José Carlos Fernandes

“A arte é o domingo da vida”

José Carlos Fernandes
06/10/2017 20:21
Permitam-me uma pequena história. No início da década de 1990, cursei a Escola de Belas Artes – ainda na Rua Emiliano Perneta. O piso afundava; havia pouco espaço; amávamos dona Zulmira Vergés, a zeladora; fazíamos troça do fantasma de Freyesleben e da célebre “cantina do esfria-bunda”, com seus bancos de tijolos, gelados como o cão.
Nossas aulas de “desenho de modelo vivo” (assim se dizia, numa oposição às de “natureza morta”) aconteciam num prédio dos fundos. A modelo se chamava Cida Demarchi, hoje fotógrafa, então estudante de Ciências Sociais na UFPR. Linda e nua com sua juba de leoa, ela nos falava de Max Weber – bem lembro – enquanto posava, sob o comando de Teca Sandrini, nossa professora.
Seria hipócrita não reconhecer o mal-estar da arte contemporânea. Existe. Pessoas saem mudas das exposições – ou nem sequer vão até lá, intimidadas pelo hermetismo, pela obrigação de interpretar, uma praga contra a qual vociferou a ensaísta Susan Sontag
Certa noite, um guarda recém-chegado à escola abriu a porta da sala, por qualquer motivo, e flagrou Cida em poses de Gala de Dalí, alunos em volta, pincéis em riste. Foi como se flagrasse os pais transando. Ficou tão nervoso que, ao sair, em disparada, trancou a porta sem perceber. A chave estava para o lado de fora. Naquela época não havia tantos celulares. Berramos muito por socorro. Imaginem. Foi uma função. O episódio, claro, entrou para o nosso anedotário.
Em meio a tanta grita ao redor da performance “La bête”, do bailarino Wagner Schwartz, e da mostra Queermuseu, penso no guarda que passou a mão na chave e se escafedeu. A analogia é instantânea. O nu está para a arte como a bola está para o futebol, porém… Aquele segurança via esculturas e pinturas espalhadas pela Belas Artes, mas de repente descobriu que aquilo nascia ali mesmo, com os préstimos de uma mulher real, que uma hora depois ele veria saindo, sem culpa, absorta em suas anotações sobre A ética protestante e o espírito do capitalismo.
Mais de uma vez escutei depoimentos de homens que diziam não suportar os ateliês com modelos nuas, pela excitação que lhe causavam. Em São Paulo, no Sesc Pompeia, um aluno passou mal numa dessas atividades. Tivemos de abaná-lo. Noutra ocasião, um jornalista muito jovem a quem editava me relatou seu desconforto – se me entendem – ao ter de cobrir a performance “Três Graças”, de Laura Lima, inspirada na obra de Rafael e Botticelli, uma das atrações de abertura do Museu Oscar Niemeyer, 15 anos atrás.
Homens e mulheres têm suas libidos despertadas em ônibus, parques, almoços de família e, vai saber, até em confessionários. Uma amiga confidenciou a impressão que lhe causam os pés dos personagens de pinturas neoclássicas, vejam só, abundantes em museus da Europa. “O que será, que será”, escreveu Chico Buarque, e analisou Marilena Chauí no delicioso ensaio Repressão sexual – essa nossa (des)conhecida, de 1984. Faz parte da “vida do espírito” entender os próprios fetiches, ausências e recalques. Dizer mais do que isso seria subestimar vocês, caros leitores. Ou pelo menos aqueles que não se renderam à lei do menor esforço, optando por fazer calar os que se empenham em compreender (a expressão é do escritor Bernardo Carvalho, no artigo “A lei do mais burro”). Dá trabalho abrir essa porta.
Estou para completar 20 anos de magistério superior. Dentre minhas tarefas: lecionar História da Arte para comunicadores. Peno. São disciplinas curtíssimas, quando não partes minúsculas dos programas. Pena. Não é de hoje que a estética ocupa lugar marginal nas universidades. Nem os seminaristas, para quem lecionei, se ocupam do assunto. Vai ver que por isso, quando padres, colocam azulejo de banheiro no piso das igrejas. A gente ajoelha para rezar e fica com vontade de fazer xixi.
