José Carlos Fernandes

1968, 50 anos depois

José Carlos Fernandes
21/01/2018 20:06
Thumbnail

Felipe Lima

É provável que dê samba – em 2018 comemoramos os 50 anos de 1968, que graças ao livro de Zuenir Ventura será sempre lembrado como “aquele que não terminou”. É consenso que a ditadura militar – ainda que tenha se iniciado em 1964 e dado sinais de sua petulância logo de cara – começou para valer em 68, com os atos institucionais que cercearam a liberdade de expressão e apontaram os cassetetes até sair faísca, em especial contra os jovens militantes de esquerda e quem passasse a um raio de 10 metros dos coturnos. Como dizia uma das canções da época – “era um tempo de guerra, era um tempo sem sol”, verso de Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri com ecos de Brecht. Bethânia gravou. É triste de tão lindo.
Há uma sensação de que o tal do “dia que durou 21 anos” – outra frase boa para resumir o que ocorreu (do soberbo documentário de Camilo Tavares) – tende a cair no esquecimento. OK – a Rede Globo botou no ar, ano passado, a série Os dias eram assim e volta e meia a ditadura vem à baila, com ênfases das mais variadas. Acaba de ser lançado, por exemplo, um documentário sobre dom Paulo Evaristo Arns, um santo cívico no meio daquela penumbra toda. Mas o sentimento de recusa permanece como regra. A lembrança do que ocorreu é recorrente e consentida. A indignação, nem tanto. Difícil dizer se a aparente falta de paixão do brasileiro ao tratar a ditadura de 1964/1968 está mais para virtude ou mais para pecado. Como se diz no senso comum, se a gente lembrasse de todos as pilantragens que nos fizeram, não faríamos outra coisa senão regurgitar amargura, até não conseguir mais respirar. Como propagava Jô Soares num velho programa de humor, “o macaco tá certo”.
Mas é inevitável a comparação da nossa pasmaceira com a fleuma com que nossos vizinhos lidam com seus “anos do chumbo”. Os argentinos e chilenos, no caso. Los hermanos ainda fazem bater as panelas nas ruas. Pedem que sejam punidos os culpados pela morte de jovens nos quartéis. Que os crimes sejam apurados – qual o julgamento de Eichmann em Jerusalém.
Bem me recordo – coisa de 15 anos atrás – de uma visita ao Brasil do escritor chileno Antônio Skármeta. Deu trabalho. Homem corpulento, vermelho e dado a suores, entrou em combustão ao falar com a imprensa. Não entendia nosso silêncio diante do assassinato dos militantes. Surpreendia-se ao saber que a população ia ao cinema, com pipocas, assistir à adaptação do livro O que é isso, companheiro?, de Fernando Gabeira, posto que livro e filme destacavam a ingenuidade da mocidade da esquerda. Surtou ao saber que um humorista como Pedro Cardoso, aqui, podia habitar a pele de um guerrilheiro, como num Top Gang. Se a memória não falha, ninguém conseguiu convencê-lo de que nossa permissividade em rir da desgraça – comum a outros povos, como os russos, por exemplo – era um traço cultural. Talvez uma forma de suportar estruturas crônicas de sacanagem.
Penso que Skármeta carregou o sentimento confuso em relação ao país: o povo formou filas para conseguir o autógrafo do autor do livro que deu origem ao belo O carteiro e o poeta. Muitos lhe falaram da emoção provocada pela obra. A maioria se furtou de lhe explicar por que somos assim, um misto de dissimulados com naïfs, como se fosse possível. Se à época tivesse sido publicado o livro Brasil – uma biografia, de Lilia Schwarcz, seria mais fácil. Bastaria lhe recomendar a leitura, para que pensasse o país como uma pessoa, e uma pessoa complicada pra caramba, da qual somos um reflexo.
Se o leitor permite, nos 50 anos de 1968, penso que a melhor estratégia é cuidar para que o silêncio – um traço de nossa personalidade macunaímica – não vire pouco caso. Muitos e excelentes autores, nas mais diversas matrizes, enfrentaram o tema da ditadura. Ao contrário dos personagens da obra de Machado de Assis, não empurraram a questão para debaixo do tapete. E não se ocuparam apenas de pedir justiça: tentaram entender o que a ditadura militar diz sobre nós. Vale um roteiro.
