte popular, mas uma expressão pessoal de algo coletivo relevante. Este “algo” podia ser desde um anjinho de procissão até uma figuração da Cuca ou uma construção sobre o carnaval de Madureira. Para empregar a ideia jungiana apresentada acima, “A Negra” eventualmente pode ser vista como uma revelação arquetípica, um recado saído do inconsciente coletivo, um símbolo que, depois de mudar a artista, muda o olhar de quem olha.

E Tarsila do Amaral soube seguir o recado vindo de si mesma. Construiu um universo que parece brasileiro a todo brasileiro que vê as telas – mas que foi conquistando mundo com sua força inconsciente.

Entre as muitas conquistas dessas visões, uma das mais importantes foi a elaboração de seu amado, Oswald de Andrade. Bem a seu modo entusiasmado, ele foi tentando traduzir em ideias conscientes o fluxo das experiências que tinha ao lado de Tarsila. Uma dessas traduções ficou muito famosa: a elaboração do “Manifesto Antropofágico” a partir da figura do Abaporu, outro quadro famoso de Tarsila.

Não era uma elaboração fácil. Até o século 20, talvez o texto de Montaigne sobre antropofagia – mostrado na coluna intitulada “Os Três Paraísos” – tenha sido a única visão na linguagem escrita ocidental a mostrar como positivo o valor moral da encarnação explícita na vida espiritual.

Toda a valoração moral existente na documentação histórica brasileira é aquela da condenação do ato, seja por católicos ou protestantes. O horror à ideia de que comemos também para alimentar o espírito de natureza, que temos o mesmo estatuto anímico dos animais ou estamos no mesmo plano espiritual das plantas e dos minerais é a marca da visão ocidental sobre o Brasil em formação.

Assim como Tarsila do Amaral pulou a barreira da academia para procurar um Brasil ainda não corrompido, ter empatia inconsciente com ele e mostrar em imagens (é disso que seus quadros tratam), Oswald de Andrade valorou a formação brasileira como positiva a partir da herança antropofágica: “Tupi or not tupi, that’s the question”.

Este o paraíso achado por Tarsila do Amaral. Um paraíso que foi se afirmando aos poucos, olhar por olhar para seus quadros. Um paraíso que sobreviveu à própria queda da autora, que perdeu a fortuna e os meios de manter o necessário diálogo com a produção de ponta do mundo (pois era este o diálogo de sua obra, presente no contraponto entre fundo e figura de “A Negra”).

Mas que sobreviveu na força de imagens que conquistaram. Primeiro sua cidade, depois seu país, agora o mundo. Imagens que estão disponíveis numa exposição única e excepcional – num momento em que brasileiros precisam recuperar um modo de se verem em seu melhor.

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