Redação

A leitura tem dessas coisas

Redação
22/09/2019 19:00
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Lembro uma piadinha bem divertida que rolava nas redes sociais, tempos atrás. Dizia mais ou menos assim: os pais conseguem explicar aos filhos o mito ou a narrativa do Paraíso – com todas as dificuldades desse roteiro construído e remendado ao longo de inúmeras tradições de escribas (quem estudou Sagrada Escritura sabe do que se trata). O homem feito do barro, a mulher saída da costela de Adão e tudo o mais. É assunto para mestres e doutos. Mas acham um absurdo ter de traduzir algo bem mais simples – como o amor entre dois homens ou duas mulheres. Pois é.
Ainda que empanturrado pela nova onda de obscuridade – protagonizada pelo prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, na Bienal do Livro, durante o feriado da Independência –, foi impossível não acompanhar os desdobramentos. Uma das últimas notícias diz respeito à psicóloga Marisa Lobo – palestrante profissional – e sua recomendação para que os pais monitorassem o acesso de seus filhos ao canal do youtuber Felipe Neto, que, é bom lembrar, pisou nesse cipoal ao peitar Crivella e comprar 14 mil exemplares dos quadrinhos Vingadores – a cruzada das crianças (Marvel), de Allan Heinberg, ilustrado por Jim Cheung, e distribuí-los de graça. Fez um libelo anticensura, um elogio ao direito de ler.
A obra era o alvo da polêmica. Foi apontada como pornográfica quando – para quem é do ramo, como o jornalista e linguista Sérgio Rodrigues, em defesa brilhante – tem contornos flagrantemente românticos. A propósito, se o problema é com o romantismo, melhor tirar do ar A dona do pedaço, pois dali escorre o mel do mais puro folhetim. E, se o assunto é pornografia, digamos que não tem nada mais pornô do que posar para foto com arminha na cintura. Dá panos para manga. E não deixa de ser excitante que essa discussão volte à baila. Suspeito que, em tal contenda, teremos todos um ponto em comum: o Brasil é um país pornô. Por ora, melhor falar de livros – os proibidos ou não.
Um dos sintomas mais claros da nossa percepção da leitura como “tarefa” e não como “prazer” está na ausência da figura pública do leitor
O livro e a leitura se
perpetuam como um assunto marginal em nossas divisas. Por motivos bem brazucas.
Ler, em nossa tradição, figura entre as tarefas a cargo da escola, que
escolariza a leitura. Redundante assim. Torna-se uma obrigação passível de
prova, do mesmo naipe de uma lista de exercícios de matemática. Culpa do
ensino? Não, da sociedade que sobrecarrega o setor de obrigações e nos oferece
minguados espaços alternativos para desfrutar do direito à cultura.
Um dos sintomas mais claros da nossa percepção da leitura como “tarefa” e não como “prazer” está na ausência da figura pública do leitor. Basta olhar para dentro de um ônibus ou para uma praça. A porcentagem de pessoas com livros na mão é ínfima. Os Kindles entram nessa conta. São gatos pingados. Uma espiada nos celulares, para ver se alguém baixou um romance, confirma a regra – ali reside o império do WhatsApp, esse sim um canal de fofocas e maldades, iniciadas já nas primeiras horas da manhã, como bem gosta o capiroto, em quem voltei a acreditar.
Desde sua primeira edição, em 2002, a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil indica que o brasileiro “lê em casa”. Nas entrelinhas, entende que está lendo quando abre uma apostila, na mesa da cozinha, para estudar. É uma meia verdade. A leitura literária recebe bolas em outras caçapas. A esse lugar protocolar da leitura no cotidiano dos brasileiros, some-se outro sintoma que por aqui tem agravantes: ler é visto como algo muito perigoso. Para bem da verdade, não se trata de uma característica exclusiva dessas terras. A pesquisadora francesa Michèle Petit, referência na seara, identifica o “medo” da leitura nas mais diversas culturas, inclusive na de seu país, conhecido por ter os melhores índices de leitura per capita do planeta. Vem da França, por exemplo, um dos filmes mais provocativos sobre as relações entre leitura e desejo – Uma leitura bem particular (La lectrice, 1991), de Michel Deville, estrelado, permitam, pela deliciosa Miou-Miou.
O termo é polissêmico, entendam como quiserem. Importa é que, na trama, Constance, personagem de Miou-Miou, faz bicos como leitora em domicílio e desperta paixões violentas em seus clientes – eles sentem acordar anjos e demônios diante do encontro da palavra escrita com a voz da linda Constance. De leitores protocolares se veem instados a lidar com a química entre narrativa, sonoridade, interpretação e – eis o ponto – imaginação, a louca da casa. A imaginação provoca pânico, porque profetiza mundos possíveis. Pode-se planejar um novo capítulo da nossa autobiografia depois de ler Madame Bovary, de Flaubert, para citar o exemplo mais clássico de “cagaço” da influência literária.
