Opinião

José Carlos Fernandes

A “Belas” de corpo e alma

José Carlos Fernandes
19/06/2023 23:52
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A crítica e pesquisadora de arte Maria José Justino e a artista plástica e educadora Juliane Fuganti acabam de abraçar o rabo de um foguete. A dupla escreve um livro há muito desejado – a história da Escola de Música e Belas Artes do Paraná, a Embap. O desafio deve ser sem refresco e sem hora de recreio. Existem documentos que o vento levou, crateras cronológicas e, por tabela, necessidade de gastar tempo, muito tempo, para ouvir alguns dos sortudos e sortudas que cruzaram o portãozinho de ferro da sede da Rua Emiliano Perneta, 179, no Centro de Curitiba. A antiga sede, a propósito, está entregue às trevas.
Caso alguém ande meio desligado, a “Belas”, como é chamada, foi fundada em 1948 por um grupo de artistas e intelectuais do primeiro naipe – de Bento Mussurunga a Lange de Morretes. Teve o pintor Guido Viaro dentre seus professores, para citar um mestre. Num estalar de dedos, entrou para a lista de ideias que deram certo – como se diria hoje. Tanto na parte de Música quanto na de Artes Visuais, a pequenina faculdade da “Emiliano” abasteceu orquestras – internacionais, inclusive – com instrumentistas de fino trato; e gestou artistas tais que levam qualquer curador a fazer genuplexão. Falar da Embap é, obrigatoriamente, tratar de uma fileira de talentos, cuja menção encheria a Revista Pinó de ponta a ponta. Não desdenhem – o modernismo paranaense passou por ali.
Paralelo à sua capacidade extraordinária de revelar criadores, a “Belas” colecionou dificuldades crônicas para se manter em pé. Um novelão que não sai do ar faz 75 anos. As pesquisadoras, por certo, vão se ocupar deste capítulo sombrio e, presumo, podem encontrar uma razão matemática entre a presença de artistas e intelectuais nos círculos do poder, a postos para defender a escola; e a penúria da instituição a cada governo em que esses influenciadores se escafedem. A Embap, em resumo, nem sempre foi tirada para dançar. A partir dos anos 2010, parecia sentada para sempre, enquanto o baile rolava, imoralidade escancarada pelo movimento popular “Viva-Embap-Viva”.
Difícil contabilizar quantos vídeos de denúncia foram publicados nas redes sociais, implorando das autoridades que cuidem da sede da “Emiliano” e mesmo para que, com a fusão da escola com a Universidade Estadual do Paraná (Unespar), fosse mantido o nome “Belas Artes”. Os motivos em prol do nome são tão óbvios ululantes que chega a dar preguiça repeti-los. Não se trata de conservadorismo, mas de justiça histórica – a “Belas” é corpo e alma com a sede da Emiliano Perneta. Quem trabalhar contra, merece um tomar drinque no Inferno.
Há uma sequência de guerras perdidas nessa trama. A sede histórica, daqui a pouco, pode virar um podcast categoria “A mulher da casa abandonada”, sucesso do jornalista Chico Felitti. O prédio está sinistro – à espera de restauro, entregue aos cupins. Dizia-se que à noite era possível escutar no assoalho velho as passadas do pintor e professor Waldemar Curt Freyesleben (1899-1970) – que nem morto desgrudou da Belas. Outros suspeitam que dona Zulmira Vergès (1924-2009) – a zeladora que morou num puxadinho dentro da escola por cinco décadas – faz companhia ao teimoso do Freyesleben. A teoria das assombrações é boba, mas cheia de sentido: a “Belas” resiste à ideia de morrer e rejeita com ganas virar um curso de Artes sem passado.
A construção estilo eclético, típica da Belle Époque, de fato esbanjava problemas em escala insuportável por seus modestos metros quadrados. Volta e meia o piso de tábuas afundava, motivo recorrente para suspender as aulas. Houve surtos de pulgas. As salas acabaram se tornando pequenas para os papeis e telas cada vez maiores, como pede a gestualidade contemporânea. Mesmo a famosa cantina do “esfria bunda”, gelada como o quê e sem ventilação, agradava o alunato – nada mal comer uma paçoca natureba, vendida ali pelo cantor Plá, enquanto se escutava um estudante de violino, sentado na posição de lótus, preparando-se para uma prova prática.
Os alunos falavam, em tom de brincadeira, que quando o piso não estava avariado, quando havia professor, e mesmo luz, para citar alguns dissabores, a “Belas” era o melhor dos mundos. Os educadores freireanos ainda pelejavam para desengravatar a educação quando, na Embap, a aula circular, horizontal e dialogada já era feijão com arroz. Talvez seja o seu grande segredo. A “Belas” permitiu a democracia criativa. Por isso, é amada por uma pá de gente. Tomara essa paixão tamanha caiba num livro.