Invariavelmente, ao final de cada empreitada, um-dois alunos me procuram. “Duchamp, que interessante – mas onde posso fazer um curso de História da Arte ‘pra valer’?”. Entendo o que querem dizer. Gostariam de partir das Grutas de Lascaux, identificar pinceladas impressionistas, pontilhismo, as fases todas de Picasso, algo mais enciclopédico, garantia de uma conversa ilustrada à mesa. Em segredo, confirmo que a vontade de tratar a arte como um objeto estático, passando-lhe um verniz, figura entre os principais impulsos em calá-la, mesmo sem notar. Assim fizeram os nazistas, os tiranos da Revolução Cultural da China, os soviéticos e seu infame realismo. Assim o repetem os guris do MBL.
Seria hipócrita não reconhecer o mal-estar da arte contemporânea. Existe. Pessoas saem mudas das exposições – ou nem sequer vão até lá, intimidadas pelo hermetismo, pela obrigação de interpretar, uma praga contra a qual vociferou a ensaísta Susan Sontag. O ódio de agora é um ódio estocado, daí sua virulência. Pencas de teóricos falaram a respeito – do nosso Ferreira Gullar ao genial Terry Eagleton, um profeta a alertar sobre a irrelevância da produção atual. Alguém pensa em chamar um artista para comentar a matança de Las Vegas? Não – mau sinal, do ponto de vista de Eagleton. Lembro isso para soprar no rosto de quem acha que não há conflitos nos circuitos artísticos. Suspeito que Adriana Varejão estaria mais feliz pintando vasos de flores do que vendo o achincalhe a “Cena de interior II”. Schwartz, se dançasse o Lago dos Cisnes, de malha branca.
No senso comum, tudo seria mais fácil se artistas repetissem o virtuosismo de Ingres ou a genialidade de Degas. Custa? Os picaretas sairiam de cena. Simples assim. Resta como resposta a esse sofisma dizer: não dá para recuperar a inocência perdida. Paciência. Depois de duas guerras mundiais, o Holocausto, os gulags, o Vietnã, a Aids, o 11 de Setembro – por aí vai – pintar paisagens e moçoilas em flor e sem ironia é mentira. Isso sim é imoral. Artista que é artista não mente. Vale para a poesia, vale para a ficção. Como brinca Woody Allen em Meia-noite em Paris, devia ser bem melhor nos Anos Loucos, ou na Belle Époque. Quem conseguir passagem no túnel do tempo, que se mude para lá – e me passe o endereço. Também quero.
Depois de duas guerras mundiais, o Holocausto, os gulags, o Vietnã, a Aids, o 11 de Setembro – por aí vai – pintar paisagens e moçoilas em flor e sem ironia é mentira. Isso sim é imoral.
Um dos produtos que melhor condensam esse impasse é o livro Crime delicado, uma novela de Sérgio Sant’Anna. Caso raro, a obra chegou muito bem ao cinema, com direção de Beto Brant. Metáfora perfeita. Na trama, Antonio, um crítico de teatro entediado, assiste às peças com os pés impacientes. Sabe o que vai acontecer, manja de todos os truques. Responde com textos esquemáticos e frases feitas: “No palco os atores sofrem; na plateia, o público sofre muito mais”.
Até que cai de amores por Inês, uma deficiente física. No livro, é manca. No filme, amputada. Pelo menos até descobrir que ela mora num ateliê, no qual serve como modelo para um pintor. O local é uma instalação de arte, conceito ausente do vocabulário do crítico. Ali, uma Inês nua tem sua perna ausente completada pelas tintas e pelo próprio pintor, que se deita com ela em completude. Erotismo? Humanidade. É de arrepiar a cena em que Inês chora diante de uma tela nascida de seu corpo defeituoso. O problema é que ao se deparar com o que não consegue entender – e sem admitir sua própria limitação – Antônio violenta a obra com palavras tortas. Por tabela, estupra Inês, mas jura que não. Penso que é ponto em que estamos.
Em tempo – há uma frase inspiradora do curador de arte Benito Oliva: “A arte é o domingo da vida”. Guardas assustados e violadores de plantão perdem o melhor dos mundos. Creiam.