As suspeitas que recaem sobre o ato de imaginar – negando-o como espaço privilegiado do pensamento – costumam ser jogadas nas costas dos livros, filmes e obras de arte plástica. O controle vem a galope. Acontece em qualquer ponto do globo terrestre, como prova Michèle Petit, mas encontra atenuantes no Brasil. Não havia prensas no Brasil até a chegada da família real, em 1808, como se pode ler, com prazer, no soberbo A longa viagem da biblioteca dos reis, de Lilia Moritz Schwarcz. Mais: os primeiros livros didáticos, e também as obras literárias, vão sair da Imprensa Régia, o que implica que passavam pelo crivo das autoridades. A turma pegou gosto em pilotar o fiofó alheio, como se sabe. Mais? Uma das acusações que pesaram sobre Tiradentes, nos Autos da Devassa, foi ter sido flagrado no Porto do Rio de Janeiro... comprando livros. Esse delito colaborou na decisão de considerá-lo digno de ser esquartejado. Sempre lembro o efeito de larga duração de episódios como esse quando tenho de acalmar adultos assustados com as escolhas literárias de seus rebentos. Espero ser recompensado nos céus.
A questão é que, mesmo com toda sorte de controle que se tente exercer sobre a leitura, o efeito da proibição é o de um tiro na água. Palestrantes alarmados estão gerando estresse à toa. Pode funcionar com uma parcela da população – ou por algum tempo –, mas, tal como a libido, o desejo de ler (ou de assistir, representar e o que mais couber no verbo “ler”) vai se manifestar, cedo ou tarde, bagunçando a parada. Prova disso são as nossas próprias biografias de leitores. Nos aproximados 25 anos em que recolho pequenas histórias de pessoas comuns com as letras, uma constante sempre aparece: em algum momento ocorreu a leitura furtiva, escondida, a portas fechadas, com a lanterna embaixo dos cobertores. Danem-se os índex. E essa atitude libertadora, lembre-se, nem sempre se refere a uma obra erótica, ainda que seja eivado de erotismo, de estética e de ética o direito de escolher. Em tempo, caso o amado leitor esteja distraído, onde se lê “erotismo” não está escrito “pornografia”.
Mesmo com toda sorte de controle que se tente exercer sobre a leitura, o efeito da proibição é o de um tiro na água
Pena serem ainda iniciais mais estudos sobre a revolução da leitura fora da escola. Ou em desobediência à escola e tudo mais. Recomendo Páginas do prazer – a sexualidade através da leitura no início do século, do historiador Cláudio DeNipoti. A partir dos registros da biblioteca do Ginásio Paranaense – hoje Colégio Estadual do Paraná –, entre 1911 e 1918, mostra-se como os meninos buscavam amparo nos livros de... Biologia. É autoexpliativo. A propósito, é demais uma cena do filme A suprema felicidade, de Arnaldo Jabor, na qual um grupo de piás rouba um catálogo médico sobre deformidades físicas e se delicia com o que vê. Era o que tinham pra hoje.
Há muito impresso sobre nós na história dos livros que lemos coletivamente, ou que marcaram gerações. Exemplos? Na ressaca pós-regime militar, um livro sofisticado como Morangos Mofados, de Caio Fernando Abreu, fez a cabeça dos jovens brasileiros. O mesmo vale para Feliz ano velho, de Marcelo Rubens Paiva – eternamente em catálogo. Umberto Eco dizia não acreditar que todos os compradores de O nome da rosa o leram de fato. Resta saber o que levou tantos milhões de consumidores a adquirir uma obra para iniciados em medievalismo. Por aí vai.
Dias atrás, participei de uma oficina com a pesquisadora carioca Eliane Hatherly Paz. Ela faz uma meticulosa pesquisa sobre a lista dos livros mais vendidos da revista Veja, a partir de 1968. Em meio a um sem-número de tabelas e dados cruzados emergem, claro, os efeitos da censura sobre as editoras, e a consequente escolha dos leitores por obras escapistas. Os best-sellers norte-americanos comandavam a festa. O mercado brasileiro se internacionaliza. Mas também emerge a negação da patrulha. As listas atestam desobediência e topete cívico. Tenho certeza de que daqui a 30 anos vamos entender o estranho fenômeno da série “foda-se” – um franco elogio à preguiça interpretativa – tanto quanto a recusa protagonizada por outro fenômeno, um youtuber que ligou o botão do... O mundo da leitura tem dessas coisas.