Há os trabalhos óbvios, necessários, fundamentais etc. Anos atrás, uma excelente intercambista argentina em temporada de estudos na UFPR me pediu livros, vejam só, sobre a ditadura. Queria ver o Brasil a partir desta perspectiva. Confesso que fiquei impressionado com o interesse da estudante. Chamava-se Anicê. Iniciou seu percurso por 1968 – o ano que não terminou, de Zuenir Ventura. O livro abre com o réveillon na casa de Heloísa Buarque de Hollanda. Estava “todo mundo” lá. Uma puta sacada do Zuenir, que com a estratégia de contar uma festa deu a exata medida do estrago vindo depois.
Começar por Zuenir virou, digamos, uma rotina ao acompanhar outros alunos, em diferentes trabalhos ocupados da ditadura militar. É verdade que tive de me especializar em comprar exemplares em sebos, para presenteá-los, mas não foi dinheiro jogado fora. A jornalista Júlia Ledur iniciou sua viagem à luta armada por aí, antes de escrever o livro reportagem Ibiúna, anteontem, sobre as cinco estudantes do Paraná presas no Congresso de Ibiúna, em 1968. Assim como Zuenir se ocupou com o que aconteceu depois daquele ano-novo, Júlia investigou o destino das universitárias ao desembarcarem na sede da União Paranaense dos Estudantes (UPE), assim que o então governador Paulo Pimentel mandou um ônibus para resgatá-las da cadeia. No momento, a acadêmica Anna Sens investiga os bares onde jornalistas paranaenses trocavam informações – de modo a driblar os espartilhos impostos às redações. Seu passaporte? Zuenir.
Mas nada de rigidez. A quem interessar possa, há outras variações para o tema. Pode-se retomar o período por Os carbonários, de Alfredo Sirkis, um livro diabólico – no sentido Valêncio Xavier da palavra. Sirkis era pouco mais do que um menino quando entrou para a luta armada. Suas reminiscências têm efeito oposto às de Gabeira, que se vacinou com o “desbunde” para se safar do que definiu como autoritarismo da esquerda. Os dois viraram “verdes”. Com respeito à confusão de Skármeta, amo O que é isso, companheiro? tanto quanto Os carbonários, brasileiro estranho que sou. A descrição do suposto encontro de Sirkis com Lamarca num quarto de aparelho figura entre as mais belas páginas de nossa memorialística. Os absurdos dos bastidores da prisão do embaixador americano Charles Elbrick, pelo grupo de Gabeira, um clássico tupi.
Para quem não quer narrativas, digamos, apaixonadas, a recomendação é evidente – a magnífica série de Elio Gaspari. Obrigatória em qualquer estante brasilianista, dispensa apresentações. Nessa esteira, coloque-se Mulheres que foram à luta armada, de Luiz Maklouf Carvalho. Elas demoraram a falar sobre os porões da ditadura, por motivos que até dom Pedro Fedalto sabia. Tanto que colocava a batina e ia até o hoje extinto quartel da Praça Ruy Barbosa pedir que fossem soltas, alegando serem de boas famílias católicas da cidade. Não conhecia a maioria das gurias, mas – conforme admitiu em entrevista – sabia que poderiam ser estupradas. Ah, avisou que vai levar para o túmulo quantas estudantes salvou do pau-de-arara e afins. Uma delas, sabe-se, chamava-se Teresa Urban, jornalista, autora de 1968: ditadura abaixo, um histórico daqueles dias escrito para os adolescentes e jovens dos anos 2000, para que não esquecessem. Teresa era dessas.
No mais – filmes. À revelia de nossas reservas em admitir o que aconteceu, nosso cinema não se calou. Dois títulos, em particular, exploram o pior efeito da ditadura, a ditadura que fica dentro da gente, ora como cicatriz ora, perdoem a expressão vetusta, como corrosão do caráter: Ação entre amigos, de Beto Brant (salvo engano, disponível apenas no YouTube); e Cabra cega, de Toni Venturi. São obras para espíritos renascentistas. Mais? Embora em se tratando de arte, a palavra não seja um elogio, nada é mais pedagógico para captar o espírito do tempo do que O ano em que meus pais saíram de férias, de Cao Hamburger. É spielberguiano. É felliniano. A ditadura sob os olhos de um menino no bairro judeu do Bom Retiro. Os chilenos fizeram algo parecido com Machuca (de Andrés Wood). Ambos são ambientados na sombra da década de 1970. É uma pedida para quem está hoje na faixa dos 50 anos – e não fazia a mínima ideia na infância de nada mais que não fosse a iminente chegada do homem à Lua. Nem poderia ser diferente – muitos adultos também não faziam, até se darem conta de que algum conhecido tinha desaparecido. Era o bastante para acreditar. E temer.